Os dez mil caciques para menos de um índio na Receita Federal

Jornal GGN – Em artigo para o Observatório do Analista, João Jacques Pena fala sobre a hierarquização proposta pelo Projeto de Lei 5864/2016 para os auditores da Receita Federal. “Fazendo rápida leitura de seus artigos, deparamo-nos logo no primeiro com algo bem conhecido – e que entendíamos estar superado: estruturação de forma hierárquica (agora com chance de cristalização no corpo da lei) dos cargos da carreira”.

Ele questiona a iniciativa, contrária à tendência mais progressista de horizontalizar os processos e o poder decisório. “Em que a implementação da tribo Receita Federal do Brasil, composta por 10.000 caciques e menos de um índio para cada cacique comandar hierarquicamente (teremos cacique dividindo índio) contribuirá para superar as sucessivas quedas de arrecadação, aumentar a eficiência interna da RFB, diminuir a informalidade e promover Justiça Fiscal diminuindo a tributação indireta e aprimorando a tributação progressiva e direta? Do nosso ponto de vista, em nada!”.

Abaixo, a íntegra do artigo:

Do Observatório do Analista

Déjà Vu

Por João Jacques Pena

A expressão francesa que dá título a este artigo tipifica o sentimento de já termos vivenciado uma presente situação, resgatada como uma lembrança remota. Embora falhas na memória e dúvidas sejam comuns, o sentimento de estranheza é inerente ao verdadeiro déjà vu. Pois bem, talvez essa expressão seja a mais apropriada para descrever o sentimento que nos toma ao lermos a redação final da proposta do Governo para a Carreira Auditoria da RFB, consubstanciada no PL 5864/2016.

Fazendo rápida leitura de seus artigos, deparamo-nos logo no primeiro com algo bem conhecido – e que entendíamos estar superado: estruturação de forma hierárquica (agora com chance de cristalização no corpo da lei) dos cargos da carreira.

Diante de iniciativas recentes da administração da Receita na área de gestão de pessoas (gestão por competências) e na melhoria dos processos de trabalho (cujo passo inicial é o seu mapeamento) – iniciativas com potencial para promover a horizontalização do poder decisório -, poder-se-ia crer na transição da Gestão Funcional (verticalizada, hierarquizada, com foco no trabalho individual voltado a tarefas) para a Gestão por Processos (mais moderna e ágil, pois valoriza o trabalho em equipe, a cooperação, a responsabilidade individual e a vontade de fazer um trabalho melhor com foco no resultado coletivo), mas parece que estávamos enganados.

Auspícios já pretendidos na fracassada minuta de Lei Orgânica ressurgem das cinzas. A exaltação do cargo de auditor fiscal, “autoridade tributária e aduaneira”, parece ser o ponto de partida para a reconstrução de situação superada desde a criação da Secretaria da Receita Federal em 1968. Ressurgem, nessa esteira, dentre prerrogativas pertinentes para os dois cargos da carreira (algumas incompreensivelmente limitadas ao cargo de auditor fiscal) outras absurdas, como prisão especial em sala do Estado Maior, enquanto não houver trânsito em julgado e, após este, permanecer em dependência separada no estabelecimento em que tiver de cumprir pena.

Em que a implementação da tribo Receita Federal do Brasil, composta por 10.000 caciques e menos de um índio para cada cacique comandar hierarquicamente (teremos cacique dividindo índio) contribuirá para superar as sucessivas quedas de arrecadação, aumentar a eficiência interna da RFB, diminuir a informalidade e promover Justiça Fiscal diminuindo a tributação indireta e aprimorando a tributação progressiva e direta? Do nosso ponto de vista, em nada!

Mas esperem, ainda há a parte redentora do projeto, a pauta remuneratória cuja implementação promoverá maior engajamento dos servidores e servirá de instrumento de gestão. Será mesmo? Mantendo-se a lógica de cada servidor em seu quadrado e um batalhão de autoridades que não podem ser questionadas, fazendo mais do mesmo, alcançaremos algo diferente?

Mesmo nessa parte do projeto encontramos antigas novidades. Não falamos do bônus (já até escrevemos sobre ele. Leia aqui) ou do reajuste crediário (que ocorrem desde 2008 e sobre os quais temos opinião contrária. Leia aqui), mas o que verdadeiramente nos causa o sentimento de estranheza é a repetição de investidas e práticas que destoam do próprio escopo do projeto apresentado na Exposição de Motivos do PL.

Primeiro, já anunciado e condicionado pelo Governo durante a negociação, é a quebra da paridade entre ativos e aposentados/pensionistas (que ainda detém esse direito), sob a alegação de incompatibilidade da parcela variável do bônus com o subsídio. Aplicando Nietzsche – segundo o qual a verdade em relação a um determinado fato torna-se dependente da perspectiva que utilizamos para interpretá-lo – o Governo determina que o impossível para nós não o é para os advogados da AGU, pois esses receberão honorários advocatícios com o subsídio. Não concordamos com esse argumento, mas foi aceito pelas categorias. Diferenciam-se direitos de iguais, mais uma vez.

A novidade se encontra na exclusão dessa parcela variável da base de cálculo da contribuição previdenciária. Em cenário em que o vencimento básico supera consideravelmente o teto da Previdência Social isso pode parecer sem importância, mas no longo prazo quais podem ser as consequências?

Por derradeiro, no cálculo do bônus temos, aparentemente, a volta do auditor equivalente, aquela mesma figura do cálculo da RAV. O PL privilegia o cargo de auditor fiscal ao limitar o valor recebido pelo analista tributário a 60% do percebido por aquele, aumentando o valor individual a ser percebido pelos ocupantes daquele cargo. Não há justificativa para essa diferenciação e pelo condicionamento: ambos os cargos são de nível superior e contribuem igualmente para os resultados do órgão. Terá o analista que produzir 60% do que seu colega auditor produzir? Cremos que não. A mudança nesse ponto, igualando os valores é imprescindível e em nada impacta o orçamento inicialmente previsto (vez que o valor global continuará o mesmo).

Diante da dificuldade de influir nas esferas do Governo, em grande parte acabamos informados das decisões tomadas, nosso palco passa a ser o Congresso Nacional. Sim aquele mesmo que agora se ocupa do processo de impeachment e grande parte de seus membros de eleições municipais. Mesmo que tenhamos a impressão de que já vimos esse filme, não podemos deixar de exercer nosso papel e buscar o melhor resultado, não só para nossa categoria como para a Receita Federal e para o Brasil.

Redação

8 Comentários

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  1. Se dez mil decidem, então temos um processo decisório horizontal

    Se, conforme o próprio texto argumenta, dez mil servidores decidem, é porque o processo decisório é descentralizado e horizontal.

    O sindicato dos Analistas Tributários da Receita Federal, que trabalha na linha do que o articulista defende, é contra porque não quer que esses dez mil (que são os Auditores Fiscais Receita Federal) decidam. Prefere que esse poder de decisão seja concentrado nos 200 ocupantes de DAS que são titulares de unidade.

    Os Auditores Fiscais defendem que concentrar o poder em ocupantes de DAS é fundamentalmente ruim (ainda mais sob um governo golpista e que não tem constrangimento em substituir comissionados ao seu bel prazer!).

    Ao contrário de outros órgãos como Polícia Federal e Ministério Público Federal, todas as decisões que esses dez mil Auditores Fiscais tomam na Receita Federal estão sujeitas à revisão por dois colegiados, as Delegacias de Julgamento (compostas apenas por Auditores Fiscais) e o Carf (composta meio a meio por Auditores Fiscais e advogados indicados por entidades patronais). Tais instâncias administrativas podem ser acionadas gratuitamente, por meio de recurso escrito pelo próprio cidadão, que não depende de advogado nem contador para tanto.

    Portanto, as possibilidades de “abuso de poder” são ínfimas se comparamos com outros órgãos da estrutura do serviço público federal, só para tomar um exemplo.

    1. É intencional a confusão

      É intencional a confusão entre ter autoridade para decisão e ser “A” Autoridade tributária e aduaneira? Ninguém é contra a descentralização de decisão. Ninguém é contra a utilização, inclusive, de limites de alçada e decis~es dentro e fora da Carreira de Auditoria. O que nós, analistas, somos contrários é à personalização da autoridade do órgão por parte de uma categoria. O que se busca com o PL em pauta não é poder de decisão para trabalhar, isso pode ser obtido tranquilamente através da alteração do Regimento Interno da Receita FEderal do Brasil, um simples ato do Ministro da FAzenda. Não, o que vcs buscam é autonomia total, é não haver subordinação a nada, órgão ou governo. E aí, lhe pergunto, e se o distinto não quiser trabalhar? E se ele entender que um dia por semana está bom o suficiente? E se quiser investigar a vida do vizinho, do desafeto, do político que lhe negou um voto nesse ou naquele projeto? Se quiser auditar o Presidente da República ou um parente próximo por que essa ou aquela MP não saiu? Quem limita? O foro íntimo de cada auditor? Um colegiado frmado por exclusivamente por auditores?

      E buscar ser os únicos a poder solicitar apoio policial? E quando essa ou aquela unidade não possui um Auditor? Quando o plantão não tem um auditor, como a esmagadora maioria dos plantões de fronteira no Brasil, aonde o auditor “plantonista” fica só de sobreaviso em casa? Isso não é só irresponsabilidade, é sacanagem com os demais servidores que também trabalham no órgão.

      Esse Projeto de Lei é uma palhaçada, mas não só isso: é um acinte a todo o poder político, a todo servidor público e a todo cidadão brasileiro. Vocês querem ser autoridades? Eu quero que todos os demais servidores públicos que já possuem essa “prerrogativa” a perca. Um político é autoridade por que ele representa o poder do povo que o elegeu por voto direto. A cada quatro anos ele é referendado ou não por esse mesmo povo. Um burocrata que passa num concurso e com isso é transformado em um “ser” acima dos demais cidadãos é anti republicano, é uma tentação constante para abusos e deveria ser um absurdo aos olhos de qualquer cidadão medianamente esclarecido.

      A luta hoje não é contra um pleito de servidores, mas contra a própria ideia de que no Brasil possa existir cidadãos de primeira e segunda classe… se isso já existe de fato e de direito, seguramente não precisa ser ampliado.  

    2. Se a drj e feita so de
      Se a drj e feita so de fiscais eles, fiscais, julgam o w fiscais fizeram? E isso? Se os fiscais forem corporativistas isso nao vai fincionar, nao?r. E o carf e aquele di)o escandalo q sumiu da midia? Nunca mais se teve noticias…mas eram bilhoes envolvidos com altos carg los envilvidos…inclusive os onipresentes deputados. Sei…

      1. Há corporativismo nas DRJs?

        O seu questionamento é pertinente, há corporativismo nas DRJs?

        Minha sugestão para averiguar que não há corporativismo é entrar no sistema público de pesquisa de ementas de julgamentos administrativos das DRJ (endereço: http://decisoes.fazenda.gov.br/netahtml/decisoes/decw/pesquisaDRJ.htm) e pesquisar por “recurso provido” (ou outra expressão que entender mais apropriada). Por essa expressão (“recurso provido”), há mais de 300 páginas de resultados, o que é um forte argumento em defesa do ponto que defendi no meu comentário.

        Quanto ao CARF, a grande maioria dos conselheiros que agiram fora da lei foram os indicados por entidades patronais (CNI, Federação do Comércio, etc.). E os trabalhos que foram alterados pela quadrilha do Carf haviam sido originalmente elaborados, de forma correta, por Auditores Fiscais.

    3. Eu me pergunto: dos 10 mil

      Eu me pergunto: dos 10 mil caciques da Receita, quantos atuam honrando o nome de sua profissão: FISCALIZANDO? Um quinto? Ou menos ainda? Fiscal que não fiscaliza não é desvio de função? Ah, mas fiscalizar pode ser arriscado: melhor deixar isso para lá…  O ponto fundamental é o título de OTORIDADE. Pensemos assim: temos um exército, mas todos decidem de maneira própria, fazendo o que bem entendem. Coordenação? Para que? Cada General sabe bem o que ele deve fazer. Se cada um é OTORIDADE, a coordenação não precisa ser obedecida: fi-lo por que qui-lo. 

      Sou professor. Imagino um curso de graduação em que cada professor tem o direito de decidir o que é o melhor para o aluno. Abaixo o MEC: nada de diretrizes. É a perfeita comparação com a proposta que vocês estão defendendo. 

  2. Nós… quem, cara pálida?

    A caixa de Pandora da Tribo Fiscal foi aberta quando um cargo de apoio, de nível médio, saltou para de nível superior. Desde então temos um Frankstein: uma carreira com dois cargos de nível superior, sendo que apenas um detém – por lei – o poder decisório.

    Os Analistas tributários, cuja atuação é louvável nos processos de trabalho da RFB, conseguiram, primeiro o status de nivel superior, agora, por via tranversa, minimizam a negociação no ambito da Casa, para conseguirem avanços nas casas legislativas. 

    Este artigo é parte desta estratégia: confundir para avançar.

  3. Os servidores da RFB têm a chave do cofre

    Considero curiosa essa manifestação de analistas da RFB. A estratégia do governo golpista, com esse PL, parece ser dividir a categoria dos servidores da RFB. As razões para isso são de fácil compreensão. A RFB é a máquina do governo federal para arrecadar tributos. Desunindo e hierarquizando as carreiras, o GF terá muito mais controle sobre os servidores, semeará a cizânia e disputa entre eles. Unidos, os servidores da RFB podem causar grandes estragos ao governo golpista. É preciso que ficha dos servidores da RFB caia e eles se unam e façam pressão, para que o GF não lhes oprima e enfraqueça. Saibam os servidore da RFB que fraco e ilegítimo é o governo a que eles hoje estão subordinados.

  4. Não caiam na conversa dos técnicos/analistas da Receita Federal

    Coloco comentário resumido feito por outro comentarista, que resume e esclarece o assunto:

    Não caiam na conversa dos técnicos/analistas da Receita Federal:

    A parte atacada no projeto de lei é de CUNHO DECLARATÓRIO, pois os Auditores-Fiscais JÁ SÃO os agentes públicos com poder de decisão no órgão, logo detém a autoridade conforme previsão legal (Lei 9.784/99, III, §2º, art. 1º), com suas competências disciplinadas no CTN (artigos 142, 149, 194, 196, 197 e 200), ratificadas pelo lei 10.593/02 (art. 6º) e outras leis esparsas.

    Portanto, o PL 5864/2016 vem apenas externar quem é a autoridade em matéria tributária e aduaneira, ou alguém tem dúvidas de que são os Auditores-Fiscais competentes para fiscalizar, lavrar autos de infração, decidir em processos administrativos tributários, etc?

    O artigo pega carona em uma tese defendida pelo GGN-Nassif, em relação ao crescimento dos poderes das corporações do MPF, PF e Judiciário, objetivando angariar apoio contra a aprovação de partes do PL.

    No entanto, o que escrevem não é o que fazem. Aqui são contra essa declaração de autoridade, mas no congresso patrocinam emendas que lhes alçariam a essa condição, vide emendas rejeitadas à MP 660/2015 (nºs 40 e 41), que certamente serão reapresentadas nesse PL (aguardem e verifiquem), além de milhares de ações judiciais buscando a promoção para o cargo de Auditor-Fiscal, sem passar pelo difícil concurso público.

    O real motivo da grita é que esse PL coloca uma barreira nessas pretensões, ao tornar claro a condição de cada cargo, cuja confusão tem sido utilizada pelas entidades representativas dos Analistas na tentativa de emplacar suas pretensões.

    Apenas para situar os leitores, os Analistas Tributários eram os Técnicos do Tesouro Nacional (TTN), posteriormente chamados de Técnicos da Receita Federal (TRF), ambos cargos de nível médio, com incumbência expressa de “auxilar o Auditor-Fiscal da Receita Federal no exercício de suas atribuições”, até o advento da Lei nº11.457/2007, quando o cargo recebeu o nome atual e passou a ser de nível superior, com as mesmas incumbências, embora eufemisticamente tenham alterado a redação para constar como “atividades de natureza técnica, acessórias ou preparatórias ao exercício das atribuições privativas dos Auditores-Fiscais” (Lei 10593/02, Art. 6º, § 2º, I).

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