O STF, a liberdade de expressão e a liberação das sátiras nas eleições, por Ingo Wolfgang Sarlet

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Foto: Agência Brasil
 
Por Ingo Wolfgang Sarlet
 
No Conjur
 
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, em julgamento de destaque ocorrido na semana passada (nos dias 20 e 21/6/18), confirmou medida cautelar e julgou procedente pedido formulado na ADI 4.451/DF, relator ministro Alexandre de Moraes, para declarar a inconstitucionalidade do inciso II, da segunda parte do inciso III e, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º, todos do artigo 45 da Lei 9.504/1997, a assim chamada “Lei das Eleições”.
 
Tais dispositivos dispõe que as emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário, a partir de 1º de julho do ano da eleição, não poderão: a) “usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito” (inciso II) e b) “difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes” (segunda parte do inciso III). Os §§ 4º e 5º explicam o que se entende, respectivamente, por trucagem e por montagem.
 
De modo especial importa para a presente coluna o fato de que, por unanimidade, o STF afastou a vedação legal impostas às emissoras de rádio e televisão de veicular programas de humor envolvendo candidatos, partidos e coligações nos três meses anteriores ao pleito, como forma de evitar que sejam ridicularizados ou satirizados. Com a decisão, foi tornada definitiva a suspensão determinada em sede de cautelar pelo ministro Carlos Britto em 2010, não tendo a proibição sido aplicada desde então.
 
Embora não se tenha ainda acesso ao teor dos votos de todos os ministros que participaram do julgamento, para efeitos desse rápido comentário e sem prejuízo de desenvolvimentos posteriores nesta coluna ou em outro veículo, é possível partir das informações postadas pelo próprio STF sobre a decisão, em especial na sessão de notícias e no seu boletim informativo da jurisprudência.
 
Assim, a teor do voto do ministro Alexandre de Moraes, relator, a Constituição Federal proíbe toda e qualquer forma de censura à liberdade de expressão e de informação, incluindo aqui a liberdade, de criação (liberdade artística), destacando, ainda, inexistir permissão que possa ser deduzida do texto constitucional para o efeito de limitar preventivamente o conteúdo do debate público por conta de conjecturas em torno de eventuais efeitos que a divulgação de determinados conteúdos possa vir a ter na esfera pública.
 
Ainda para o relator, a liberdade de crítica deve ser plena e irrestrita, abarcando também manifestações de caráter humorístico e satírico, inclusive mediante a utilização de trucagem, montagem ou outros recursos de áudio e vídeo, não havendo razão para que tais práticas sejam interrompidas no período eleitoral, até mesmo pelo fato de que eventuais abusos serão sempre passíveis de eventual responsabilização cível ou mesmo criminal por terem cunho injurioso, difamatório ou mesmo configurarem calúnia.
 
Particularmente enfáticas foram as palavras do ministro Celso de Mello, que no seu voto (este já disponibilizado) afirmou que “Nenhuma autoridade, mesmo a autoridade judiciária, pode prescrever o que será ortodoxo em política ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento”. Para o decano do STF,
 
“O riso, por isso mesmo, deve ser levado a sério, pois constitui, entre as várias funções que desempenha, o papel de poderoso instrumento de reação popular e de resistência social a práticas que caracterizam ensaios de dominação governamental, de opressão do poder político, de abuso de direito ou de desrespeito aos direitos dos cidadãos”…”O recurso à derrisão, no âmbito político-eleitoral, constitui, na perspectiva de uma dialética do humor, verdadeira antítese ao que é grotesco, ao que é desonesto, ao que é fraudulento, ao que é abusivo, ao que é enganador. Em uma palavra: o riso e o humor são expressões de estímulo à prática consciente da cidadania e ao livre exercício da participação política, enquanto configuram, eles próprios, manifestações de criação artística. O riso e o humor, por isso mesmo, são transformadores, são renovadores, são saudavelmente subversivos, são esclarecedores, são reveladores. É por isso que são temidos pelos detentores do poder ou por aqueles que buscam ascender, por meios desonestos, na hierarquia governamental”.
 
Importa ainda acrescentar, que o ministro Gilmar Mendes, aderindo ao voto do relator, destacou que é no caso concreto que os juízes eleitorais devem aferir a ocorrência de abusos passíveis de sanção, posto que não se estaria a permitir uma espécie de vale-tudo, o que, ao fim e ao cabo, guarda sintonia com a posição do Relator quando sublinha a possibilidade de uma responsabilização por eventuais abusos.
 
Da mesma forma há que frisar a distinção traçada pelo ministro Luiz Fux entre o exercício legítimo da liberdade de expressão, que abarca a veiculação de opiniões e críticas mediante charges e sátiras, do falseamento doloso da verdade que causa danos graves e mesmo irreversíveis aos candidatos e ao próprio processo eleitoral, as assim designadas fake news, que devem ser repudiadas e combatidas pela Justiça Eleitoral.
 
À vista da sumária apresentação da decisão, é possível constatar, numa primeira aproximação, que com ela o STF deu mais um passo no sentido da afirmação de uma posição preferencial da liberdade de expressão na ordem jurídico-constitucional brasileira, em especial desde o julgamento da ADPF 130, que entendeu que a antiga Lei de Imprensa elaborada sob a égide do regime militar, não foi recepcionada pela Constituição Federal, mas também evidenciada em outras decisões, como no julgamento sobre a Marcha da Maconha e o caso das biografias não autorizadas.
 
Se já por isso é de se aplaudir o novo julgamento, que também valoriza particularmente a liberdade de criação artística (modalidade particular do gênero liberdade de expressão), isso por outro lado não significa que não exista espaço para discussão de alguns problemas, que, aliás, permeiam toda história da liberdade de expressão e de sua afirmação em face de toda e qualquer forma de censura, mas também da necessidade de coibir abusos que impliquem impacto desproporcional e mesmo grave sobre direitos e interesses constitucionalmente legítimos de terceiros.
 
Um dos problemas, nesse contexto, é traçar, de modo relativamente seguro, uma linha distintiva entre a sátira e/ou charge legítima e a abusiva e que, portanto, venha a configurar uma típica calúnia, injúria ou difamação. Particularmente difícil se revela a situação em que embora se possa compreender (interpretar) determinada sátira como tendo caráter ofensivo, ela simultaneamente veicula crítica legítima e, portanto, protegida do ponto de vista da liberdade de expressão.
 
Para tanto, sempre vale a pena um olhar para outras ordens jurídicas, ainda que se o faça para estimular a reflexão e não para a importação de determinada solução não raras vezes incompatível, no todo ou em parte, com as peculiaridades da própria ordem jurídica.
 
Por se tratar de uma sátira, em forma de charge (gravuras em quadrinhos) veiculada na imprensa escrita, um exemplo ele próprio caricato, extraído da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, talvez mereça alguma atenção.
 
Trata-se do caso conhecido como o dos “porcos copulando”, no qual um ex-governador da Baviera (Franz Joseph Strauss), na então República Federal da Alemanha, tinha sido representado em quadrinhos de uma revista com orientação ideológica oposta a do governador, mantendo relações sexuais com uma porca representando a Justiça e trajando uma toga, com o objetivo de denunciar a promiscuidade da relação entre o político e magistrados.
 
Na sua decisão — altamente polêmica — o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha entendeu que embora se tratasse de uma caricatura e portanto em primeira linha protegida pela liberdade de expressão artística e mesmo compreendendo as caricaturas como um gênero que lida com o exagero e que as pessoas públicas são alvos constantes de críticas, os desenhos acabaram por configurar um ataque do então ministro-presidente da Baviera na sua condição de pessoa, violando a sua dignidade, posto que não se tratava mais de uma crítica no sentido próprio do termo, mas sim, de uma mera humilhação e ridicularização, justificando-se a condenação dos autores das charges pelo crime de difamação.
 
Muito embora a distinção entre uma manifestação artística que tenha um teor crítico legítimo e uma que não passe de uma mera ofensa seja muito difícil de ser traçada, soa intuitivo que em sendo evidente o teor ofensivo é possível, em princípio, acionar os mecanismos de responsabilização previstos na própria Constituição Federal e na legislação infraconstitucional.
 
Por outro lado, precisamente a dificuldade de se distinguir o que pode ser considerado uma mera ofensa pessoal e não mais uma crítica, reforça a necessidade de se receber com muita reserva tal critério, que deve ser utilizado com extrema parcimônia, não desvirtuando o mandamento constitucional de que restrições a direitos fundamentais devem ser interpretadas de forma restritiva, ademais de seu caráter excepcional, o que assume ainda maior relevância quando se trata de crítica de natureza política, porquanto em causa diretamente a salvaguarda do processo democrático.
 
Mais apropriada do que a distinção entre uma crítica e uma mera ofensa, para efeitos do processo político-eleitoral, nos parece que é de fato a já referida diferenciação entre sátiras e manifestações de humor de um modo geral e distorções evidentes e dolosas da realidade (as assim chamadas fake news), com potencial efetivo de violação da isonomia no embate eleitoral, o critério que deve prevalecer, ainda que também aqui isso apenas possa ser verificado caso a caso e sempre de modo deferente para com a posição tendencialmente preferencial da liberdade de expressão.
 
De qualquer sorte, cuida-se de tema altamente complexo e que demanda maior reflexão e desenvolvimento. Como costuma acontecer, este ano, já marcado por tantas tensões e turbulências no Brasil e no exterior, em especial por se tratar de ano eleitoral, deverá oferecer inúmeras oportunidades para, à luz dos casos concretos que forem surgindo, retomar o debate e aprimorar os critérios para a solução das situações de conflito entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais.
 
Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, desembargador no TJ-RS, doutor e pós-doutor em Direito.
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

1 Comentário

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  1. Muita liberalidade do judiciário

    quero ver quando chegar a hora deles.

    Será que o ministro resistirá às referências  jocosas e ilustrativas sobre a sua mente (digo careca) brilhante?

     

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