Manoel Lobato e as prostitutas do baixo meretrício de Belo Horizonte, por Sebastião Nunes

Meus amigos mortos continuam sonhando seus sonhos estranhos. A vida das prostitutas pobres é realmente um inferno, como meu amigo Lobato descreve neste sonho quase real.

Manoel Lobato e as prostitutas do baixo meretrício de Belo Horizonte

por Sebastião Nunes

– Agora é minha vez de relatar um sonho – disse o farmacêutico Manoel Lobato, nascido em 1925 e morto em 2020, aos 94 anos, depois de gramar cerca de 10 anos com algo padrão Alzheimer, se é que essa era de fato a origem de seus lapsos de memória. Tirou os óculos com lentes tipo fundo-de-garrafa e continuou:

– Antes do sonho, tenho de contar de onde vim e para onde fui – preludiou. – Às vezes a gente se esquece de que não é nada e de que ninguém nos conhece. Nasci no interior de Minas, fui para o Rio de Janeiro trabalhar, me formei em farmácia e direito, pendurei o diploma num prego e fui ser boticário na vida. Cheguei a ter dez farmácias no Espírito Santo, casei e tive uma penca de filhos. Ah, en passant, conheci a Dinah, minha mulher, quando estudava farmácia. Vi aquela moça entrando na sala de aula e disse: “Vou casar com você”. Ela riu. Estava dois anos na minha frente e só voltamos a nos encontrar em Colatina, anos depois. “Lembra de mim?”, perguntei. “Lembro”, disse ela. “Você era o estudante que disse que ia casar comigo.” Concordei e perguntei: “Quer casar comigo?”. Foi assim.

Todos riram. Por todos quero dizer Adão Ventura, Luís Gonzaga Vieira, Otávio Ramos e Sérgio Sant’Anna, além das almas penadas Dom Quixote e Sancho Pança, mais o incansável e curioso São Pedro, sempre perambulando no Portal do Paraíso, ouvidos em pé e chaves tilintantes.

– Cansado da labuta e da rotina, vendi as farmácias e abri outra na Avenida Oiapoque, em Belo Horizonte, ao pé da rodoviária, tangenciando a zona boêmia. Tinha freguesia razoável: prostitutas, bêbados, drogados, soldados, carregadores, cafetões, malandros, vagabundos, trambiqueiros, ladrões e descuidistas; enfim, o que então era chamado de escória da sociedade, como se a escória estivesse ali embaixo e não lá em cima, onde os poderosos sacaneiam e dão as cartas, nesse jogo viciado chamado vida.

A HORA DO SONHO

– Feito esse largo preâmbulo e explicado quem sou, o sonho tem mais sentido e foi o seguinte:

“Duas horas da tarde de um dia qualquer. Estava matando moscas no balcão da farmácia quando entrou uma moça de seus trinta anos e olheiras de quarenta. ‘Boa tarde’, disse ela educadamente. ‘Tarde’, respondi como na roça, continuando com meu afazer. Tinha matado umas vinte moscas, que formavam um miserável montinho escuro num canto. ‘Queria um veneno bem forte e de efeito rápido, pra matar uns ratos lá em casa’. Acostumado com aquele tipo de gente e aquela história de veneno, olhei bem para ela. ‘Tem certeza de que vai matar rato?’ Ela me olhou firme: ‘Tenho’.

A pequena plateia, atenta, adivinhava o que viria, mas ninguém disse nada.

“Propus: ‘Por que você não pega um desses gatos da beira do rio? Garanto que não sobra um rato’. ‘Não, disse ela. Quero matar com veneno’. Matreiro, insisti: ‘E desse veneno, quanto você vai engolir?’ Ela baixou os olhos, remexeu na bolsinha de pano xadrez que apertava nas mãos, e perguntou: ‘O senhor pensa que sou doida?’ ‘Não’, respondi, ‘só penso que não me contou a história certa’. ‘Por quê?’ Me encarou de novo, desconfiada. ‘Tenho muita prática de farmácia. Só de olhar pra um cliente sei o que está pensando’. Ela abriu a bolsinha: ‘Posso pagar, se é isso que pensou. Não vou dar o cano’. Resolvi arriscar: ‘Sei que pode pagar, mas não é isso. Por que quer se matar?’, indaguei.”

A turma estava atenta. Sabia que o velho Lobato gostava de inventar, mas sabia também que gastara muito cotovelo no balcão e não se deixaria enganar.

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A HORA DA REVELAÇÃO

“Ela baixou os olhos de novo e ficou em silêncio. ‘Por que não me conta seus problemas, quem sabe posso ajudar’, disse eu. Depois de alguns minutos amassando a bolsinha, ela enfim começou: ‘Tenho vinte e três anos, cara de trinta, rugas de quarenta e azar pra cem. Ando nessa vida desde os treze anos, quando meu pai me engravidou e expulsou de casa’.”

Havia moscas voando? Ninguém ligava para moscas, muito menos o narrador do sonho.

“A moça, de rédeas soltas, prosseguiu: ‘De Açaraí mudei pra Vitória e depois pra Belo Horizonte. Sempre na vida. Fiz cinco abortos, no último quase morri, até que hoje entendi que não dá mais’. O que mais me chamou a atenção foi ela citar Açaraí, onde eu também nasci. Seria uma sobrinha distante, uma parenta pobre, filha de algum conhecido dos tempos antigos? ‘Posso ir no banheiro?’, perguntou ela. ‘Não tem nada lá que preste pra você se enforcar’, respondi. E nesse ponto o sonho acabou.”

Lobato ainda disse:

– Esse sonho é um resumo de minha vida de farmacêutico. Centenas de vezes atendi, na farmácia, mulheres parecidas, desesperadas e à beira do suicídio. A maioria morre nova, roída pela tristeza, às vezes antes dos trinta, secas, chupadas, pura ruga e desencanto. Mas de noite precisam fingir, ou nem almoçam no dia seguinte. Raramente dão sorte. Às vezes, numa dessas noites, encontram na cama um fazendeiro bondoso e solitário que se encanta pelo rosto, pela conversa ou pelo corpo e casa com elas, que logo se tornam senhoras distintas num vilarejo qualquer, tão distintas como a mulher do prefeito. Mas, na imensa maioria, a vida das prostitutas pobres é o próprio inferno.

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“No fundo do quintal de minha farmá­cia passa um rio chamado Arrudas. Era um ribeirão limpo; jogaram muito lixo e muita porcaria nele. Mesmo assim, suas águas teimam em lavar a sujeira das margens e levar o lixo para longe. O Arrudas é meu velho companheiro de luta. Ele sabe que eu também convivo com a sujeira do bairro sem me sujar muito.” (Manoel Lobato)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

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Sebastiao Nunes

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