Enquanto trabalhava no jardim, Wittgenstein discutia filosofia com as rosas
por Sebastião Nunes
Ajoelhado entre os canteiros, o excêntrico pensador cavava, adubava, podava, expulsava insetos indesejáveis…
– Caiam fora, seus idiotas!
… e, durante horas, sonhava que suas roseiras explodiam em cores, para alegria dos monges e dos visitantes do mosteiro em que conseguira emprego como assistente de jardineiro. Nada mal para um ex-professor de filosofia. Além do mais, seu “Tractatus Logico-Philosophicus”, em sua própria e imodesta opinião, resolvia todos os problemas filosóficos, existentes ou por existir. O que mais desejar?
– Devemos calar sobre o que não se pode falar – disse ele, como se conversasse com um velho que, sentado num banco de pedra a mais de cem metros, jamais poderia ouvi-lo.
– De fato – observou uma voz alta e fina. – Mas seria melhor se dissesse “Poder pensar o limite do pensamento é poder pensar os dois lados desse limite”.
Ludwig olhou para o velho: não, a voz não podia vir dele. Estava longe demais e, além disso, era muito alta e fina para pertencer a um velho.
– E também poderia dizer “Nesse caso, deveríamos poder pensar o que não pode ser pensado” – continuou a voz, ainda mais alta e mais fina. – É ou não é?
“Estarei ficando louco?” – pensou Ludwig. – “Era só o que me faltava”.
– De forma que poderia continuar assim: “Portanto, o que estiver do outro lado do limite da linguagem será absurdo”.
De repente, e usando de toda a sua perspicácia, Ludwig compreendeu que a voz provinha de uma rosa cor de rosa que estava exatamente por cima dele.
– Ora, ora, ora – exclamou. – Quem diria que eu um dia estaria conversando com uma rosa cor de rosa, ou melhor, ouvindo uma rosa repetir minhas ideias!
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NÃO: WITTGENSTEIN NÃO ERA DOIDO
– Uma rosa só, não – disse uma vozinha um pouco mais aguda. – Melhor dizer rosas, no plural. Todas nós somos filósofas. – E riu, uma risadinha irritante.
Ludwig olhou em volta e constatou que, de fato, várias rosas o encaravam, se é que rosas encaram alguém. A que acabara de falar era amarela.
Olhinhos pretos, que não tinha reparado, o vigiavam atentamente. Em algumas pétalas, pequenas rugas semelhavam bocas, que riam.
“Quem ousaria acreditar nisso” – pensou. “Acaso estivessem aqui Russel ou Frege ou Popper, seria um revoar de novas teorias”.
Não teve tempo de continuar pensando em filósofos, pois, à queima-roupa uma rosa azulada indagou:
– Por acaso você conhece Fernando Pessoa ou Ralph Wald Emerson?
Ludwig torceu o nariz:
– Não.
– Fernando Pessoa, por seu heterônimo Alberto Caeiro, foi um poeta-filósofo português que…
– Ele pensava e escrevia em Português?
– Sim.
– Então ele está além dos limites da linguagem, pois o português não existe. Pelo menos não existe como linguagem civilizada.
– Ora, absurdo é o que você está dizendo – irritou-se a rosa cor de rosa. – Só porque ele pensou em português, não pode ser um grande pensador?
– Não pode não – reforçou Ludwig. – Só se pode pensar seriamente em inglês ou em alemão.
– E Emerson? Ele pensou e escreveu em inglês.
– Inglês da Inglaterra?
– Não. Inglês estadunidense.
– Nesse caso, também não existe, não importa o que imaginou ter pensado ou o que seus leitores imaginam ter lido.
A rosa amarela franziu pequenos beiços e ameaçou chorar.
– Não chore, minha querida – consolou Ludwig. – Você, com sua alegria, é mais importante para a filosofia do que esses inexistentes, ainda que pensem existir.
As três rosas se entreolharam. De fato, aquele filósofo-jardineiro, com toda a sua lógica, não passava de um autista, como a psicologia futura viria a demonstrar. Além de imperialista, como só conseguem ser os ingleses, ainda por cima desprezava aqueles que pensavam em línguas que não fossem o inglês britânico.
Para encerrar conversa tão absurda, a rosa azulada concordou:
– De fato, Ludwig – disse ela. – Mas, no futuro, o inglês estadunidense dominará de tal forma o mundo que será falado em todos os continentes e países.
– Já o português, coitado – intrometeu-se a rosa amarela. – Quem escrever em português só será lido se – por um acaso quase absurdo – chegar a ser traduzido.
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“Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.” (Ludwig Wittgenstein)
Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.
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