A marginal estadunidense Lucia Berlin e outros marginais por atacado, por Sebastião Nunes

Os marginais literários são um grupo infeliz de autores que nadam sempre contra a corrente. Escolhi uma autora que comeu o pão que o diabo amassou, e só teve sucesso e babação de ovo depois de morta.

A marginal estadunidense Lucia Berlin e outros marginais por atacado

por Sebastião Nunes

Para Maria Zélia, Zelinha, pelos 35 anos de cumplicidade e de mãe coruja.

A espigada senhora, cara de passarinho velho, empurrava num carrinho de mão seu cilindro de oxigênio quando, no meio da tarde de sol esfuziante, deparou com um sujeitinho magricela que lhe barrava a passagem.

– Boa tarde, madama – disse ele, dobrando a espinha. – Bela ocasião para colher um pouco de vitamina D grátis, não é mesmo?

Lucia estranhou. Puxou um pouco de oxigênio pelo tubo que lhe saía da blusa na altura do pescoço e examinou o estranho.

Baixo como um francês, moreno como um latino, jovem como um estudante, não lhe recordava no momento ninguém que conhecesse. Vestia um pesado casaco de lã puído (apesar do calor), gravata e luvas, uma das quais descalçou para beijar-lhe a mão.

“Cruzes!”, pensou Lucia, “quanto mais eu rezo mais assombração me aparece. Quem será esse doido?”. E em voz alta:

– Será que conheço você de algum lugar? Quem sabe da lavanderia? Da prisão? Do hospital? Dos botecos?

– Não, madama. Não sou nenhum de seus personagens, embora não desgostasse sê-lo. Sou um simples poeta que teve o azar – ou a sorte, sei lá – de morrer jovem.

APRESENTANDO A MARGINAL

Lucia Berlin era uma cigana nata. Nasceu numa vila de mineradores no Alasca, trotou pelos estados de Idaho, Montana e Arizona seguindo o pai, engenheiro de minas, aprendeu a ler com a mãe, foi deformada pela escoliose aos 10 anos, viveu adolescência e boa parte da juventude no Chile, onde conheceu a delícia de ser rica, morou no Novo México, na Califórnia e no Colorado, onde terminou seus belos e atormentados dias.

Casou três vezes, pariu quatro filhos e, abandonada por todos os maridos, teve de sustentá-los como enfermeira, professora de espanhol no ensino médio, faxineira e, quando os ventos, finalmente, sopraram a seu favor, como professora universitária, mas aí já estava completamente fodida, embora os alunos a adorassem.

Fodida mesmo: o progresso (sic) da escoliose causou-lhe uma perfuração no pulmão, que a obrigou a carregar, pelo resto da vida, um cilindro portátil de oxigênio.

No seu túmulo está gravada uma frase que, macarronicamente traduzida, pode significar “Chamam a coisa de mágoa, embora sentir falta de alguém seja uma dor física real, no sangue e nos ossos”.

VOLTANDO AO CAVALHEIRO ENCALORADO

Lucia, como toda pessoa castigada pela vida, não tinha paciência com estranhos. Franziu a testa e perguntou, sem mesmo abrir a boca:

– E daí?

– Daí que eu e alguns outros integrantes do marginalato decidimos homenageá-la, outorgando-lhe um diploma de “Marginal Extraordinária”.

– E quem é você? – indagou a ex-faxineira, ex-professora e ex-enfermeira, certa de que estava caindo num conto do vigário ou coisa parecida.

– Meu nome é Isidore Ducasse, mais conhecido por Conde de Lautréamont, poeta francês nascido no Uruguai e morto, em circunstâncias que a história se recusou a esclarecer, aos 24 anos.

Erudita, apesar da vida tumultuada e do alcoolismo quase perene, Lucia sabia da existência do conde, embora nunca o tivesse lido. Sabia de sua importância e até mesmo que o chato do Breton puxava para a brasa de sua sardinha, como se o surrealismo fosse um tremendo buraco negro, capaz de sugar tudo.

– Prazer – disse ela simulando um sorriso na boca larga. – Claro que o conheço, embora não o tivesse reconhecido, assim tão de repente.

Isidore sorriu, um tanto pernóstico:

– O prazer é meu. E tenho muito gosto em saber que admira minha obra, em vida tão desprezada. Mas tudo bem. Se eu tivesse morrido aos 90 anos, por exemplo, teria tempo de sobra para me deliciar com a glória.

A MARGINÁLIA EM FRANGALHOS

Lucia franziu o nariz de novo e ia responder quando, batendo asas, brotaram do nada, em desordem organizada, uma multidão de Marginais Extraordinários. Tão densa multidão – dezenas, centenas, milhares –, que cobriu a luz do sol e fez, da tarde quente, noite espessa.

Lucia se desesperou:

– Para, para, para! Será que nem depois de aposentada eu tenho sossego? Que é que eu tenho com essa gente?

Perplexo com a grosseria da madama, o Conde de Lautréamont bateu as asas e sumiu no nada. Imediatamente a marginália descendente seguiu o exemplo, como se nunca tivesse existido, o que, em muitos casos, era verdade verdadeira.

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“Em todas as janelas que davam para a rua principal de El Paso havia grandes letras douradas que diziam: ‘Dr. H. A. Moynihan. Eu não trabalho para negros’.” (Lucia Berlin)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Sebastiao Nunes

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