O primeiro encontro de Machado de Assis com sua futura conselheira
por Sebastião Nunes
Sentada na banqueta da penteadeira e olhando-se no espelho, Carolina lançava olhares furiosos para sua insossa duplicata:
– Por que não nasci eu um simples vagalume? Com essa cara de espantalho, o melhor que posso conseguir é um mulato magricela e baixinho. E ainda é capaz de usar pince-nez, o desgraçado.
– Ora, Carola, deixa de exigências – disse atrás dela Jacinto, o impaciente irmão. – Já estará muito bem se te desencalhares depressinha neste país de bárbaros. Que importa se o gajo for branco, preto ou amarelo? Importante é casares-te.
Carolina resmungou, fungou, ergueu o bonito nariz, examinou os delicados pelos que se agrupavam em suave mancha escura sobre os lábios, e não se conteve:
– Tudo de belo que tenho, além do nariz, é o buço que minha mãe me deixou. E essa cabeleira, que parece me terem plantado videiras secas na cabeça?
– Tens graça, mana – riu-se o irmão. – Com essas tiradas, se calhar, ainda deitas as mãos a um poeta tísico, que te fará a corte embevecido e entre escarros.
Com um ruge-ruge áspero, Carolina ergueu-se, deu meia volta e disparou para o quarto de dormir, onde abriu com estrondo as portas do guarda-fatos.
DIANTE DO GUARDA-FATOS
Abriu e pasmou. Saias, saias e mais saias. Vestidos, vestidos e mais vestidos. Mantilhas, mantilhas e mais mantilhas. Leques, luvas, meias, cuecas e espartilhos, cada qual em sua gaveta. Uma profusão medonha de amarelos, vermelhos, pretos, azuis, verdes… um arco-íris maluco e tortuoso. Compras ao acaso. Delírios de donzela velha. Restos de esperanças rotas, sonhos desalinhados, rebuçados para enganar trouxas.
Exibindo o relógio, o irmão se fez apressado:
– Na penteadeira, nada fizeste. Aqui, limitas-te a olhar qual uma parva. Se não te aprontas logo, se não te vestes e te penteias, perdes o sarau e mais uma oportunidade. E olha que lá estará a fina flor da intelectualidade da corte. Sem contar os penetras janotas que são maioria nessas ocasiões.
– Mas que hei de fazer? Se visto vermelho, dirão que sou uma prostituta à cata de protetor; se azul, dirão que tento passar por angelical; se preto, que viúva alegre; se amarelo, só risos à socapa.
– Estes teus chiliques o que me parece que são é despeito. Não te achas boa o bastante para defrontar rapazes casadoiros. Tens medo, é o que é. E logo tu, mulher que todo o Porto, quiçá Portugal inteiro, admira pela cultura e desenvoltura das ideias! Por que terás de passar por tola no Rio de Janeiro?
NA RUA SÃO CLEMENTE
– Creio que me adiantei – sussurrou para as paredes um mulato magricela de idade indefinida, metido num colarinho alto que lhe espetava o queixo. Trazia um guarda-chuva enorme, que se esquecera de deixar na rouparia.
Em volta, gatos pingados: ele de fato se adiantara.
O mulato, que era baixote e gago, enfiou os dedos entre o colarinho e o pescoço, para alargar um e emagrecer o outro. Suava.
Passou um criado preto com uma bandeja de refrescos, que deu meia-volta ao reparar no mulato. Ergueu o queixo e empinou a bunda, dando-se ares de importante e deixando o mulato de mão estendida a curtir a sede dos deserdados.
O problema é que não estava habituado àquela gente. Galgara sólidos degraus na burocracia, largara para trás o morro e a pobreza, escrevera e publicara artigos, crônicas e livros, recebia todo mês seu punhado de mil réis, mas não se acostumava com a vida em sociedade. Fazia-lhe mal.
Tampouco sabia se vestir. Aconselhara-se com o alfaiate e ali estava enfatiotado, de casaca listrada e flor na lapela, calça frisada e botina de verniz. A vestimenta nova e mal aparelhada o deixava irritado e constrangido. Devia estar em casa com seus amados livros… Mas não, plantava-se num canto, de pé, ignorado até pelo preto dos refrescos. Por que não nascera um simples vagalume?
UMA ENTRADA TRIUNFAL
Meia hora depois o salão estava repleto. O mulato continuava no seu canto, só de vez em quando cumprimentando conhecidos literatos ou colegas de repartição.
Jacinto o descobriu e trouxe-lhe a irmã:
– Apresento-te minha irmã Carolina – disse com um sorriso. – Está no Rio para me cuidar da saúde, como desejou a família. Carola, este é o Machadinho, escritor dos bons, dos maiores que aqui há no Império.
Olharam-se ambos com desconfiança, o ex-favelado e a tripeira.
E, como é usual em primeiros encontros, os dois bicudos não se beijaram.
**********
“A razão é uma ilha perdida no oceano da loucura” (Machado de Assis)
Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.
Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
Machado de Assis. A grandiosidade Intelectual Miscigenada da Nação Potência Continental da 1.a República, República Paulista, quando ainda era cabeça antes de metamorfosear-se em rabo a partir de 1930. Século de extraordinário projeto de Civilização. Invejado pelo Mundo 1830/1930. Machado de Assis compartilhando da criação desta Nação ao lado de Luiz Gama ou André Rebouças. Mas numa Tempestade Perfeita de Mediocridade nos enterramos em desgraças esquerdopata-fascistas de higienismo, xenofobia, racismo, nazismo, ditadura. Estruturados e replicados por Revisionismo Histórico entre “Homens Brancos” como Florestan Fernandes, Paulo Freire, Filinto Muller, Tancredo Neves, JK, GV, Jango, Tancredo Neves,…Americanização e Eurocentrismo de Mulher Branca Européia com fruteira na cabeça, tornamo-nos caricatura e pária mundial. 3.o Mundo. Jogamos na Latrina da História, a espetacular Cultura Brasileira Miscigenada de gigantes como Machado ou Lima Barreto. Ainda bem que este lixo, esta desgraça começamos a limpar e extinguir da História Brasileira a partir de 2018. Poderemos voltar a nos espelharmos em Luiz Gama, Machado de Assis, Di Cavalcanti, Luis Rebouças, José do Patrocínio, D. Pedro II, José Bonifácio de Andrada e Silva, Borba Gato, Anhanguera, Lima Barreto, Nilo Peçanha,… Estamos voltando a ser cabeça, Vanguarda Mundial depois da escuridão de quase 1 século de cabresto como Anão Diplomático. Estrume esquerdopata-fascista onde nos deixamos enterrar. A Liberdade finalmente…
Este foi na mosca!
e não é que um bozolóide (Regis Gonçalves) lê o GGN?
“…Jango, Leonel Brizola,…”
“…Luiz Gama, André Rebouças,…”
Nosso genial Sebastunes Nião , trabalha com verve & imensa ironia visitando nossa história . Sempre brilhante !