Quando o direito se torna papo de botequim, por Murilo Naves Amaral

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Quando o direito se torna papo de botequim

por Murilo Naves Amaral

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, na data de 24 de abril de 2018, decidiu no sentido de declarar a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, em relação ao processo envolvendo o ex presidente Lula, em que é acusado, segundo delações da Lava Jato, de, em troca de facilitações de contratos com a União em favor da Odebrecht, ser o beneficiário de uma reforma financiada pela referida construtora, em um sítio situado na cidade de Atibaia/SP, que supostamente seria de sua propriedade.

Diante da decisão proferida, uma enxurrada de críticas foi realizada, sobretudo por setores da imprensa, que declaradamente, torcem pela manutenção de Lula preso. Interessante destacar, no entanto, que tal acontecimento demonstra como o Direito se transformou em um verdadeiro papo de botequim, no qual analistas de tv, jornalistas, além de outras figuras que desconhecem a técnica jurídica, de repente se tornaram grandes entendedores do assunto, a ponto de se manifestarem sobre o tema, substituindo com suas opiniões vazias, até mesmo, aqueles que, em outros tempos, seriam de fato considerados os mais qualificados para expor alguma análise sobre a matéria.

Esse fenômeno expõe como o protagonismo do Judiciário se tornou algo extremamente maléfico ao país, de modo que as pessoas passaram a discutir questões jurídicas de forma banal, sem qualquer reconhecimento da própria ignorância técnica que se tem sobre o tema. Muito pelo contrário, falam como se tivessem uma intimidade maior do que muitos estudiosos do Direito. Inclusive na forma de se referirem aos ministros, em que se verifica uma linguagem, digamos, mais íntima. Basta observar que não é mais ministro Gilmar Mendes, mas Gilmar, Carmen Lúcia agora é Carmen, Rosa Weber passou a ser chamada de ministra Rosa, enfim, são tratados como se fossem personagens de novela.

Contudo, deve-se destacar, que o que vem acontecendo é resultado das condutas dos próprios operadores do Direito, principalmente aqueles que exercem alguma autoridade. A sedução da mídia e a necessidade de se tornarem celebridades, a ponto que ministros do STF, juízes e membros do Ministério Público são tratados como ídolos em programas de televisão, enquanto outros, dependendo do momento, são vistos como os vilões, fez com o que houvesse uma banalização da prática jurídica, pois em vez de atender o que dita a lei e a técnica, essa espetacularização que presenciamos dia a dia no Brasil, passou a dar preferência em satisfazer a histeria da opinião pública fabricada pela grande imprensa.

Cabe lembrar que o Judiciário se trata de um poder cujos atos prezam pela discrição. É o poder que interpreta a Constituição e que aplica a lei, não podendo se tornar refém de autoridades que em nome de um oportunismo sem limites, conduzem a atuação judicial ao rumo de um populismo desenfreado, principalmente, quando tais condutas são realizadas apenas para agradar setores da mídia. Aliás, não é demais lembrar, que o comportamento praticado por muitas autoridades brasileiras, soaria como inimaginável em qualquer nação civilizada.

Por essa razão é que vemos hoje a mídia tratando de uma questão técnica processual como se estivesse discutindo um tira teima de uma partida futebolística, ou um romance barato, no qual somente um juiz pudesse atuar como se herói fosse. Cabe destacar, que essa blindagem a Sérgio Moro deveria, inclusive, soar como ofensa aos demais juízes, pois pelo que se retrata na imprensa, fica parecendo que somente o ilustre magistrado paranaense é que tem compromisso em julgar de maneira séria casos de corrupção.

No caso do processo envolvendo o presidente Lula, em que se entendeu pela incompetência do Juiz Moro, deve-se observar que as regras de competência estabelecidas pela legislação processual, como já bem destacou alguns processualistas, trata-se de algo necessário para o próprio funcionamento do Estado de Direito, posto que, é a partir dessas regras é que se restringe o alcance que uma autoridade poderá atuar.

Nesse sentido, a competência que determina os limites do poder de julgar em razão de circunstâncias relativas, por exemplo, ao território, ao valor da causa, a função, a hierarquia e a matéria, é imprescindível para o bom funcionamento processual, sendo, inclusive, uma questão preliminar que deve ser analisada antes de julgado o mérito. Pode-se dizer que violar regras de competência é violar também o princípio do juiz natural que assegura que ninguém pode ser privado do julgamento por juiz independente e imparcial, na forma indicada pelas normas constitucionais e legais.

Em face disso, verifica-se que as regras de competência são oriundas das próprias regras do jogo processual democrático, de maneira que deve servir de garantia fundamental em prol do cidadão, ao mesmo tempo que se estabelece como uma forma de equilíbrio aos poderes exercidos pelo magistrado.

Isso se torna mais claro, quando se ressalta que a análise da competência jurisdicional é proveniente de uma interpretação sistemática, que engloba desde os Constituição até a lei infraconstitucional, de modo que deve ser analisada com base no devido processo legal. Essa construção sistemática, por sua vez, não se trata de meras opiniões pessoais dos agentes jurídicos, mas sim de uma técnica exercida de forma a compreender tanto a incidência da norma como toda funcionalidade do ordenamento.

A dinâmica hermenêutica que se consagra, mostra-se mais evidente com o novo Código de Processo Civil, que traz consigo uma nova conjuntura interpretativa da lei processual nas mais variadas ramificações do Direito, sobretudo no tocante a necessidade de uma interpretação harmônica que concilie na decisão judicial, os preceitos instituídos pela legislação que rege o processo com as previsões estabelecidas pela Constituição.

Toda essa complexidade, que é discutida sem pudor nos meios midiáticos como se fosse conversa de botequim, foi necessária de se observar no julgamento proferido pela Segunda Turma do STF, em que a maioria dos ministros entendeu que não havia qualquer conexão do caso do sítio de Atibaia com as denúncias envolvendo o ex presidente Lula na Petrobrás. Não havendo, portanto, motivo para que a ação continuasse a ser conduzida pela Justiça Federal do Paraná, mesmo porque, nos termos do art. 69, I e art. 70 ambos do Código de Processo Penal, a competência jurisdicional será determinada pelo lugar em que se consumar a infração, que no caso, se de fato ocorreu, não foi em Curitiba.

Por esse motivo, a necessidade de se restabelecer a função do Judiciário, de maneira a preserva-lo enquanto instituição, trata-se de algo imprescindível no contexto atual, ainda mais porque, não se pode mais admitir que decisões judiciais sejam proferidas em razão de pressões midiáticas ou de gritos e valores de uma classe média raivosa, cuja ignorância não deve jamais servir de paradigma para o funcionamento da ordem jurídica.

Murilo Naves Amaral – Advogado, professor universitário de cursos de graduação e pós graduação, mestre em direito público pela Univesidade Federal de Uberlândia
 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

9 Comentários

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  1. Susto.

    O STF deve ter levado um susto quando viu as fotos do triplex que não é do Lula tiradas pelo MTST. Eles devem ter se perguntado: Onde estão as reformas? E o elevador privativo? Perceberam então que estavam lidando com gente sem escrúpulos, pra não dizer bandidos. Aí resolveram retirar do árbitro de Curitiba os demais casos para não verem a imagem do tribunal piorar, nacional e internacionalmente.

  2. Esperando pra ver, qual a “

    Esperando pra ver, qual a ” saída honrosa” o STF vai arrumar pra justificar a submissão da Corte a Moro.

  3. com Judiciário indo do desagradável ao intolerável…

    sempre lesivo aos interesses nacionais e à cidadania

    já podemos dizer que papo de botequim enobrece mais o Direito

    papo recente, e com todos chegando a mesma conclusão, é que a democratização do Judiciário é mais urgente e necessária que a democratização da mídia

  4. Há muita razão, no que está

    Há muita razão, no que está dito. É verdade, a Justiça no Brasil perdeu a majestade, se é que algum dia já teve. São pessoas ridículas, com rituais identicamente ridículos, tudo exercido num palavrório sem fim, num linguajar muito difícil de ser entendido, que serve para esconder o pensamento, e afastar a compreensão de muitos dos interessados que os assistam, cujos defensores atribuem ser um linguajar técnico, que muitos fora do círculo da Justiça chamam de juridiquês. Esses aspectos todos negativos ficam ressaltados quando os juízes são expostos na mídia. Agora, uma coisa: a política tudo permeia, em tudo se intromete, assim como os interesses econômicos que lhes são subjacentes. Por isso, é ingenuidade, que, mesmo deixando os holofotes, como hoje está a Justiça no Brasil (em nada ajuda a Democracia e a prestação da justiça essa, de transmitir ao vivo os julgamentos, principalmente do Supremo Tribunal Federal, que funciona só como ferramenta de pressão, de constrangimento dos julgadores, ditados pelos interesses em jogo, patrocinados através da mídia). Mostra-se não ser uma boa prática, não possibilita ao menos o ar de isenção, que deveria nortear o ato de julgar.  Está transformado num jogo midiático para vender produtos de difusão: jornais, revistas, televisão etc.. Agora, ingenuidade ainda maior, é deixar somente por conta dos juízes o julgamento. Os interessados devem ter meios para também influir na decisão, dar suas razões não só as testemunhas. Trata-se da prestação de justiça, uma questão muito séria para ser resolvida somente pelos operadores do Direito, sem que os interessados, que em muitos casos são infinitamente mais numerosos que o ambiente do tribunal, caso, por exemplo do julgamento do Presidente Lula, que envolve toda a população, onde não se percebe isenção, onde os interesses políticos estão claros, sem disfarces, A prestação de Justiça deve ser objetivada de forma ampla. Justiça não pode ser prestada por plebiscito, muito menos por consulta ao eleitor. Deve ser baseada no cumprimento das Leis e da Constituição, que não se presta a interpretaçãos discutíveis, principalmente de suas cláusulas pétreas, que objetivam defender o cidadão , o Regime e o sistema de Governo, com base exclusivamente no que esteja nos autos. 

  5. Isso acontece

    Quando a Justiça começa a agir e falar políticamente abre espaço para que o povo também o faça em relação à justiça, considerando ainda que nada técnico tem aquela condenação do Lula, mas apenas política.

  6. Com supremo, com tudo
    O juca nunca foi tão preciso em definir o golpe. Tira se o judiciário, tira se a base do estado de direito. E sem estado de direito, ma Che democracia?

  7. O problema, creio, não é

    O problema, creio, não é exatamente o Direito se transformar em papo de botequim. 

    De fato, os estudantes de Ciências Jurídicas e Sociais sempre discutiram Direito no botequim.

    Em ocasições sociais, tanto as sedes das OABs quanto os Tribunais são transformados em botequins privativos de luxo. No caso dos juízes e desembargadores a bebida é paga com dinheiro público. 

    Há algumas décadas vários advogados e um juiz do trabalho se reuniam toda sexta-feira para bebericar no botequim que existia ao lado do prédio onde funcionava a Justiça do Trabalho. O convescote era tão frequente que ficou conhecido como sindicato da pinga.

    A novidade, portanto, não é o direito ser discutido no botequim. 

    A verdadeira inovação foi a transformação dos fóruns e tribunais em botequins durante o horário de expediente. Juízes e promotores não querem mais cumprir e fazer cumprir a Lei Orgânica da Magistratura e a Lei Orgânica do Ministério Público. Agindo como se fossem bêbados ferozes, eles usam a interner para se atacar uns aos outros por razões políticas, partidárias e ideológicas em prejuízo do Direito e das instituições a que estão vinculados.

    Enquanto a autoridade da Lei Orgânica da Magistratura e da Lei Orgânica do Ministério Público não for recuperada a bandalheira continuará, pois os bandileiros bêbados de toga estão embriagados. Eles descobriram que além do poder limitado que exercem em razão de suas funções eles podem exercer um poder ilimitado e tirânico sobre os demais. 

     

     

  8. Antes fosse papo de boteco.

    Antes fosse papo de boteco. No boteco as conversas são mais  profundas, tá mais para conversa de rede social. Com síndrome da manada, com frases feitas rasas e cheias de sofismas. É lamentável. Belo texto Urso.

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