O canapé miraculoso de Kafka, por Sebastião Nunes

Continuando a ressurreição de meus defuntos preferidos, volto a relembrar o grande (exceto para ele mesmo) Franz Kafka.

O canapé miraculoso de Kafka

por Sebastião Nunes

Conheci a literatura de Kafka na década de 1960 e sua personalidade sempre me fascinou. Em certo sentido, sua trajetória no mundo foi uma versão judaica das violentas colisões estéticas e existenciais do holandês Van Gogh. O que tanto me atraiu neles? O fracasso artístico e pessoal enquanto vivos. O enorme reconhecimento post-mortem. A perene insegurança diante do próprio trabalho. A fragilidade psíquica. As doenças reais ou imaginárias. As crises de desesperança.  

Atravessei seis décadas sem ter uma compreensão profunda do indivíduo Franz Kafka. Só agora, lendo a versão brasileira de seus diários completos (Editora Todavia, 2021, tradução de Sergio Tellaroli), sem os cortes das edições expurgadas de seu amigo e testamenteiro Max Brod, pude finalmente entender quem realmente foi o autor de “O castelo”, “A metamorfose”, “O processo”, “Na colônia penal”, “América”, além da “Carta ao pai” e dos contos (que Borges preferia aos romances), aforismos e fragmentos.

TEMPO PARA TORNAR-SE ESCRITOR

Kafka foi um atormentado pela necessidade de escrever, para ele a única forma de dar sentido à vida. Sem a literatura não era nada. Odiava tudo – ou quase tudo – que não fosse literatura.

Solteirão, morando na casa do pai comerciante, queixava-se permanentemente de barulho e intromissão. Seu quarto era frequentemente atravessado pelos pais e pelas irmãs (três), que conversavam em voz alta, embora para ele um simples sussurro fosse o suficiente para destruir a concentração e o impedir de continuar escrevendo.

Maníaco por silêncio? Sim. Em busca desse indispensável silêncio, por duas vezes alugou quartos fora de casa, nos quais imaginava poder escrever sem interrupção. Não deu certo. No primeiro, conversavam e caminhavam parte da noite no andar de cima; no segundo, o barulho do trânsito na rua e os sussurros da senhoria com os hóspedes eram o entrave. Se nada disso acontecia, ficava à espreita, imaginando ruídos estranhos surgindo do nada a qualquer momento. Literalmente, uma tortura.

ESTRANHAS INFLUÊNCIAS

De acordo com um costume antigo, não se podia ler a Torá no Natal. Um rabi usava a noite de Natal para cortar papel higiênico para o ano todo. Segundo uma tradição medieval, uma pessoa só pode ocupar-se de literatura e outros saberes mundanos a partir dos setenta anos. Numa visão mais moderada, a partir dos quarenta. No banheiro, era proibido pensar na Torá. Portanto, ali podia-se ler e pensar assuntos mundanos. Um morador de Praga tinha grandes conhecimentos das coisas mundanas; estudara todas no banheiro.

Estes e centenas de outros exemplos atravessam (e atravancam) o sótão mental de Kafka, todos reproduzidas no Diário, às vezes seriamente, outras nem tanto.

UM CASAMENTO IMPOSSÍVEL

Kafka só escrevia à noite. Para se manter acordado, dormia parte das tardes num canapé. Quando não conseguia dormir à tarde, dificilmente escrevia, pois sofria de palpitações, dores de cabeça e estomacais. Depois de dormir algumas horas, saía para encontrar amigos, ver peças e ouvir palestras e até ir ao cinema, que já existia em Praga na década de 1910. Voltando para casa, nunca tarde demais, e quando todos já dormiam, punha-se a escrever freneticamente, quando conseguia.

Escreveu milhares de cartas, mais de quinhentas delas para Felice, que conheceu em 1912. Numa delas, confessava: “Com frequência, venho pensando que a melhor forma de vida para mim seria trancar-me no mais fundo de uma vasta cova, com uma lâmpada e tudo o necessário para se escrever. Me trariam comida e a deixariam sempre longe de onde eu estivesse instalado, seria meu único passeio. Em seguida, regressaria a minha mesa, comeria lenta e conscientemente, e em seguida me poria a escrever”.

Corresponderam-se intensamente, encontraram-se diversas vezes (ele morava em Praga, ela em Berlim), tornaram-se noivos e por diversas vezes duvidaram de que o casamento fosse possível. Quando decidiram que sim, Kafka alugou um apartamento e, quase imediatamente, desfez o noivado. Teve de recorrer a um advogado da empresa do pai para romper o contrato e voltar para seu quarto e seu canapé.

Ah, o canapé kafkiano! Nele dormia e sonhava coisas estranhas, como nós todos, mas as dele eram muitas vezes transformadas em narrativas, numa época em que o estranho e o fantástico eram habituais na literatura de língua alemã.

Em setembro de 1917 Kafka foi diagnosticado com tuberculose; em dezembro, rompeu para sempre com Felice. Como se casar com um cara que dormia durante a tarde e usava quase toda a noite para escrever, quando conseguia? Ela se casou em 1919 com um prosaico comerciante. Kafka morreu na Áustria cinco anos depois.

Agora, finalmente, na metade de 2022, entendi Kafka: o responsável por tudo – até pelos escritos – foi o canapé, o miraculoso cúmplice silencioso.

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“19/02/1920. O motivo pelo qual o veredito dos pósteros sobre um indivíduo é mais correto que o de seus contemporâneos está no morto. Uma pessoa só se desenvolve à sua maneira depois da morte. Para o indivíduo, estar morto é como a noite de sábado para o limpador de chaminés: ambos lavam, então, a fuligem do corpo. Somente aí se torna visível se os contemporâneos lhe causaram mais dano do que ele a eles. Neste último caso, foi um grande homem.” (Franz Kafka)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

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Sebastiao Nunes

1 Comentário

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  1. Para quem gosta de escrever essa necessidade é quase fisiológica.
    Quanto ao canapé de Kafka alcancei o entendimento do porquẽ o Abraham Weintraub alegou ter lido kafta.
    Deve ter sido num coquetel de lançamento de algum livro do escritor , onde o ex-ministro deve ter experimentado os dois: canapé e kafta.

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