O traficante de armas e a redenção pela dor, por Sebastião Nunes

Enquanto os povos brigam e se matam, sigo em minha guerra de papel, desta vez relembrando o garoto que mudou a linguagem humana para sempre.

O traficante de armas e a redenção pela dor

por Sebastião Nunes

O homem magro e vestido de branco descia capengando a ladeira barrenta, quando encontrou uma leva de negros conduzidos a chicote pelo capataz. Cada preto carregava um pesado fardo de armas, amarradas com embiras de cânhamo. O homem alto e magro esfregou com raiva o joelho direito.

– A perna ainda tá doendo, sô Rambô? – indagou solícito o capataz, parando um momento de chicotear os negros e limpando com a mão o suor da testa.

– Que nem o fogo do inferno – respondeu irritado Arthur. – Tem hora que dá uma vontade danada de cortar essa desgraça fora!

Tinha 36 anos e estava em Harar tentando enriquecer. Aliás, foi só descobrir que poesia não dava grana para desistir e começar suas incansáveis andanças pela Europa, até dar com as costas na África. Agora estava na Etiópia em busca de riquezas.

De noite, no catre de varas que o calor monstruoso transformava numa assadeira maldita, rolava de um lado para o outro, de olhos arregalados. Por que insistia nessa luta insensata, em vez de voltar para casa com o ouro que acumulara e trazia amarrado na cintura, dia e noite, em pé ou deitado, com medo de ladrões?

Desistiu da poesia, desistiu de se tornar um vidente, teve dezenas de amantes, fez de tudo um pouco para se manter e à sua febre de se tornar um burguês sólido, mas estava encalacrado ali, em Harar. Embora amigo do governador, que o protegia nas horas de aperto, tinha pressa. Seu grande sonho era voltar para a França, casar e ter um filho, que se tornaria engenheiro famoso. Com pouco mais de 30 anos, o futuro lhe parecia claro, transparente e luminoso. O único problema era a merda do joelho.

A REVELAÇÃO DA DOR

Tirou do bolso uma garrafinha de absinto que virou goela abaixo. Bebeu tudo, sob o olhar pedinchão do capataz, que fingiu não ver. Em seguida sacou um cigarro de haxixe, que tragou longamente. Depois de jogar a bagana fora, puxou um cachimbo recheado de ópio e se pôs a fumar quase tranquilo, percebendo que a dor diminuía.

“Ópio é um grande remédio”, pensou olhando a caravana de negros. Ganharia um bom dinheiro com aquele carregamento. Estava um pouco tonto e levemente eufórico. “Boa mistura essa que eu e o sacana do Verlaine inventamos”.

Debaixo do sol fulgurante, que afugentava até os elefantes, os negros, de costas nuas, continuavam a transportar fardos.

“Os crioulos sabem o que é a dor”, pensou de novo, “mas para eles a dor é tão constante que já se acostumaram. Será que alguém se acostuma com a dor?”.

Na biblioteca do Museu Britânico descobrira o maluco do Dostoiévski. Durante horas lia e relia aquelas páginas, recheadas de ansiedade e sofrimento. Era um tumulto selvagem de ideias desencontradas, de loucuras vertiginosas – e de sofrimento. Com o russo aprendeu que o centro da vida humana estava mergulhado em dor e dilacerado entre razão e fé. Mas não era nisso que acreditava. Dor e sofrimento não tinham nada com ele. Essas besteiras eram filosofia de velhos e doentes.

VERLAINE VERSUS RIMBAUD E VICE-VERSA

– Vou descendo, sô Rambô – informou o capataz, chicoteando com vontade o negro mais próximo. – Se demorar muito não pego o navio.

– Faz bem, Pierre – concordou Arthur, vendo com satisfação o sangue minar nas costas do preto. – Chegue a tempo e terá boa recompensa.

O capataz balançou a cabeça, sorriu, estalou o chicote no costado de outro preto. Aos berros, comandou a tropa para que apressasse o passo.

“Com Verlaine”, pensou Arthur, “alcancei o desregramento dos sentidos que sonhei. Dias e dias sem fazer nada, mergulhado em sexo, haxixe e absinto.” Acariciou a barba rala, mas o joelho reclamou seus direitos. Gemeu baixinho e soltou uma praga, a mão apertando com força o joelho latejante.

“Foi através de Verlaine que tive os estalos que me conduziram a ‘Uma estação no Inferno’ e às ‘Iluminações’. Sem ele não passaria de um provinciano, afundado eternamente na mediocridade de Charleville, aquela bosta de lugarejo.”

O capataz, sempre chicoteando os pretos e berrando ameaças, sumiu. Arthur, claudicando, antevia a vida luminosa que teria logo que voltasse à França e que um bom médico desse um jeito no seu joelho. Aí, sim, poderia até procurar Verlaine e fazê-lo desistir daquela idiotice de catolicismo, em que mergulhara depois de curtir a cadeia por dois anos. “Aquele tiro em mim foi uma estupidez”, continuou pensando. “Mas o pior foi minha mãe denunciá-lo”.

Uma dor horrível no joelho o obrigou a parar.  

“Não desistirei”, teimou consigo mesmo. “Volto à França assim que vender esse carregamento. Não devo esperar mais pra curar essa desgraça de joelho”.

Corria o ano de 1890. Em 1891, quando chegou a Marselha, teve a perna amputada acima do joelho e os médicos descobriram, no mesmo joelho, um carcinoma. Seis meses depois, aos 37 anos, morreu amparado pela irmã Isabelle.

Especulações da época sugerem que a sinovite e o câncer foram provocados pela quantidade de moedas de ouro que o mais revolucionário poeta do século XIX trazia amarrada na cintura.

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“Desejo ser poeta e estou trabalhando para me tornar um vidente. É uma questão de chegar ao desconhecido através do desregramento de todos os sentidos. O sofrimento é enorme, mas é preciso ser forte. Nasci poeta e aceitei o meu destino como poeta. Não é minha culpa.” (Arthur Rimbaud)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Sebastiao Nunes

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