Aldo Fornazieri
Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.
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Uma mulher negra no STF, por Aldo Fornazieri

Estamos entre os dez países mais desiguais do mundo e estamos muito longe de garantir o princípio da igualdade perante a lei

Uma mulher negra no STF

por Aldo Fornazieri

Se o presidente Lula for coerente com o espírito geral de sua campanha e se ele honrar milhões de eleitores que votaram nele motivados por esse espírito geral, o Brasil terá em breve, com a aposentadoria da ministra Rosa Weber, uma mulher negra como nova ministra do Supremo Tribunal Federal. Não há motivos para duvidar da coerência de Lula.

Além da promessa subjacente ao espírito geral da campanha existem outros motivos e princípios fundamentais e históricos que exigem a nomeação de uma mulher negra para ocupar uma cadeira do STF. Antes de arrolá-los é conveniente lembrar que o STF é o tribunal constitucional do país e, conforme reza o artigo 102 da Constituição, cumpre a ele a guarda da Constituição.

Mas qual o fundamento primeiro de uma Constituição? No mundo moderno devemos, primeiro a John Locke e, depois, ao constitucionalismo norte-americano, a definição de que o ponto de partida da Constituição republicana consiste na garantia dos direitos dos cidadãos. A primeira razão para que um povo aceite se organizar politicamente, abrigando-se sob uma estrutura normativa e legislativa, consiste em garantir os seus direitos, principalmente os direitos de liberdade, de igualdade, de segurança e de justiça.

É certo que a noção de igualdade tem vários sentidos. Pensadores clássicos como Montesquieu e Tocqueville entendiam que o conceito é fundamento da república democrática e que ele abarca tanto a igualdade perante a lei, quanto a igualdade no sentido da equidade material.

Nem precisamos advogar uma concepção socialista para saber que se aplicarmos as concepções clássicas de república democrática, o Brasil está muito longe de se adequar às exigências dessas definições. Estamos entre os dez países mais desiguais do mundo e estamos muito longe de garantir o princípio da igualdade perante a lei para um grande número de pessoas que habitam este país.

Tomemos a situação dos negros e das mulheres. De acordo com as estatísticas, cerca de 56% da população brasileira é constituída por negros e cerca de 51%, de mulheres. Portanto, duas maiorias.

É certo que estes dois grupos majoritários vêm conseguindo, a partir da Constituição de 1988, o incremento de direitos. Mas isto vem ocorrendo de forma lenta, o que configura uma realidade social, econômica, política e moral ainda bem longe do desejado, do justo e do civilizatório.

Tome-se, primeiro, a população negra: os direitos formais da Constituição estão em desacordo com os direitos reais dos negros. Estes últimos não alcançaram sequer um patamar satisfatório. Não há equidade de salários/renda, de emprego, de acesso à educação, saúde, habitação, cultura. Os direitos civis dos negros são violados diariamente pelo Estado, pelas autoridades em geral, pelas polícias e pelo Judiciário. O racismo estrutural agride, machuca, violenta e mata. A liberdade sem cidadania e sem condições materiais para garantir acesso a alternativas significativas de vida não é liberdade. Poder-se-ia listar aqui várias outras violências contra os direitos das populações negras, mas isto é suficiente para assinalá-las.

Grande parte das precariedades de direitos sofridas pelas populações negras é sofrida também pelas mulheres. A equidade de gênero está longe de ser realidade. As mesmas violências que os negros sofrem no âmbito do trabalho e renda, as mulheres também as sofrem. Sofrem a violência sexista, os assédios, a exploração e a discriminação machista. São vítimas da violência física, sexual, psicológica e do feminicídio. Também sofrem as discriminações da polícia e de setores do Judiciário.

Até hoje, apenas três mulheres foram nomeadas como ministras do STF – Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber. E apenas três negros foram ministros do STF: Pedro Lessa, Hermenegildo Rodrigues de Barros e Joaquim Barbosa. Nenhuma mulher negra. O STF surgiu como Supremo Tribunal de Justiça em 1829 e foi transformado em Supremo Tribunal Federal por Decreto em 1890.

A ausência de mulheres e de negros no Tribunal Constitucional, e também nas representações políticas parlamentares e em toda a estrutura do Estado, diz muito acerca do espezinhamento dos direitos dos negros, das mulheres, dos pobres e de minorias como os povos originários e grupos como o LGBTQIA+. Negros, mulheres e esses grupos são vitimados por uma violência histórica, da escravidão, do preconceito, do racismo, do machismo, do supremacismo branco e da cultura patriarcal.

É sabido há alguns séculos que o lugar social, econômico, político, cultural e religioso ocupado pelas pessoas e pelos grupos sociais condiciona a forma de conceber e ver o mundo – condiciona as ideologias. E estas também condicionam a realidade objetiva e o mundo espiritual.

Vivemos num mundo em que as demandas por diversidade e pluralismo é gritante. Os dois conceitos concernem à própria noção de república democrática, de liberdade, justiça e igualdade. É por estas razões todas que a escolha de uma mulher negra para o STF é uma exigência do nosso tempo histórico, é uma exigência civilizatória, coerente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A sociedade civil brasileira, os movimentos negros e feministas, as Universidades, os movimentos sociais devem se mobilizar para que esta exigência seja satisfeita. Claro que não basta apenas escolher uma mulher negra com notório saber acerca da Constituição e do Direito. Além desses requisitos de conhecimento, é preciso escolher uma mulher negra cuja história e sensibilidade sejam condizentes com a luta pelos direitos dos negros, das mulheres e dos outros grupos carentes de direitos.

Este olhar e compromisso específicos e singulares sobre os direitos desses grupos são, ao mesmo tempo, singulares e universais. O processo de universalização dos Direitos Humanos requer que a realidade legal e constitucional e a realidade prática abriguem e universalizem esses direitos específicos. Não podemos aceitar que os direitos universais sejam apenas os direitos masculinos e brancos. A escolha de uma mulher negra e comprometida com a necessidade de universalização dos direitos dos grupos carentes representará um rombo nas fortalezas protetivas da dominação, da exclusão e da violência masculina e branca.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Aldo Fornazieri

Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.

5 Comentários

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  1. Discordo. Lula deve nomear para o STF alguém comprometido com o garantismo, com a preservação do regime democrático e, sobretudo, sem qualquer tipo de compromisso pessoal, moral, religioso, sexual ou racial com a estrutura ideológica neoliberal.

    A principal característica do neoliberalismo é fomentar a fragmentação da sociedade com base em questões morais, sexuais e religiosas. Isso permite tanto a hegemonia avassaladora da classe rica quanto a despolitização da política e a opressão econômica. O Estado democrático deve coibir o abuso sócio-econômico dos ricos, inclusive e principalmanente que eles mesmos se tornam beneficiários dessa ideia estúpida de que a cor ou o sexo da pessoa é mais importante do que os compromissos institucionais de longo prazo dela.

  2. Não consegui nem ler esse artigo todo. É muita ilusão e muita utopia. Vá pela cor ou pelo sexo ou por alguns indícios e teremos em breve um Joaquim Barbosa de saia. Barroso foi resistente na ditadura, Fachin parece que defendeu sem-terras ou coisa parecida, aquele outro carioca de peruca também fez alguns acenos em suas decisões para chamar atenção, Toffoli até morou no mesmo apartamento com José Dirceu e foi advogado do PT, e olha o que se tornaram depois de estarem lá. É bobagem confiar nessas aparências. Mais importante é olhar o passado de luta real, de manifestações ao longo dos anos. Pedro Serrano, o Ministro dos Direitos Humanos, outros juristas firmes na luta de longa data, Flávio Dino, são apostas muito mais confiáveis.

  3. Não consegui nem ler esse artigo todo. É muita ilusão e muita utopia. Vá pela cor ou pelo sexo ou por alguns indícios e teremos em breve um Joaquim Barbosa de saia. Barroso foi resistente na ditadura, Fachin parece que defendeu sem-terras ou coisa parecida, aquele outro carioca de peruca também fez alguns acenos em suas decisões para chamar atenção, Toffoli até morou no mesmo apartamento com José Dirceu e foi advogado do PT, e olha o que se tornaram depois de estarem lá. É bobagem confiar nessas aparências. Mais importante é olhar o passado de luta real, de manifestações ao longo dos anos. Pedro Serrano, o Ministro dos Direitos Humanos, outros juristas firmes na luta de longa data, Flávio Dino, são apostas muito mais confiáveis.

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