Independência, às margens, por Bruno Alcebino da Silva

A Independência, embora celebrada como um ato heroico, foi, na realidade, um processo marcado por negociações e concessões.

François-René Moreaux

Independência, às margens

por Bruno Fabricio Alcebino da Silva

A proclamação da Independência do Brasil, às margens do Ipiranga em 7 de setembro de 1822, ressoa como um dos momentos mais emblemáticos da história nacional. O grito “Independência ou Morte!” de Dom Pedro I simboliza a ruptura formal com Portugal, mas será que essa emancipação política se traduziu em uma genuína soberania, livre de pressões externas? Mergulhar na complexa teia histórica, política e econômica que se desenrolou desde então nos permite vislumbrar as nuances dessa questão, tão crucial para compreender o Brasil contemporâneo.

A Independência, embora celebrada como um ato heroico, foi, na realidade, um processo marcado por negociações e concessões. A elite brasileira, temendo perder seus privilégios em meio às turbulências políticas em Portugal, optou por uma solução que garantisse a continuidade da ordem social e econômica. A manutenção da monarquia, com D. Pedro I no trono, evidencia essa estratégia. A Independência foi feita de cima para baixo, pelas classes dominantes, sem a participação popular. Como bem observou o historiador Caio Prado Júnior (1942, p. 137), “o Brasil não sairia tão cedo, embora nação soberana, de seu estatuto colonial a outros respeitos, e em que o ‘Sete de Setembro’ não tocou”. Ao final do período colonial, a estrutura social do Brasil permanecia praticamente inalterada desde o início da colonização. O país era marcado por uma profunda desigualdade, com uma pequena elite branca controlando a terra e a riqueza, enquanto a grande maioria da população, composta por escravos e libertos, era relegada à condição de mera força de trabalho, sem voz ou participação ativa na sociedade.

O reconhecimento da Independência por Portugal, em 1825, veio acompanhado de um Tratado que impunha ao Brasil o pagamento de uma vultosa indenização e a concessão de privilégios comerciais aos portugueses. Essa dependência econômica inicial lançou sombras sobre a recém-adquirida “soberania”. O Brasil, apesar de politicamente independente, permanecia atrelado aos interesses de sua antiga metrópole. Essa realidade ecoa o conceito gramsciano de hegemonia, em que o poder não se exerce apenas pela força, mas também pela persuasão e pelo consentimento.

Outro conceito fundamental é o de soberania: central na teoria do Estado, representa a autoridade suprema e independente que um Estado exerce sobre seu território e população. Essa autoridade se manifesta tanto internamente, na supremacia do poder estatal sobre qualquer outro poder dentro de suas fronteiras, quanto externamente, na igualdade jurídica do Estado em relação aos demais Estados no cenário internacional. Como define Jean Bodin, em sua obra Os Seis Livros da República (1583), a soberania é o “poder absoluto e perpétuo de uma República”, caracterizando-se pela ausência de qualquer poder superior na ordem externa e de qualquer poder igual na ordem interna. O Brasil, nesse contexto, emergiu como uma nação que, apesar de politicamente independente, ainda buscava consolidar sua soberania em um cenário de pressões e desafios.

Ao longo do século XIX, o Brasil consolidou sua posição como um importante ator no cenário internacional, impulsionado pela expansão da cafeicultura e pela crescente demanda por seus produtos primários. No entanto, essa inserção na economia mundial se deu sob a égide do liberalismo econômico, que pregava a abertura dos mercados e a livre circulação de capitais. Essa política, embora benéfica para alguns setores, aprofundou a dependência do país em relação aos centros de poder da época, como a Inglaterra.

A Proclamação da República, em 1889, representou uma nova etapa na busca por uma soberania plena. A ruptura com a monarquia e a adoção de um regime republicano simbolizavam a modernização do país e a busca por um modelo político mais alinhado com as nações desenvolvidas. No entanto, a República Velha (1889-1930) foi marcada por um forte controle oligárquico e pela perpetuação das desigualdades sociais. A política “café com leite”, que alternava presidentes de São Paulo e Minas Gerais no poder, evidenciava a fragilidade da democracia e a persistência de estruturas de poder herdadas do período colonial.

A Era Vargas (1930-1945) trouxe consigo um projeto de modernização e industrialização do país, com forte intervenção do Estado na economia. A criação de empresas estatais, como a Petrobras (1953) e a Companhia Siderúrgica Nacional (1941), e a implementação de políticas trabalhistas representaram avanços significativos na busca por uma maior autonomia. No entanto, o autoritarismo do regime e a repressão aos movimentos sociais lançaram dúvidas sobre a capacidade do Brasil de conciliar desenvolvimento econômico com democracia e liberdade, sendo apenas um precedente do que viria a seguir.

O período da Ditadura Militar (1964-1985) representou um retrocesso na trajetória do país rumo à soberania. O regime, apoiado pelos Estados Unidos em nome da luta contra o comunismo, impôs um modelo de desenvolvimento baseado na abertura ao capital estrangeiro e na supressão das liberdades individuais. A dependência em relação ao capital externo e a violação dos direitos humanos mancharam a imagem do Brasil no cenário internacional e aprofundaram as desigualdades sociais. Nesse período, a crescente influência de organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, nas políticas econômicas de países em desenvolvimento, como o Brasil, levantavam questões sobre a real autonomia dos governos nacionais.

A redemocratização, a partir de 1985, trouxe consigo a esperança de um novo ciclo de desenvolvimento, marcado pela consolidação da democracia e pela busca por maior justiça social. A Constituição de 1988, conhecida como a “Constituição Cidadã”, ampliou os direitos sociais e garantiu a liberdade de expressão. No entanto, os desafios persistem. A globalização, com sua lógica de integração dos mercados e de livre circulação de capitais, impõe novos desafios à soberania nacional.

Já a partir dos anos 2000, a pressão por reformas neoliberais, como a privatização de empresas estatais e a flexibilização das leis trabalhistas, em nome da competitividade e da atração de investimentos estrangeiros, coloca em xeque a capacidade do Estado de garantir o bem-estar social e de proteger os interesses nacionais. Esse cenário se agrava com a ascensão de governos de extrema direita, que, apesar de prometerem “milagres” para salvar economias e retomar ideais tradicionais como “Deus, pátria e família”, acabam por defender a diminuição do Estado, numa balança que pende para a fome, desigualdade e sofrimento da grande massa da população.

Somado a isso, a dependência tecnológica, especialmente em setores estratégicos como a indústria de defesa e a produção de energia, também representa um obstáculo à soberania. A necessidade de importar tecnologias e equipamentos de países desenvolvidos limita a capacidade do Brasil de tomar decisões autônomas em áreas cruciais para sua segurança e desenvolvimento. O país que perdeu seu big push de industrialização, vem sofrendo nas últimas décadas as consequências em um processo contrário de desindustrialização. Esse fenômeno tem impactado a competitividade do Brasil no cenário internacional e acentuado sua vulnerabilidade em setores estratégicos. A falta de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, somada à baixa qualificação de mão de obra e à ausência de políticas industriais consistentes, têm contribuído para a estagnação tecnológica do país.

A questão da soberania alimentar, também merece destaque. A crescente concentração da produção de alimentos nas mãos de grandes empresas transnacionais e a dependência em relação à importação de insumos agrícolas, como fertilizantes e agrotóxicos, colocam em risco a capacidade do Brasil de garantir a segurança alimentar de sua população e de proteger seus recursos naturais.

A influência de potências estrangeiras na política externa brasileira também é um fator a ser considerado. A busca por parcerias comerciais e investimentos, especialmente com países como os Estados Unidos e a China, pode levar o Brasil a tomar decisões que nem sempre estão alinhadas com seus próprios interesses nacionais. A pressão por aderir a blocos econômicos e a acordos internacionais, tomemos como exemplo o Acordo Mercosul-União Europeia, muitas vezes elaborados sob a liderança de países desenvolvidos, pode limitar a capacidade do Brasil de defender suas posições e de promover uma agenda de desenvolvimento que priorize a justiça social e a sustentabilidade ambiental.

Com esse breve panorama é explícito que a Independência do Brasil, embora tenha representado um marco importante na história do país, não se traduziu automaticamente em uma soberania plena e irrestrita. A complexa teia de relações políticas, econômicas e sociais que se desenrolou ao longo dos séculos evidencia a persistência de desafios e a necessidade de um esforço contínuo para garantir a autonomia do país em um mundo cada vez mais globalizado e interdependente.

A busca por uma soberania real passa pela construção de um projeto de desenvolvimento que priorize a justiça social, a sustentabilidade ambiental e a democracia. A diversificação da economia, a redução da dependência tecnológica, a proteção dos recursos naturais e a promoção de uma política externa ativa e independente são elementos essenciais para que o Brasil possa trilhar um caminho de desenvolvimento autônomo e soberano, comprometido com o bem-estar de sua população. Se não, continuaremos com uma independência às margens, não do Ipiranga, mas à beira de uma dependência estrutural que perpetua nossa posição periférica no sistema internacional.

Referências

BODIN, Jean. Six livres sur la République. Paris: Le livre de poche, (1583) 1993.

LIMA JUNIOR, P. G. de, & FREITAS JUNIOR, V. de. (2024). Soberania Nacional nas Relações Internacionais e os Direitos Humanos. André Luis de Lima Maia (Editor/Coordinator). https://doi.org/10.5281/ZENODO.10863375

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1942.


Bruno Fabricio Alcebino da Silva – Bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).

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