A vida na Amazônia pode ser protegida e o crime organizado banido, avaliam experientes profissionais

A live aconteceu um dia antes da revelação pela Polícia Federal de que Bruno e Dom haviam sido assassinados e que seus restos mortais haviam sido localizados

A vida na Amazônia pode ser protegida e o crime organizado banido, avaliam experientes profissionais

por Arnaldo Cardoso

Somada à tristeza gerada pela atrocidade cometida contra o indigenista brasileiro Bruno Pereira (41) e o jornalista inglês Dom Phillips (57) é grande a revolta diante do agravamento da situação da região amazônica, caracterizada por uma cominação deletéria de problemas como o desmatamento ilegal, incêndios criminosos, garimpo, extração e comércio ilegal de madeira, grilagem de terra, atividades ilegais de pesca e caça, pirataria, contrabando de drogas e armas, invasão de terras indígenas e desrespeito aos direitos humanos, perseguição e morte de indigenistas e ambientalistas, entre outros.

É sabido que uma errática política para o meio ambiente conduzida pelo governo Bolsonaro, deliberadamente debilitou instituições e órgãos públicos responsáveis pelo monitoramento, fiscalização e implementação de programas para a preservação ambiental e promoção de práticas sustentáveis considerando os âmbitos ambiental, social e econômico.

Mas em oposição à sensação de caos e da percepção de se tratar de problemas crônicos, disseminadas através de repetidas declarações de um governo incompetente, omisso e comprometido com forças retrógradas e criminosas, erguem-se vozes respaldadas pelo conhecimento, experiência e compromissos éticos e políticos com a defesa do meio ambiente, dos povos indígenas e da sustentabilidade da vida no planeta.

Exemplares dessas vozes se reuniram em uma live, na última terça-feira (14), promovida pela coordenação do Curso de Ciências Socioambientais da PUC SP, formada pelas professaras Marijane Vieira Lisboa e Lúcia Helena Rangel, ambas com larga experiência acadêmica, de pesquisa e importantes trabalhos de campo. 

A live aconteceu um dia antes da revelação pela Polícia Federal de que Bruno e Dom haviam sido assassinados e que seus restos mortais haviam sido localizados. Portanto, foi ainda sob o sentimento de apreensão com o desaparecimento dos dois que a live foi produzida, encontrando-se disponível no site da PUC-SP e em redes sociais.

Participaram da live o indigenista que antecedeu Bruno Pereira na Funai (Fundação Nacional do Índio), Carlos Lisboa Travassos, Alexandre Saraiva, delegado da Polícia Federal afastado pelo governo federal após realizar investigações e questionamentos sobre condutas e procedimentos de autoridades políticas diante de flagrantes crimes ambientais e Maria Fernanda Ribeiro, jornalista especializada em Amazônia e povos indígenas isolados. A live foi mediada pela professora Lúcia Helena Rangel, antropóloga, pesquisadora e professora da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP, vice-coordenadora do Curso de Ciências Socioambientais.

Das qualificadas falas dos profissionais participantes, destacamos abaixo algumas de suas principais avaliações que cumprem a função de lançar luzes sobre uma insustentável situação vivida na região amazônica, com foco na Terra Indígena do Vale do Javari, próxima da fronteira com o Peru, onde Bruno e Dom foram emboscados e assassinados.

Compreendendo a complexidade

O geógrafo e indigenista Carlos Travassos, que trabalhou na Funai entre os anos de 2007 e 2016, chegando a ocupar o cargo de Coordenador Geral de Índios Isolados e Recém Contatados, abriu a live fazendo uma exposição sobre os diferentes povos que viveram e vivem na região do Vale do Javari, reunindo elementos geográficos e históricos com especial atenção para os processos de demarcação na região, que nos ajudam a compreender a complexidade do quadro.

Carlos nos faz perceber a importância de um olhar empático para a cultura do outro e a necessidade de uma compreensão da íntima relação entre os indígenas e a natureza, sem a perniciosa separação que certa ciência produziu em séculos passados.

Nos convidou a refletir sobre as cicatrizes que o “progresso” produziu naquela vasta região, sendo uma delas a Transamazônica empreendida nos anos da ditadura militar.

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O papel da polícia e da tecnologia diante da holding do crime

Em seguida o delegado Alexandre Saraiva fez uma contundente avaliação da gravíssima situação instalada na região amazônica, mas afirmando ser sim possível “tirar os criminosos daquela região e proteger os indígenas” lembrando que isso já foi outrora realizado – processo conhecido como desintrusão – mas que sofreu um retrocesso durante o governo Bolsonaro. O delegado salientou, entretanto, “ser necessário o uso de tecnologia pela polícia, uma polícia de Estado, republicana, preocupada com os valores constitucionais, priorizando o meio ambiente e os direitos dos indígenas”. Sobre tecnologia, Saraiva destacou a importância da nanotecnologia de satélites, com alta resolução e registro temporal, que é uma aliada muito eficiente para a orientação de operações.

Tendo chegado na região amazônica em 2011, como Superintendente em Roraima, vindo do Rio de Janeiro, Saraiva relatou seu espanto com o que viu no entorno de Boa Vista, quando percorrendo um trajeto de mais de 60 km o que viu foi “terra arrasada”, sem floresta, sem agricultura, sem pecuária, explicitando a farsa da fala daqueles que discursam advogando em favor de um hipotético “progresso econômico” em lugar da preservação ambiental. O que se vê ali é terra nua, resultado da espoliação e posterior abandono. Morte em lugar de vida.

Sarava contou que depois de Roraima, passou quatro anos como Superintendente no Maranhão e que, também lá, o que ainda existe de floresta é em área indígena ou de preservação. Disso ele inferiu que “A Amazônia precisa dos indígenas e eles da Amazônia”.

O delegado afirma, com base em ampla documentação produzida por várias investigações, que “a operação criminosa na região amazônica se tornou uma holding, com o dinheiro e os integrantes das organizações criminosas cooperando entre si, transitando pelas diversas atividades ilegais” e, o que é ainda mais grave, com apoio político de integrantes dos três Poderes da República, nas esferas municipal, estadual e federal. O dinheiro do crime financia campanhas políticas e abastece relações espúrias.

Mas Saraiva não cede ao ceticismo diante de tal quadro pois reconhece a existência de sofisticados e eficientes recursos tecnológicos e humanos qualificados para o enfrentamento e reversão desse quadro gravíssimo instalado na Amazônia. O que falta para pôr em ação esses melhores recursos é inteligência, determinação, compromisso ético e vontade política para mudar.

O delegado Saraiva elogiou a iniciativa da PUC-SP no lançamento do curso de Ciências Socioambientais, ressaltando a necessidade de ampliação do conhecimento sobre a região amazônica, a atualização sobre recursos disponíveis, a compreensão da importância para o presente e o futuro da preservação da biodiversidade e de seu uso responsável e, sobretudo, uma ética para com a vida.

O trabalho crucial do jornalismo informativo e investigativo

Por fim a jornalista Maria Fernanda, endossando as falas de seus antecessores na live, trouxe um depoimento abarcando dificuldades e aprendizados do trabalho de jornalismo informativo e investigativo sobre a região amazônica, a partir de consistentes trabalhos realizados em sete dos nove estados da região.

Maria Fernanda falou inclusive das investidas de organizações criminosas sobre profissionais de imprensa, com explícitos métodos intimidatórios. Ela relatou sentir o clima de insegurança se aprofundar nos últimos anos, com a debilitação dos órgãos de fiscalização e monitoramento e, correspondente empoderamento dos criminosos em uma “terra sem lei”. Ressaltou ainda a importância da perseverança no trabalho de jornalistas – principalmente da mídia independente – e de ambientalistas convictos da necessidade de suas ações.

Sobre o Curso de Ciências Socioambientais

Como informa o site da PUC-SP, “o Curso Bacharelado em Ciências Socioambientais da PUC-SP situa-se na interface das áreas de Ciências Sociais e Meio Ambiente, preenchendo uma demanda de formação de profissionais e pesquisadores nesta área específica em todo o estado de São Paulo. Sua finalidade é formar cientistas socioambientais capazes de refletir sobre os grandes desafios que se colocam hoje para a humanidade, ameaçada pela crise ambiental de múltiplas facetas, proporções gigantescas e com profundos impactos em questões sociais, culturais e econômicas”.

Acreditamos que é só contrapondo-se a um ceticismo que torna ainda mais grave a situação da região amazônica – situação com impactos sobre toda a sociedade brasileira e, em vários aspectos, mundial – com um reerguer-se da sociedade civil e suas instituições sociais, como a universidade, a imprensa livre, representantes do poder político institucional comprometidos com valores éticos, democráticos e republicanos que, em cooperação, a realidade poderá ser mudada e crimes como os cometidos contra Bruno Pereira e Dom Philips, além de outros diariamente cometidos em larga escala, deixem de manchar com sangue a Amazônia e entristecer nosso espírito.

Arnaldo Cardoso, sociólogo, cientista político formado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), escritor e professor universitário.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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1 Comentário

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  1. E o incrível vídeo onde o policial federal interroga o criminoso Amarildo, fazendo as perguntas e dando as respostas?
    O criminoso apenas confirmava as perguntas já respondidas pelo policial advinho.
    Ou será apenas uma gravação de propaganda?

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