O altivo samba de Silvio Modesto, por Daniel Costa

Prestes a completar oitenta anos, mais forte que madeira de lei, nosso malandro modesto segue percorrendo as rodas da cidade gritando seus sambas

Reprodução Youtube

O altivo samba de Silvio Modesto

por Daniel Costa

A pessoa que caminhava pelas ruas do centro da cidade de São Paulo no início da década de 1970, especialmente no entorno das ruas Rego Freitas, Nestor Pestana, do velho Bar Redondo e do Teatro de Arena facilmente cruzaria com um vendedor de bilhetes de loteria oferecendo modestamente o tão sonhado passaporte para a felicidade; a alegria oferecida por tal prêmio era buscada especialmente por grande parte dos trabalhadores, que do tal milagre econômico só ouviam falar através do Jornal Nacional, então órgão oficioso dos militares de plantão. Porém, poucos daqueles transeuntes poderiam imaginar a trajetória daquele vendedor de bilhetes com carregado sotaque carioca, que havia desembarcado na terra da garoa para buscar a sua sobrevivência e quem sabe também encontrar o caminho para sua felicidade; não através do prêmio que poderia vir de um bilhete premiado e sim gritando seus sambas nas rodas e escolas da cidade como fazia desde criança nas batucadas, terreiros e tendinhas do morro do Salgueiro.

O destino do nosso personagem começa a mudar quando em uma de suas caminhadas cruza com o dramaturgo Plínio Marcos; quem avistava de longe a conversa entre os dois poderia pensar que seria apenas mais um cliente comprando o tal passaporte para a realização de seu sonho, na realidade aquele encontro selaria o começo de uma sólida parceria entre dois indivíduos que tinham muita coisa em comum, a principal era obviamente o samba; a segunda, a vivência entre a malandragem, Plínio apesar do sucesso conquistado nos palcos jamais esquecerá a vivência e as mumunhas aprendidas no cais do porto de Santos, já nosso sambista vendedor de bilhetes trouxera para a Paulicéia em sua bagagem a vivência da malandragem dos morros e dos tempos de trabalho na estiva.

Nascido em 1944, no bairro de Brás de Pina, região fincada na Zona da Leopoldina e criado no Morro do Salgueiro, Silvio Luiz Fernandes, ficará conhecido no mundo do samba como Silvio Modesto, o apelido surgiu quando ainda garoto desfilava na ala dos modestinhos, grupo de passistas mirins que saiam na escola Unidos da Capela, como grande parte do que ocorre em nossa trajetória não é mera coincidência, a modéstia será uma marca na vida do nosso personagem. Versado no samba de terreiro, no partido alto e no samba enredo, Silvio foi graduado e pós-graduado nas esquinas e quebradas desse mundaréu como costuma dizer.

Selada a parceria com o dramaturgo santista, Silvio Modesto passa a integrar o elenco de “Balbina de Iansã”, emplacando no espetáculo e na trilha sonora lançada pela gravadora Fermata as músicas, “Canção de Oxum” e “Parece ladainha” parcerias com o compositor Jangada, em seguida integraria o elenco de “Plínio Marcos e os Batuqueiros da Paulicéia”, espetáculo histórico que reuniu Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde;  em parceria com Plínio ainda participaria do musical, “O Poeta da Vila e Seus Amores” interpretando nos palcos o compositor carioca Wilson Batista.

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A atuação nos espetáculos de Plínio Marcos significou para nosso modesto compositor uma espécie de salvo conduto para poder enfim gritar seus sambas nas ruas, rodas e quebradas da Paulicéia, afinal, naquela época onde opositores a ditadura civil-militar eram torturados nos porões do DOPS, OBAN e cia, e nas periferias “elementos suspeitos”, na maioria negros como Silvio Modesto, eram capturados e abatidos pelos Esquadrões da Morte, como ocorreu com o lendário apitador do Vai-Vai, Pato N’Água que foi encontrado crivado de balas em Suzano. Assim, fazer samba naquele momento representava também um ato de coragem e de resistência; basta lembrar o caso da invasão a quadra da Unidos do Peruche  e a detenção do compositor Geraldo Filme em 1971, como consequência da escolha do tema para o carnaval de 1972, “Chamada aos Heróis da Independência” era um verdadeiro petardo contra o autoritarismo de plantão feito pelo compositor, porém tal ousadia custaria caro a Geraldo e a filial do samba, porém esse caso fica para outro texto.

Foi nesse cenário, literalmente buscando se equilibrar na corda bamba da vida que nosso modesto partideiro foi traçando seu caminho, entre a vida nos palcos e nas rodas de samba, também passou a frequentar as escolas da cidade, passando pela pioneira Lavapés na região do Glicério, Império do Cambuci, Barroca Zona Sul, Unidos do Peruche, Vai-Vai até chegar nas bandas da Vila Madalena – uma vila ainda com forte presença negra e portuguesa, diferente do bairro “boêmio” que temos hoje – onde no final da década de 1970 passa a integrar a Pérola Negra, escola onde firmaria dupla com o compositor Pasquale Nigro e anos depois passaria a integrar sua velha guarda.

Influenciado por nomes como Wilson Batista, Noel Rosa de Oliveira, Toniquinho Batuqueiro, Zeca da Casa Verde, Talismã, entre outros, Silvio que em parceria com João Pedro e Pasquale Nigro, cantou o desejo de um dia ser poeta, firmou seu nome na galeria dos grandes do samba, seja com suas críticas sociais gravadas pelo partideiro indigesto Bezerra da Silva, ou por canções que foram interpretadas por nomes como Benito Di Paula, Jovelina Pérola Negra, Os Originais do Samba, Arlindo Cruz e Sombrinha, Beth Carvalho e tantos outros intérpretes.

Prestes a completar oitenta anos, mais forte que madeira de lei, nosso malandro modesto segue percorrendo as rodas da cidade gritando seus sambas e trazendo também consciência para o pessoal que está chegando ao universo do samba, pois se hoje podemos armar com certa tranquilidade rodas em praças, ruas e demais espaços foi graças a luta de bambas como Silvio Modesto que mesmo em tempos difíceis nunca baixaram a bandeira do samba.

E assim como em uma de suas canções, nosso mestre segue cantando o lirismo popular e defendendo esse país pela cultura popular.

*Daniel Costa é graduado em história pela UNIFESP, compositor, e integrante do Grêmio Recreativo de Resistência Cultural Kolombolo Diá Piratininga.

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