STJ decide por perícia antropológica em processo penal, mas refuta tradução e intérprete; Cimi irá recorrer ao STF

Na Justiça Federal, 19 Kaingang são acusados da morte de dois agricultores durante conflito ocorrido em abril de 2014

Criança Kaingang com seu pai em protesto por demarcação, na Capital Federal. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

do Conselho Indigenista Missionário – Cimi

STJ decide por perícia antropológica em processo penal, mas refuta tradução e intérprete; Cimi irá recorrer ao STF

por Renato Santana, do Cimi

A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu parcial provimento, nesta terça-feira (1º), ao habeas corpus que pedia tradução do processo penal, intérprete e perícia antropológica na ação que corre na Justiça Federal de Erechim e acusa 19 Kaingang pela morte de dois agricultores durante conflito de abril de 2014, no município de Faxinalzinho, Alto Uruguai (RS).

Por três votos a dois, os ministros decidiram assegurar a realização da perícia antropológica, após a sentença de pronúncia, para que o laudo contribua em eventual julgamento pelo Tribunal do Júri. Nesse quesito, acompanharam o voto do relator, ministro Rogério Schietti Cruz, a ministra Laurita Vaz e o ministro Sebastião Reis.

Já nos pedidos para intérprete e tradução do processo penal, os cinco ministros da 6ª Turma votaram contra. A Assessoria Jurídica do Conselho indigenista Missionário (Cimi), autora do habeas corpus e defesa dos 19 Kaingang, irá recorrer da decisão junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Todos os indígenas respondem em liberdade. Cinco deles chegaram a ser presos sem qualquer evidência de participação e seguem inscritos, junto aos outros 14, nos crimes dos quais são acusados de forma genérica e sem individualização de condutas no processo penal. Os Kaingang acusados são das terras indígenas Votouro e Kandoia.

Durante 2014, o povo Kaingang realizou mobilizações pela regularização de seus territórios tradicionais, inclusive pedindo indenização aos agricultores com terras sobrepostas ao território indígena.

A prisão dos cinco Kaingang, em tal contexto, ocorreu durante uma mesa de diálogo sobre demarcações, em que o ex-ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, por coincidência, cancelou a ida de última hora. Quem apareceu foi a Polícia Federal e as cinco lideranças foram levadas presas.

Resolução 287 do CNJ

Antes de ingressar com o habeas corpus no STJ, a defesa dos Kaingang fez o mesmo pedido ao juiz da ação na Justiça Federal de Erechim, mas o magistrado indeferiu a solicitação. A defesa recorreu então ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, que manteve a decisão de primeira instância.

Conforme argumenta a defesa dos indígenas, a tradução do processo na língua Kaingang, um intérprete nas oitivas e perícia antropológica, realizado por um perito nomeado pelo próprio tribunal, são direitos referendados pela Constituição Federal, pela Convenção 169 e agora pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com a Resolução 287, publicada em 25 de junho de 2019.

A resolução estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário. A resolução determina ainda a observação a convenções internacionais.

De acordo com o artigo 5º “a autoridade judicial buscará garantir a presença de intérprete, preferencialmente membro da própria comunidade indígena, em todas as etapas do processo em que a pessoa indígena figure como parte”. Neste mesmo artigo, a resolução do CNJ diz que a presença do intérprete pode ocorrer mediante solicitação da defesa ou da Fundação Nacional do Índio (Funai).

Povo Kaingang da TI Passo Grande do Rio Forquilha durante autodemarcação: luta Kaingang pela terra acontece em todo RS. Foto: Arquivo/Gapin

Já no artigo 6º, a resolução determina que “ao receber denúncia ou queixa em desfavor de pessoa indígena, a autoridade judicial poderá determinar, sempre que possível, de ofício ou a requerimento das partes, a realização de perícia antropológica, que fornecerá subsídios para o estabelecimento da responsabilidade da pessoa acusada”.

Neste laudo deve constar a qualificação, a etnia e a língua falada pela pessoa acusada; as circunstâncias pessoais, culturais, sociais e econômicas da pessoa acusada; os usos, os costumes e as tradições da comunidade indígena a qual se vincula; o entendimento da comunidade indígena em relação à conduta típica imputada, bem como os mecanismos próprios de julgamento e punição adotados para seus membros.

Amigos da corte

Após a negativa do TRF-4 ao direito dos indígenas à tradução, dez organizações de defesa dos direitos humanos, entre instituições da Colômbia, México, Peru e Estados Unidos, e clínicas de direitos humanos de universidades do Brasil e do Canadá, ingressaram no processo com pedido de amicus curiae (amigos da corte) ao STJ.

O relator da ação, ministro Rogério Schietti Cruz, não aceitou os ingressos, mas incorporou as petições respectivas ao processo legal.

amicus curiae é um instrumento pelo qual instituições com conhecimento e atuação reconhecidas no tema em discussão pela corte podem participar de processos, produzindo subsídios e contribuindo para a qualificação da decisão a ser tomada pelo tribunal.

A Fundação para o Devido Processo Legal, uma das organizações que ingressaram com pedido de amicus curiae, se posicionou em nota afirmando que o Brasil “é um dos poucos países do continente no qual um juiz penal pode aferir, sem qualquer apoio em perícia antropológica ou linguística, o grau de compreensão do indígena sobre um determinado idioma”.

Atentando aos parâmetros do Direito Comparado e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, as organizações apontam que a tradução, a interpretação e a perícia antropológica devem ser observadas desde a primeira etapa do processo penal para evitar que o devido processo legal e a ampla defesa sejam prejudicados.

Redação

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