Lula e a Crise Climática, por André Cunha, Luiza Peruffo e Alessandro Miebach

Lula retornou com uma ambiciosa agenda internacional e desponta como um líder do Sul Global, com destaque nos fóruns multilaterais.

Foto: Ricardo Stuckert/PR

Lula e a Crise Climática

por André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Alessandro Donadio Miebach

Um líder global

A eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2022, foi recebida pela comunidade internacional, particularmente entre lideranças ligadas às questões ambientais, como um alívio. O desprezo do governo anterior pela agenda ambiental, a destruição das capacidades estatais de controle e prevenção de crimes nesta área, o estímulo ao avanço da fronteira econômica em biomas sensíveis como a Amazônia e a postura de negação da ciência produziram efeitos deletérios na natureza e no prestígio internacional do Brasil.

O presidente Lula retornou com uma ambiciosa agenda internacional e desponta como um líder do Sul Global, com presença de destaque nos principais fóruns multilaterais. Nas falas com seus pares e demais representantes da sociedade civil, o presidente brasileiro enfatiza a busca pacífica pela solução de conflitos como a guerra na Ucrânia, o combate à fome, à pobreza e às desigualdades sociais, e o enfrentamento da crise climática.

Ao assumir a presidência rotativa do G20 no encontro de Nova Delhi, poucos dias depois da tragédia provocada pelas chuvas intensas no Rio Grande do Sul, foi enfático ao dizer que: “… o descompromisso com o meio ambiente nos leva a uma emergência climática sem precedentes. O aquecimento global modifica o regime de chuvas e eleva o nível dos mares. As secas, enchentes, tempestades e queimadas se tornam mais frequentes e minam a segurança alimentar e energética. Agora mesmo no Brasil, o estado do Rio Grande do Sul foi atingido por um ciclone que deixou milhares de desabrigados e dezenas de vítimas fatais. Se não agirmos com sentido de urgência, esses impactos serão irreversíveis. Os efeitos da mudança do clima não são sentidos por todos da mesma forma. São os mais pobres, mulheres, indígenas, idosos, crianças, jovens e migrantes, os mais impactados. Quem mais contribuiu historicamente para o aquecimento global deve arcar com os maiores custos de combatê-la.” (grifos nossos)

O presidente brasileiro não se cansa de criticar a hipocrisia dos países de alta renda, que condicionam acordos comerciais aos compromissos ambientais e sociais, quando eles mesmos foram os principais responsáveis por semear assimetrias e desigualdades e pela emissão de gases poluentes. A disseminação dos padrões de produção e consumo das sociedades industriais se deu a partir dos impulsos vindos do Norte. Em recortes que controlam o tamanho de população, são as nações que se industrializaram primeiro que mais poluem e consomem energias geradas por combustíveis fósseis. Ademais, suas grandes empresas passaram a produzir fora de suas origens nacionais os bens finais e intermediários que mais agridem o meio ambiente. A limpeza de suas “próprias casas” se dá pelo deslocamento da sujeita para os vizinhos mais pobres.

Na década de 2010, em média, a emissão per capita de CO2 nos países de alta renda foi de 10,1 toneladas métricas, contra 3,3 toneladas métricas por habitante nos países de renda baixa e média. Já em termos de eficiência, os países periféricos emitem mais para gerar a mesma unidade de renda: 0,35 Kg de gás carbônico por unidade de PIB, medido em dólares em paridade poder de compra de 2017, contra os 0,21Kg dos países de alta renda. Ou seja, há uma clara divergência de eficiência, decorrente de assimetrias em termos de estruturas produtivas e de infraestruturas diversas.

O uso intensivo de plásticos, o maior consumo per capita de proteínas animais, o consumismo exacerbado, estimulado pelos meios de comunicação em massa, dentre outros fenômenos, não são invenções dos países da periferia. Lula acerta ao exigir que os que mais contribuíram para a crise em curso também respondam proporcionalmente pelo seu enfrentamento. O Sul Global tem direito a aspirar padrões materiais superiores para a sua população. Todavia, a crise climática não permite a repetição dos erros cometidos pelo Norte. 

Lá fora, bela viola, aqui dentro….

Se não agirmos com sentido de urgência, esses impactos serão irreversíveis” disse Lula em Delhi. Tomada pelo seu valor de face e aplicada ao Brasil, haveria de se esperar que o governo federal sob o seu comando esteja usando todo o poderio ao seu dispor para realinhar os instrumentos de políticas públicas para tal finalidade. Ademais, que as novas iniciativas de investimento levem em consideração os impactos ambientais. Isso está acontecendo? Até aqui os sinais não são claros.

Diante de um país dividido, com um governo sem maioria no Congresso Nacional e uma economia estagnada, o presidente Lula parece tentar acomodar, da melhor forma possível, interesses contraditórios em termos de agenda, políticas e visão de futuro. Do ponto de vista simbólico e político, nomeou uma liderança internacionalmente reconhecida para o Ministério do Meio Ambiente, a ex-senadora Marina Silva. Já as pressões de curto prazo pela busca de dividendos políticos e financeiros parece conduzir projetos cujos efeitos potenciais negativos sobre o meio ambiente são objeto de polêmicas, como a exploração de petróleo na Foz do Amazonas, a da Ferrogrão Norte, do Corredor Bioceânico, da Ferrovia Bioceânica, dentre outros.

Investidores e o setor privado apontam para as dificuldades de realizar tais projetos e o pacote do PAC 3 em função da “burocracia ambiental”, vale dizer, da necessidade de licenciamento que demonstre a capacidade de os mesmos atenderem à legislação vigente. Já as organizações não governamentais (ONGs) vão na direção oposta e afirmam que o grande problema é a possibilidade de se afrouxar as regras de controle. O Observatório do Clima e o Instituto Socioambiental lançaram nota conjunta criticando o  PL 2.159/2021 que, em sua avaliação, desmontará as bases legais para a proteção do meio ambiente. Há um temor de que o governo ceda aos lobbies do agronegócio, da indústria e das finanças. Uma vez aprovado tal instrumento, sem ajustes, ficaria mais simples viabilizar projetos sem a devida mitigação de ambientais.

Investimentos para enfrentar a crise climática

A Agência Internacional de Energia (IEA) em seu Panorama Global da Energia de 2022 estima a necessidade de que os investimentos anuais em energias renováveis passem dos atuais US$ 1,3 trilhão/ano para algo entre US$ 3 trilhões/ano e US$ 4 trilhões/ano em 2030. Em 2022, para cada 1 dólar gasto globalmente em combustíveis fósseis, 1,5 dólar era gasto em combustíveis limpos. Para garantir a meta de zerar a emissão líquida até 2050, tal proporção deveria atingir 1:5 em fontes alternativas e limpas e 1:4 em eficiência energética.

A McKinsey amplia a análise e aponta que para descarbonizar a economia global e garantir emissão líquida zero os investimentos em capital fixo teriam de aumentar dos atuais US$ 3,5 trilhões/ano para US$ 9,2 trilhões/ano. Com isso, o estoque de capital novo gerado atingiria o montante de US$ 237 trilhões. Isso implicaria, em seus estágios atuais, entre 2026 e 2030, ampliar investimentos para 9% do PIB global contra a média de 6,8% do período 2021-2025. O incremento seria da ordem de 2,2 p.p. adicionais da renda.  

A McKinsey identificou que os dez maiores emissores de metano e gás carbônico responderam por 62% da poluição global em 2019. O Brasil aparece como o sétimo maior emissor de C02, com os setores de transporte e indústria como os que mais contribuem negativamente; e o quinto maior emissor de metano. O país se enquadraria no grupo de países que usam intensivamente a terra e os recursos naturais, de tal sorte que tanto em termos de poluição, quanto de potencial de reconversão podem contribuir com a descarbonização.

Para o caso da América Latina, a aplicação de elevação para 9,4% do PIB em investimentos para a transição climática, implicaria em US$ 700 bilhões/ano até 2050 em capital físico e melhorias/recuperação de biomas diversos. O Brasil utilizaria 34% daquele montante ou US$ 238 bilhões ou R$ 1,2 trilhão/ano (12% do PIB de 2022), entre recursos já alocados e novas inversões. Tais estimativas sugerem enorme potencial para estimular crescimento, gerar empregos e incorporar novas tecnologias. Para atingir tais investimentos adicionais, o governo federal precisa mobiliar recursos e instituições já existentes e criar novos instrumentos.

O governo federal precisa liderar

Nos últimos quarenta anos, a economia brasileira experimentou um colapso no crescimento da renda, dos investimentos e da produtividade. Entre 1981 e 2022, o PIB per capita do Brasil apresentou uma variação média de 0,7% a.a., que é metade do padrão global (+1,5% a.a.) e dez vezes abaixo das economias emergentes da Ásia (+6,7% a.a.). O estoque de capital encolheu em termos relativos. A base de dados do FMI, em valores constantes (dólares de 2017), revela que o estoque capital por habitante do Brasil com relação ao dos EUA que era de 31% no anos 1990, atingiu para 28%, no final dos anos 2010. Como participação do total global, este indicador passou de 2,3%, no começo dos anos 2000, para 3,3% no início da década de 2010, voltando a experimentar uma queda relativa até atingir 2,5% em 2019. Em termos de fluxos, a relação investimentos/PIB do Brasil atingiu 16% entre 2018 e 2022. Nos países de renda baixa e média tal indicador é de 28% e nos países de renda média-alta, onde o Brasil está enquadrado, a relação é 35%. Ou seja, a defasagem do país é imensa.

Portanto, não basta voltar a investir e de forma robusta. Os investimentos no Brasil devem ser desenhados para não contribuir com a destruição de biomas sensíveis. Para tanto, há que se avançar em múltiplas frentes, dentre as quais.

  1. . A principal sugestão é uma nova reestruturação das dívidas contratadas com a União. O alongamento de prazos e a redução de custos seriam uma alternativa para criar espaço fiscal, o qual, por contrato, deveria ser utilizado somente em formação de capital em projetos de adaptação à crise climática e novas infraestruturas voltadas para esta nova realidade. Tais contratos vedariam o uso dos novos recursos com gastos correntes e envolveria compromissos claros e objetivos com metas do tipo ODS (ASG/ESG). Ademais, introduziriam elementos de governança que permitam a sociedade civil atuar e na fiscalização das ações. Tais compromissos precisam ser “para valer” e não mero marketing institucional.
  2. . O país possui instrumentos de poupança compulsória (FAT, FGTS) e fundos constitucionais extremamente robustos. E, também, conta com bancos públicos poderosos (BNDES, BB, Caixa, Banco do Amazonas, Banco do Nordeste). O Fundo do Nordeste (FNE) registrou ativos de R$ 124,3 bilhões ao final do exercício de 2022. O Fundo do Centro-Oeste, cujo agente financeiro oficial é o BB, encerrou 2021 com uma carteira de financiamentos de R$ 39,6 bilhões. E o Fundo do Norte (FNO), gerido pelo Banco do Amazonas, terminou 2022 com ativos totais de R$ 42,2 bilhões. O BNDES usa recursos do FAT, com um saldo de 372,4 bilhões no seu balanço de 2022. Os bancos públicos respondem por quase metade do estoque de crédito do país. Tais recursos não podem mais financiar regiões (municípios, micro e mesorregiões), setores e empresa que não apresentem compromissos claros com metas ambientais e sociais.
  3. Temos tecnologia para tanto, como demonstram instituições como INPE. Basta traduzir isso no conjunto das políticas públicas de forma consistente.
  4. .  Em 2009 foi estabelecida a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei nº 12.187) e criado o Fundo Clima (Fundo Nacional sobre Mudança do Clima por meio da Lei 12.114), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e gerido pelo BNDES. Este Fundo garante recursos para apoio a projetos ou estudos e financiamento de empreendimentos que tenham como objetivo a mitigação das mudanças climáticas. Em julho de 2023, havia um saldo contábil de R$ 1,5 bilhão. É um valor muito modesto. Para ampliá-lo pode-se utilizar  o Arcabouço Brasileiro para Títulos Soberanos Sustentáveis, recém criado, para lançar os títulos verdes e sociais cujo mercado global já se aproxima de um estoque de US$ 4 trilhões.
  5. . Na reforma tributária em discussão no Congresso Nacional, o tema ambiental emerge na possibilidade de diferenciação de alíquotas. A reforma prevê a substituição de cinco tributos por dois Impostos sobre Valor Agregado (IVAs): Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com unificação de IPI, PIS e Cofins, de gestão federal; e Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com unificação do ICMS (estadual) e ISS (municipal) e gestão compartilhada entre estados e municípios. Aqui, há a possibilidade de se introduzir alíquotas diferenciadas entre atividades/setores que geram efeitos negativos sobre o objetivo de reduzir as emissões líquidas de CO2. Isto foi reconhecido por instituições que atuam na área ambiental. Assim, por exemplo, o Manifesto pela Reforma Tributária 3S (Saudável, Sustentável e Solidária), assinado por cerca de setenta entidades, entre elas o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e a Oxfam, aponta para lacunas específicas, especialmente o fato de que a regulamentação da diferenciação de alíquotas ser remetida à legislação complementar.
  6.  O desmatamento na Amazônia afeta o regime de chuvas no Sul (e outras partes do país). As mudanças climáticas são sérias e precisam de enfrentamento robusto. Uma família remediada ou próspera que mora no interior do RS, no Vale do Taquari, por exemplo, pode perder todo o seu patrimônio ou mesmo a vida, da noite para o dia. As pessoas precisam entender que há relações de causa e efeito nas tragédias que se multiplicam. As lideranças políticas não podem falar “A” (defesa do meio ambiente, especialmente em fóruns externos) e fazer “B” (manter o “business as usual”) ou se perder em eternos “blame games”. Há que se tributar quem mais contribuiu para o desmatamento e as emissões de gás carbônico, lá fora e aqui dentro. Deve-se buscar o apoio da opinião pública, externa e interna, de forma coerente e incessante. Não basta criticar o Norte Global e reproduzir os mesmos padrões de investimentos e de negligência com os impactos de grandes projetos sobre o meio ambiente, aqui embaixo.

Lula, o líder global, é capaz de traduzir temas complexos em ideias força que podem ser compreendidas pelas pessoas comuns. Sua agenda é generosa. Lula, o presidente de um país estagnado e dividido, terá que mexer seu governo com mais velocidade e em outra direção para anteder ao que o primeiro disse no discurso de abertura das atividades da ONU: “Os países ricos cresceram baseados em um modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao clima … No Brasil, já provamos uma vez e vamos provar de novo que um modelo socialmente justo e ambientalmente sustentável é possível.”.

O mundo nos olhará com lupas. Se seremos ou não capazes de transformar belos discursos em ações concretas; programas governamentais, perfeitos no papel, em realidades duradouras; e fazer tudo isso sem repetir os erros modelo de desenvolvimento dos países hoje ricos, conforme corretamente apontado pelo presidente Lula. Não basta desmatar menos do que outros governos ou montar pacotes de investimento com base em modelos do passado. Não será suficiente brilhar em Nova Iorque e ofuscar o futuro explorando petróleo na Foz do Amazonas. A realidade é complexa e não permite a arte nacional de acomodar contrários, que é manejada com maestria pelo presidente do Brasil.

André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Alessandro Donadio Miebach – Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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