Com um urinol debaixo do braço, Marcel Duchamp desce a escada quase nu, por Sebastião Nunes

Duchamp, se fosse brasileiro e estivesse vivo, com certeza tomaria nosso desgoverno e o centrão como tema de suas obras mais radicais.

Com um urinol debaixo do braço, Marcel Duchamp desce a escada quase nu

por Sebastião Nunes

No hall do hotel, Man Ray esperava o amigo e não se conteve diante da aparição inesperada, mesmo se tratando do mestre do sarcasmo, da ironia e do paradoxo:

– Não entendi, Marcel – disse ele. – Um ataque aos idiotas estadunidenses, vá lá. Mas dois ao mesmo tempo?

– Como dois? – perguntou o peladão. – O urinol é um ready-made que vou mandar para uma exposição. E só estou pelado aos olhos dos amigos. Tolos, basbaques e deslumbrados me verão vestido como o rei nu da fábula.

– Ah, não me vem com essa, Marcel! Não confunda ficção com realidade.

– Qual é o problema? Vida e arte é tudo a mesma coisa e uma coisa só, junta e misturada. Arte-vida, vida-arte, o que é que tem de errado?

– Tá bom, tá bom. Mas que diabo é esse tal de ready-made?

– Uma nova tendência em arte que acabo de inventar. Essa é a primeira obra-prima. Minto, é a segunda. A primeira foi uma roda de bicicleta linda que encontrei no lixo do hotel. Só limpei, desentortei e pus num suporte. Título: Roda. Foi aceita no Armory Show e fez o maior sucesso. Esta aqui só tirei do suporte. Chama-se R. MUTT, datada de 1917. Prontinha pra usar.

– E por que você tá pelado desse jeito, só de meias, sapatos e gravata borboleta?

– Vamos tomar um vinho que te explico. Desta vez eu pago. Vendi quatro obras no Armory Show e…

– Ah, vendeu pra esses capiaus? Quer dizer que caíram no conto do artista?

ESTÉTICA VERSUS ECONOMIA

O peladão na frente, o fotógrafo e multiartista atrás, entraram no bar do hotel, sob o olhar indiferente de garçons e do maître.

Sentaram-se. Solenemente, Marcel instalou o urinol no centro da mesa. Ninguém deu bola. Tudo parece normal em Nova Iorque, até mesmo a inteligência.

Bocejando diante daqueles pés-rapados, o garçom se aproximou, tão lentamente quanto possível. Estendeu o cardápio e a carta de vinhos, prontamente recusados.

– Um Château Margaux – comandou o peladão, que aos olhos entediados do garçom parecia, para um estrangeiro, até que bem vestido.

– Custa $5,000 a garrafa – informou educadamente o atendente, que não estava a fim de levar um cano.

Marcel olhou para Man Ray que olhou para Marcel.

Me ajuda a fazer uma contas – disse o inventor dos ready-mades.

O fotógrafo acenou concordando, o garçom cruzou os braços nas costas.

ALGUNS DÓLARES E MUITO VINHO FRANCÊS

– Vendi quatro obras no Armory Show – disse o peladão. – vamos somar.

– Ok – resmungou o fotógrafo, o garçom só olhando.

– Primeira: “Le Roi et la reine entourés des nus vites” – 324 dólares.

– 324 dólares – papagaiou o somador.

– Segunda: “Portrait de joueurs d´échecs” – 162 dólares.

– 324 dólares +162 = 486 dólares. Quase um centilitro do Margaux – informou o somador.

– Terceira: “Nu descendant un escalier” – 324 dólares.

– 486 dólares + 324 = 810 dólares. Ainda não dá uma taça – esclareceu o pragmático somador.

– Quarta: “Nu” – 162 dólares.

– 810 dólares + 162 = 972 dólares. Dá quase um quinto do Margaux ou uma taça não muito cheia.

Marcel olhou para Man Ray, depois olhou para o garçom:

– Traga um vinho de 100 dólares – comandou.

Com a cara de pau de sempre, o garçom fez um breve cumprimento e se afastou rumo ao balcão.

– Veja você como são as coisas – entoou Marcel. – A gente se matando que nem burro de carga por uma miséria e os fabricantes de vinho enchendo a burra.

– Mas veja pelo lado deles, Marcel – filosofou o multiartista. – Antes de tudo, precisam comprar terras férteis. Depois, obter cepas de qualidade. Plantar. Fumigar. Esperar. Torcer contra vento excessivo e chuva escassa. Colher. Preparar o mosto. Do mosto ao vinho até que é fácil. Depois barganhar com os distribuidores.

– Isso não é nada perto do que sofremos para criar uma obra de arte – contrapôs o fabricante de ready-mades.

– Como não é nada? – objetou Man Ray. – Enquanto o cara dá um duro danado, você vai ao depósito de lixo, pega uma roda velha, limpa e vende como arte.

– Ready-made é arte. Andar pelado é arte – teimou Marcel.

– Tá bom, vamos admitir que seja. Mas quantos anos se passarão até essa gente levar a sério seus ready-mades? Ainda que os estadunidenses sejam estúpidos, anos e anos rolarão até que você faça esses caras engolirem suas obras.

O garçom chegou com o vinho de 100 dólares e serviu solenemente, como se fosse um autêntico Château Margaux.

– Pelo menos, podemos beber nove garrafas – concluiu Marcel. E ainda deixar 72 dólares de gorjeta para esse simpático garçom.

Então brindaram ao futuro da arte e beberam até o sol nascer.

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“Qualquer coisa é arte, se um artista disser que é.” (Marcel Duchamp)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Sebastiao Nunes

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