Kafka à beira-mar, por Sebastião Nunes

Neste país em que dois representantes da cultura se mostram acima de tudo representantes da incultura, da ignorância e da má-fé, só me restam os sagrados remédios da ironia e do absurdo

Kafka à beira-mar

por Sebastião Nunes

Todo ano, no verão, Hermann Kafka levava os quatro filhos para três semanas no litoral da Alemanha, já que o Império Austro-Húngaro não tinha acesso ao mar. A mulher, Julie, ficava em casa, pois “lugar de mulher é na cozinha”, como dizia, caso algum parente ou vizinho tivesse a petulância de questionar a respeito. Até onde se sabe, ninguém jamais questionou.

Hermann era um negociante arrogante e egoísta, tratando empregados e filhos com mão de ferro e disciplina de caserna. Levava as meninas porque “têm de aprender alguma coisa, além de bordar, tocar piano e falar alemão corretamente”. Na praia, as garotas, Ellie, Valli e Ottla, tinham total liberdade, desde que se vestissem com decência e não conversassem com estranhos. Num dia em que Ottla, a mais velha, foi apanhada de papo com um alemãozinho louro, levou uma surra tremenda e passou quatro dias trancafiada no quarto, de castigo, “pra deixar de ser oferecida”.

O pequeno Franz, apesar de franzino e medroso, era o xodó do pai, que sonhava torná-lo sucessor em sua próspera loja de roupas. Aos primeiros raios de sol, lá estavam os dois na praia, quase pelados, fazendo flexões, disputando corridas, mergulhando e nadando até alto-mar. Aos poucos, e ao longo dos anos, Franz enrijeceu o físico, embora a alma continuasse reticente e delirante.

Aos 12 anos, quase sem esforço, executava 1.000 flexões contínuas. Aos 13, conseguiu – esta sim, com grande esforço e ajuda do pai – a proeza de permanecer 30 minutos debaixo d’água, sem qualquer aparelho ou preparação, apenas contendo a respiração.

O método que seu pai empregou no treinamento foi muito simples. Franz vestia uma simples sunga de algodão. Um pouco acima dela, Hermann amarrava na cintura do garoto um bloco de cimento de 20 quilos. Levava-o em seguida num barco a remo até certa distância, e então, com violento empurrão, projetava o jovem proa abaixo.

Conservava-o debaixo d’água até que Franz, não suportando mais, puxava um cordãozinho de seda que trazia preso ao pulso. Calmamente e sem a menor pressa, Hermann o puxava, erguendo-o quase inconsciente e o deitando de comprido para que se recuperasse.

O MILAGRE SUBMARINO

Aos 14 anos, o pequeno mergulhava diariamente os 30 minutos marcados no relógio do pai, sem respirar e sem ajuda do bloco de cimento. Enquanto permanecia lá embaixo, o pai se dedicava a pescar, fumando charutos. Numa ocasião, o rapazote recebeu calorosas felicitações – o que era raríssimo naquele homenzarrão duro e severo – por ter alcançado a marca de 45 minutos submerso.

Num desses dias, enquanto admirava as belezas do fundo do mar, Franz topou com estranha criatura, que flanava tranquilamente entre os tentáculos de um polvo gigantesco, que o rondava sem se aproximar.

“Como é possível que o polvo não o esmague?”, pensou o rapazelho.

“Tenho minhas defesas”, respondeu telepaticamente a criatura. “Além de resistente couraça, dura como ferro, trago reservas cutâneas de potente veneno, que posso esguichar à minha vontade em qualquer direção.”

Franz não se espantou, passando a examinar detidamente o esquisito animal. Seu corpo se assemelhava ao de uma barata gigantesca, embora de cor verde brilhante, quase a se confundir com o fundo em que deslizava. As patas, no entanto, possuíam as cores do arco-íris, tornando-o de uma beleza fascinante, ainda maior porque se moviam lenta e hipnoticamente uma após a outra como se, por meio desse gestual, traçassem no fundo do mar textos perfeitamente legíveis.

De volta à superfície, Franz nada disse ao pai, que exibiu duas belas garoupas acabadas de pescar. Infelizmente, as férias terminavam naquele dia.

AS REVELAÇÕES

Quando voltou no ano seguinte – já tinha 15 anos –, quis mergulhar no mesmo dia, à noite, mas foi proibido pelo pai durão:

– Só amanhã cedo.

Franz se consolou jogando xadrez com as irmãs, que eram principiantes e, antes de deitar, examinou cuidadosamente as placas de cera preparadas para escrever, assim como os estiletes de aço. Satisfeito, enfiou tudo numa sacola e dormiu imediatamente.

O mar estava transparente quando mergulhou e, bem perto, avistou a criatura, que parecia esperar por ele, parada e expectante.

Logo em seguida, no entanto, começou a garatujar frases estranhas que Franz, freneticamente, copiava em suas placas de cera. No decorrer das férias, o rapaz anotou uma quantidade enorme de fragmentos, que de noite, na cama, tentava organizar.

Havia, por exemplo, a história de um agrimensor contratado para trabalhar num castelo, que jamais teve contato com seu empregador. A de um cidadão comum, preso certa manhã, julgado, condenado e executado por um crime que desconhecia.

Quando voltou para casa, trazia centenas de relatos que, aos poucos, foram se tornando contos, romances e narrativas diversas, a maioria um tanto absurdos, como se criados por uma mente insana ou, para ser mais preciso, inumana.

O que mais o fascinou, contudo, foi o próprio animal submarino, que acabou se tornando, mutatis mutandis, personagem de uma de suas mais conhecidas novelas.

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“A mentira se converteu em ordem universal.” (Franz Kafka)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Sebastiao Nunes

2 Comentários

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  1. A Mentira se converteu em ordem universal, e, mãe fecunda e generosa, mandou seus filhos para governarem o mundo surgido dessa nova ordem: a ignorância, a estupidez, a brutalidade, dentre outras.
    Belo texto, Sebastião, mas, permita-me a constatação melancólica: o livro, a palavra, que Kafka sonhava ser o machado que quebraria o gelo dentro de nós, hoje não chega para essa tarefa; o gelo que há dentro dos homens, hoje, é como as luas de Júpiter: já chegou a um ponto em que a vida é impossível. O gelo dentro de nós é hoje a estrada que nos liga (sic) aos outros homens. Kafka completará 100 anos de morte, em 2024; e as palavras já não são protagonistas, nesse mundo. As imagens o são. E as imagens mostram, mas não ensinam, não estimulam o raciocínio crítico: apenas satisfazem os sentidos.
    Há muitos anos, um de meus heróis de adolescência, Renato Russo, acreditava que os jovens montavam bandas, em vez de se sentirem tentados a escrever livros; hoje, abrem canais nos youtube da vida. Perdoem-me, mas só há uma coisa a dizer: que merda!

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