Outro sonho de um amigo morto: Otávio Ramos e a revolução desarmada, por Sebastião Nunes

Um pouco de filosofia política rasteira nunca é demais. Como é quase impossível pensar de forma correta no mundo atual, faço um arremedo da situação geral e do que seria possível, se fosse.

Outro sonho de um amigo morto: Otávio Ramos e a revolução desarmada

por Sebastião Nunes

Guardo em dois computadores a mistureba de originais do que seria o último livro de Otávio Ramos, que se foi em 24 de setembro de 2005. À medida que escrevia ou juntava material gráfico, Otávio me enviava a parafernália. Vários textos e imagens estão repetidos e, caso futuramente sejam editados, será preciso paciência de Jó para organizar o volume que ele chamou de “O dom silencioso”. Não porque se referisse ao rio russo Dom ou, profeticamente, ao jornalista Dom Phillips, recentemente assassinado na Amazônia, em mais um dos muitos atos de terrorismo incentivados pelo desgoverno federal de Bolsonaro.

 Longe disso: Otávio se referia a ele mesmo, pois era a própria encarnação do silêncio, que considerava um dom.

Muitas vezes, sentados numa mesa de bar, por duas ou três horas degustamos cerveja em paz e silêncio. Uma das maiores provas de amizade, costumo dizer, é a capacidade de fechar a boca quando palavras não são necessárias.

Foi ele quem, depois de Sérgio Sant’Anna e Adão Ventura, narrou um sonho recente para a diminuta plateia que incluía ainda Dom Quixote, Sancho Pança, Luís Gonzaga Vieira e Manoel Lobato.

“Sonhei que estava no porão de uma casa na Floresta [bairro de Belo Horizonte] com dois amigos e uma garota de nossa idade. Militantes de esquerda, nosso objetivo era preparar e iniciar a revolução armada. A garota, séria e objetiva, começou: ‘A partir do momento em que aceitarem participar do movimento, esqueçam parentes, amigos, amores. Vocês terão de obedecer, sem reclamar ou a menor objeção, a qualquer ordem emitida pelo comando nacional e recebida através de mim, que serei seu único contato. Uma revolução deve ser impiedosa com os inimigos e dura com os militantes. Vocês não receberão aplausos, louvor ou reconhecimento. Quem morrer na luta será enterrado onde for possível e sem identificação, para não levantar suspeitas. Quem mostrar mais dedicação poderá ser promovido, quase sempre a posições mais perigosas. Para comer terão o que catarem no mato, mendigarem ou furtarem nas vilas e cidades. Como bens pessoais, apenas a roupa do corpo, as botas e as armas. No mais, deverão se virar como puderem’. A moça não sorriu uma única vez: era séria como a morte. Saí dali com a certeza de que não era esse o tipo de revolução que eu almejava.”

Otávio fez uma pausa, ninguém disse nada, e ele foi em frente:

– O sonho acabou com minha saída do porão. Acordei apavorado. Nunca fui ingênuo. Sempre soube que revolução e sentimentalismo não combinam. O capitalismo é cruel e não concede nada. Dentro dele, a competição para subir, lucrar e alcançar o topo da hierarquia nas empresas e nos órgãos públicos não conhece limites. Pisar no pescoço da mão ou estrangular o pai, quando necessário, fazem parte do jogo. Mesmo assim, apenas filhos do próprio capital conseguem subir. Pobres, fracos, LGBTQs, negros, índios e indecisos jamais passam nesse teste de dureza. Egoísmo e maldade são a regra; o sangue dos mortos é despejado nos esgotos.

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A REVOLUÇÃO POSSÍVEL

– Todas as grandes revoluções conhecidas acabaram em desastre, ou estiveram à beira do desastre – continuou Otávio. – A francesa afogou-se no próprio sangue; a russa desandou no terror e na burocracia stalinista, que resultou na oligarquia atual; a chinesa salvou-se pela mistura de socialismo e capitalismo de estado; a norte-coreana ninguém sabe, ninguém viu; a cubana pena para sobreviver em meio ao caos político e à carência de tudo. Heróis e mártires não faltaram, foram milhares. Nem faltaram belas palavras, bilhões delas se perderam no vento.

– No resto do mundo, com exceção de arremedos de socialismo que nunca prosperaram na América Latina e da social-democracia que tenta sobreviver nos países do norte europeu, impera o capitalismo, que vai da aparente suavidade da zona do euro à selvageria dos EUA, do Brasil e da maioria das nações africanas e asiáticas, muitas delas ditaduras disfarçadas ou não.

– Onde está a saída? – perguntou Vieira, ex-seminarista e socialista convicto, de dúvidas nunca resolvidas.

Otávio respirou fundo e continuou:

– Três homens muito antigos propuseram a resposta: Buda, Sócrates e Confúcio, mas quase ninguém ouviu. Todos disseram que a solução estava dentro de cada um de nós. Conhecer-se era o caminho da libertação. Mas quem terá tempo para se concentrar nos tempos atuais? Para conhecer-se é preciso concentração, disciplina e meditação.

– Confesso que nunca tive tempo pra essas coisas – disse Lobato. – Batalhei demais como farmacêutico, jornalista e escritor pra sustentar a família. Mas dei minha contribuição sempre que foi possível.

– Falta um elemento nessa equação – terminou Otávio, sem ouvir a intervenção de Lobato. – Falta educação de alto nível e em massa. Principalmente em países pobres como o nosso. Sem educação e autoconhecimento, a empatia se torna impossível e sem empatia o futuro da humanidade é incerto.

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“O objetivo de um escritor é impedir que a civilização se destrua.” (Albert Camus)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Sebastiao Nunes

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