
O caçador à solta
por Felipe Bueno
Se a vitória de Joe Biden em 2020 não chegou a trazer uma comoção mundial no lado progressista da sociedade, pelo menos entre a parte mais exagerada e ingênua faltou pouco.
Era chegado o momento do retorno da dignidade, da vitória dos direitos humanos, do silenciamento dos discursos de ódio, do início do reatar dos laços rompidos do povo dos Estados Unidos, da promessa de harmonia e justiça nas relações internacionais.
O episódio do Capitólio no janeiro seguinte seria, de acordo com essa visão, o último espasmo dos violentos, dos intolerantes, dos inimigos da democracia.
Do outro lado do espectro dos radicalismos incautos, a direita mais ignorante lamentou o flerte que os Estados Unidos, terra da liberdade e das oportunidades, estava iniciando com o socialismo, o comunismo ou seja lá qual peça de museu do antigo mundo da Guerra Fria.
Nada aconteceu. Os Estados Unidos da América continuaram despertando amores e ódios na mesma proporção nos quatro anos seguintes, e hoje nos perguntamos quantas páginas os futuros livros de História reservarão a Joe Biden.
Como nada dura para sempre, inclusive e especialmente Biden, foi se aproximando o momento de um novo processo eleitoral. E, à medida que as pesquisas e os fatos mostravam as enormes chances de retorno de Donald Trump, soavam mais fortes tanto as trombetas da tragédia como da redenção, dependendo da sua escolha.
Trump venceu.
E cumprindo seus últimos e melancólicos passos em direção ao tempo pretérito, Biden entregou ao seu povo um presente de despedida: o indulto presidencial, irrevogável, a seu filho Hunter, condenado por declarações falsas e compra ilegal de arma.
Indulto que, quando do momento da divulgação da condenação, Biden assegurou publicamente que nunca seria dado, por respeito à decisão da Justiça.
Poucos meses depois, em um de seus derradeiros momentos como presidente, Biden muda de ideia, usando como argumento o fato de que o filho foi alvo de um tratamento diferenciado, o que, pelo menos neste caso, não significaria um benefício.
Na visão de Biden, fazia-se claro, desde antes da condenação, que Hunter estava sendo processado de maneira “seletiva e injusta”, com o propósito final de atingir de fato ele mesmo.
A atitude de Joe Biden foi ilegal? De modo algum. Mas o centro de sua argumentação é uma crítica – e um julgamento – do processo jurídico. Um caso óbvio de apreciação do trabalho de um poder por outro poder. Uma inversão do juiz-penitente de Albert Camus. Estamos diante do personagem penitente-juiz, ainda que com papeis divididos entre pai e filho.
De qualquer forma, Biden, daqui a pouco, será passado.
E o que mudará?
Claro, não vamos ingenuamente achar que Donald Trump, homem que já chegou a sugerir injeções de desinfetante para curar a Covid-19, seja um líder preocupado com seus súditos.
Mas convenhamos… Barack Obama deve ser uma pessoa maravilhosa numa aula ou num café com donuts, é articulado, elegante e moderno, mas o que fez de concreto em relação ao Afeganistão ou Guantánamo?
Num tempo em que tantas grandes e etéreas discussões carecem de serenidade e maturidade, as pequenas questões vão rendendo votos a Trump, Milei e tantos outros. O que está errado? Ou quem?
Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.
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