O grande festival de Sertanejo Universitário no Céu
por Sebastião Nunes
Deus estava indescritivelmente entediado, como escreveria um escritor que não sabe escrever ao tentar descrever o tédio de Deus.
Repuxando as imensas barbas brancas com que os indescritivelmente estúpidos o dotaram, como se Deus fosse tão estúpido quanto eles a ponto de se fantasiar de um velhote branquelo, grandalhão e barbudo, o velhote barbudo, grandalhão e branquelo apelou para seu Consultor-Chefe em momentos dramáticos.
– Diga-me, Satanás, o que faria se estivesse mergulhado num tédio indescritível?
Satanás dedilhou a barbicha negra, olhou de banda para ver se o ilustre amigo estava mesmo indescritivelmente entediado, concluiu que sim, e murmurou:
– Você não pode torturar alguns desses anjos idiotas, pode?
– Não – respondeu Deus. – O Mal por diversão me foi interdito por mim mesmo.
– Nem ao menos chamuscar a ponta das asas deles, assim de levezinho?
– Não.
– Nem chicotear anjos masoquistas, que devem existir aos milhões e adorariam sofrer um pouco, além de ficarem satisfeitíssimos?
– Também não.
– É o diabo essa mania de não poder fazer maldade, uma das delícias da vida. Parece coisa de santo. Ei, que tal enterrar até o pescoço alguns desses ermitões santarrões, que passam a vida no deserto, rezando, se coçando e comendo gafanhoto?
– Já disse que não, Satanás. E vê se me dá alguma sugestão que preste!
ENFIM, UMA SOLUÇÃO QUE PRESTA
– Já sei! – arregalou os olhos o Consultor-Chefe. – Vamos promover no Céu um grande, um imenso, um indescritível festival de Sertanejo Universitário!
– Sei não – duvidou Deus. – A música desses caras é um porre. Dois acordes, e toma repetição. E as letras? Meu Jesus! Como alguém pode ser tão idiota a ponto de escrever tanta besteira?
– “Não sei se dou na cara dela ou bato em você/ Mas eu não vim atrapalhar sua noite de prazer/ E pra ajudar pagar a dama que lhe satisfaz/ Toma aqui um 50 reais.” – entoou Satanás um trecho de Naiara Azevedo.
– Cristo! – que coisa mais brega!
– Que tal esta, de Gusttavo Lima? Tem até rima: “Eu sei que eu não posso ligar pra quem já me esqueceu/ Coração prometeu nunca mais recair/ Só que agora bebeu, tá sem dignidade/ Me bateu uma saudade/ Daquelas que o coração arde…”.
– Valha-me, São Pedro! Onde estava eu com a cabeça ao criar tanto imbecil, capaz de compor e cantar tanta imbecilidade?
– O pior, meu caro, é que existem milhões de imbecis curtindo essas asneiras.
Nesse instante, entrou esbaforido outro velhote branquelo, grandalhão e de barba branca, com uma penca de chaves pendurada na camisola larga:
– Foi daqui que chamaram?
Deus olhou para Satanás, que olhou para São Pedro:
– Engano, Pedro. Mas já que tá aqui, o que acha da ideia de promover no Céu um grande festival de Sertanejo Universitário? É que Deus está entediado, melhor, indescritivelmente entediado, então me ocorreu esse festival pra torturar um pouco anjos, santos e capetas.
– Alto lá! – protestou o Senhor. – Desde quando capeta pode entrar no Céu?
– Ora – argumentou Satanás –, se o Céu vai ficar lotado de cantor brega, que mal tem alguns milhares de capetas a mais ou a menos?
– É – reconheceu Deus. – Capeta por capeta, tanto faz no Céu quanto na Terra.
– Então tá decidido – decidiu Satanás. E olhando para Pedro:
– Eu fico por conta do palco, da iluminação e do som. Deus fica encarregado de providenciar os cachês. Acho que R$ 1.000.000,00 por dupla é suficiente. E você, Pedro, vai providenciar os convites, com um belo R.S.V.P., que será pró-forma, pois esses caras topam tudo por grana.
Pedro não gostou nem um pouco da ideia, mas olhou para Deus, viu que estava com o rosto brilhando de satisfação, e teve de concordar:
– Ok. Você acha que 10.000 convites tá bom?
Satanás riu aquele risinho galhofeiro dele:
– 10.000? Você tá pensando o quê? Pela última contagem do Serviço Celestial de Vigilância Sanitária existem para mais de 999.999 duplas de Sertanejo Universitário no Brasil. Boa parte podre de rica. Todos compondo e cantando besteira. Quanto mais besteira, mais sucesso. Aí estão os canais de TV que não me deixam mentir.
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“Aí que mora o perigo, aí que eu caio lindo/ Aí que eu sei das consequências, mesmo assim vou indo/ É que vale a pena, vale a cama, vale o risco/ O que é um arranhão pra quem já tá fudido?/ Oh, oh, oh, oh.” (Henrique e Juliano)
Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.
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