Um goleiro mão-de-alface pega três pênaltis e ajuda o time a se salvar, por Sebastião Nunes

Albert Camus influenciou toda a minha geração. Enquanto a humanidade durar, seus textos serão um facho de luz contra a barbárie.

Um goleiro mão-de-alface pega três pênaltis e ajuda o time a se salvar

por Sebastião Nunes

– Passa a bola, Betinho – gritou o segundo volante, agitando as mãos como um polvo se afogando. – Você está muito lento na saída da bola!

Betinho não se considerava mole. Dava duro nos treinos, vivia escalavrado, seus pulsos doíam de tanto exercício, saltava como um gato, e vinha o otário dizer que era mole? Com raiva, deu um chute furioso na direção do centroavante que, esse sim, era mole para caralho e só dominava a bola na canela.

Como era óbvio, o centroavante matou a bola na canela, tentou correr atrás dela, mas viu, com tristeza, a coisa redonda e dura se aninhar tranquilamente nos braços do goleiro rival.

Se não havia perigo, cuidava de melhorar as péssimas condições do gramado. Aliás, chamar aquele pasto de gramado era exagero. Um terço era argila, outro terço era pedra e a terceira parte exibia, avarenta, alguns tufos de grama entre outras plantas rasteiras, tipo caruru, beldroega, serralha, picão, trevinho, dente-de-leão, tiririca, principalmente tiririca, praga quase inextirpável por conta das batatas-filhote que se multiplicavam, escandalosamente, debaixo da terra.

Quatro horas da tarde. Verão no pico. Sol fervendo os miolos. Suor escorrendo em longos filetes camiseta e calção abaixo, encharcando os meiões. Com o bico da chuteira, recolocava no lugar os tufos de grama arrancados na batalha campal.

Ao lado do campo, o técnico informal, o professor de filosofia Jean Grenier, gritava orientando seus lerdos comandados. Sorte que o outro time, do liceu de Orã, era pior ainda.

BODAS EM TIPASA

Apesar da diferença de idade, Betinho e o professor haviam desenvolvido sólida amizade, cimentada pelo gosto da filosofia. Costumavam se enredar em longos papos depois das aulas. Grenier estava habituado a ler a prosa lúcida, criativa, lúdica e frequentemente paradoxal do aluno de 15 anos. Estava convencido de que a capacidade de escrever de Betinho era muito superior a sua própria. Não tinha inveja, apesar de rabiscar à noite breves apontamentos filosóficos, que considerava inseguros e inferiores, em estilo e profundidade, aos de Betinho. De vez em quando sugeria que a Argélia era pequena demais para uma vocação daquele tamanho.

– Paris é seu destino, Betinho – dizia. – Prometo recomendá-lo aos amigos de lá. Pode ir arrumando as malas e se despedindo de sua mãe.

Mas o garoto não estava pronto. Preferia aguçar suas armas ali mesmo, na vida pacata de Argel. Claro que sonhava com Paris. Mas lá iria se defrontar com gigantes tipo Sartre, que o atemorizava. Além disso, adorava teatro, e era em Argel que testava seus esquetes. Havia tempo, muito tempo, pensava debaixo do travessão.

VOLTANDO AO FUTEBOL

Distraído, Betinho não percebeu quando o lateral adversário chegou à linha de fundo e, depois de um corte seco no zagueiro, cruzou para a área. Betinho saiu no gol e tentou socar a bola, mas errou, um erro fatal, que empatou a partida e levou a decisão para a cobrança de pênaltis.

“Estou frito”, pensou, colocando-se mais ou menos na metade da distância entre as traves. “Se esse bosta fizer o gol, cumpriu seu papel”, continuou pensando. “Se chutar pra fora, sorte minha”.

Quando o juiz apitou, Betinho fechou os olhos e pulou para a esquerda de pernas abertas. Sentiu o impacto da bola na perna direita e a gritaria da torcida. “Dei sorte”, pensou de novo, abrindo os olhos, levantando-se e sacudindo em saudação as luvas.

Sentiu o time rival amedrontado. Escalado para bater, o canela dura mandou um canhão no meio do gol e marcou. Na bola parada ele era bom.

“Se pegar mais um, nós ganhamos”, pensou de novo Betinho. E repetiu o pulo de olhos fechados, dessa vez para a direita. Sentiu a pancada da bola nos braços esticados e de novo a gritaria da torcida. Sorriu enquanto se levantava. “Hoje serei um herói”. E olhou para o filósofo Jean Grenier, que aplaudia frenético.

Quando a série terminou, tinham vencido por três a um. O zagueiro adversário chutou na trave, ele pegou outro, dessa vez com a barriga, sempre de olhos fechados, mas sem sair do lugar. O idiota do meia deles, em desespero, chutou no meio do gol.

Carregado em triunfo, olhou feliz para a plateia delirante. Fechou os olhos mais uma vez e, pela primeira vez, concordou com o professor-técnico.

“Tenho mesmo de ir embora”, pensou enquanto era sacudido pela turma em delírio. “Chegando a Paris, é só fechar os olhos e seguir em frente”.

DE BETINHO A ALBERT CAMUS

Poucos anos depois, experimentado, incentivado, e com uma pequena embora consistente bagagem literária publicada, chegou a Paris. Mas chegou de olhos bem abertos, e os manteve sempre muito abertos, quase arregalados, pois acreditava que a vida só tinha sentido se a gente desse um sentido para ela.

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“Se Deus existe, tudo depende dele e nós nada podemos contra a sua vontade. Se não existe, tudo depende de nós.” (Albert Camus)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

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Sebastiao Nunes

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  1. “Albert Camus influenciou toda a minha geração. Enquanto a humanidade durar, seus textos serão um facho de luz contra a barbárie.”

    Nasci em 1963, e tomei conhecimento de Camus na década de 80. “O Estrangeiro”, “A Peste”, “A Queda”, “Núpcias, o Verão”. Mais tarde, encaminhei-me mais para o lado de Sartre, filósofo travestido de escritor, e dei-lhe mais atenção, movido pela necessidade da práxis, desconfiado da Moral (aqui no Ocidente, em tudo e por tudo, burguesa por excelência) e do que considerei, à época, uma certa queda por um hedonismo intelectual (o que diabo possa ser isso), sem valor ou função práticas.

    Eu tinha, então, vinte e poucos anos.

    Não sei se, hoje, aos 59, sou melhor ou pior do que era, naquela época.

    O que sei é isso: houve um tempo em que os “influencers” eram Sartre e Camus. A bem da verdade, um tempo em que não havia “influencers”; existiam escritores, filósofos, dramaturgos, cineastas, cientistas, historiadores. Gente que escrevia, pensava, atuava, pesquisava.

    Já sabem onde quero chegar, não?

    Fui ao google, digitei: influencers famosos brasil.

    O resultado: Anitta, Tatá Werneck, Larissa Manoela, Marília Mendonça, Bruna Marquezina, Maísa.

    Nada contra.

    Mas…

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