Banco Central, entre o sonho e a denúncia, por Luiz Alberto Melchert

O BC tem serviços a serem destacados e transformados em subsidiárias para depois serem vendidas na miúda? O PIX parece ser a resposta

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Banco Central, entre o sonho e a denúncia

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Quarenta anos atrás, quando estava na Columbia University escrevendo minha tese, orientada por Duncan T. Foley, aconteceu-me algo que se tornou recorrente desde então. Sempre que me deparava com uma dificuldade, dormia sonhando com ela. Talvez por entrar em um estado de concentração absoluta, talvez por não distinguir entre o devaneio e a realidade, acordava com a questão resolvida. Ia para minha máquina de escrever em Braille, punha uma nova equação no papel e voltava para um sono, então reparador. Nem sempre isso dá certo. Inúmeras foram as vezes em que foi dormindo que resolvi problemas de concursos que prestei e não passei. Disso derivam duas conclusões. A primeira é que temos de lidar com as limitações de nosso intelecto. A segunda diz respeito a que as coisas estão na nossa cara e teimamos em não as ver.

Um episódio assim ocorreu-me esta noite. Tinha uma matéria pronta, discutindo se a senhoriagem, principal fonte de receita do Banco Central, pertence ao banco ou à União. Em se transformando a autoridade monetária em empresa pública como pretende a PEC 65, já aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça, sob a batuta de Flávio Bolsonaro, seria necessário fazer um balanço de transição, deixando parte dos ativos para o tesouro e levando somente o que fosse destacável, haja vista que o Banco Central é atividade típica do Estado.

O percalço era como fazer com que um tema tão hermético ficasse palatável a quem não é economista. É que, apesar de a Economia afetar a vida de todos os cidadãos, não se pode esperar que todos pensem como profissionais da ciência. Foi quando, num estado de devaneio, como descrito no primeiro parágrafo, que o óbvio me surgiu como uma avalanche pronta a me soterrar. “Elementar, meu caro Watson” diria Sherlock. A Caixa Econômica, tão cobiçada pelo mercado financeiro, só não foi privatizada porque teria de passar de autarquia para empresa pública, daí a uma sociedade por ações e, só então, privatizada. O escândalo da privatização da Eletrobras mostra que não há limites para a ganância dos operadores do mercado financeiro. Foi por muito pouco que a Embraer não seguiu o mesmo caminho, caso o Governo abrisse mão da Golden Share, entregando tudo de mão beijada à Boeing.

A PEC 65 não indica como ficaria a composição acionária do BC, nem se ele teria ações negociadas em bolsa. Ela também não prevê qualquer impedimento para que os serviços prestados pela autoridade monetária sejam transformados em subsidiárias, para depois serem vendidas sem a necessidade de o Congresso aprovar a venda. Alguma coisa deve ter atiçado a cobiça.

O fatiamento da Petrobras com anuência do STF, que declarou que as empresas estatais poderiam vender subsidiárias sem passar pelo congresso, é que mostrou o caminho das pedras. Será que o mesmo poderia acontecer com o Banco Central? Tem ele serviços a serem destacados e transformados em subsidiárias para depois serem vendidas na calada da noite? O PIX parece ser a resposta. Se ele for destacado das atividades inerentes ao Estado e encarado como uma prestação qualquer de serviços, qualquer big tech, aliada a uma instituição financeira, poderia lançar mão desse filé. A rigor, desde que o PIX passe a ser programável ou mesmo lido por aproximação além do usual QR Code, o usuário final não precisaria ter conta em banco, bastando contar com um CPF ativo para poder pagar, receber, restando a administração de crédito às instituições financeira. Quem administrar isso tem todo o poder nas mãos, pois estará a par de absolutamente toda a vida financeira de cada um dos cidadãos.

Não é de admirar que se tenha lançado uma cortina de fumaça como o PL 1904, também conhecido como PL do Estupro, que causou furor nas ruas, para encobrir uma patranha como a PEC  65. A questão não é filosófica como eu imaginava, é muito mais chã, não se elevando do mais trivial padrão negocial brasileiro; deixa-se o Estado investir e, se der certo, privatiza-se, caso contrário, pune-se.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição. É pré candidato a vereador em São Paulo pelo PT. https://doarpara.com.br/prof-luiz-alberto

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1 Comentário

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  1. A mão invisível do mercado é pessima para solucionar problemas econômicos, mas é ótima para surrupiar recursos do tesouro. Apesar do apelido de invísível, ela age visivelmente para fazer valer o seu mando no BACEN. Na execução da drenagem dos recuros públicos para o patrimônio dos abastados, ela só precisa de 9 punguistas, ou pelo 5 , para efetuar o translado.

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