Cui bono a narrativa sobre a existência de uma extrema-direita no Brasil?
por Daniel Afonso da Silva
É arriscado navegar a contravento. Notadamente no Brasil. Especialmente no oceano das impressões políticas. E ainda mais sobre conjunturas imediatas.
Entretanto, chega um momento que o autoengano ambiente enraivece. Cansa, intriga. Tira do prumo.
Qualquer pessoa minimente educada sabe bem que Jair Messias Bolsonaro não é Hitler nem Mussolini. Que Luiz Inácio Lula da Silva não é Roosevelt nem Ghandi. Que o momento aberto pela crise financeira de 2008 não tem nada que ver com os anos de 1930. Que a gestão da pandemia no Brasil não foi menos desastrosa que na maior parte se não na totalidade dos países pretensamente democráticos do Ocidente. E sabe também que não existem – e quase nunca no passado existiu – “genocidas”, “fascistas”, “nazistas” e afins caminhando pelas ruas, praças e vielas brasileiras.
Qualquer pessoa minimente educada sabe disso.
Que os homens práticos da política alimentem essas ilações é até entendível. Seu marketing visa simplificar para polarizar, e polarizar para vender suas ideias. Geralmente ilusões. Quase sempre muitos enganos.
Que jornalistas e articulistas de conglomerados de informação façam o mesmo para surfar no fluxo também vai compreensível.
Mas que especialistas em história e ideias políticas – muita vez, doutores do saber em universidades – promovam essa banalização de conceitos e percepções, aí já é demais.
Cui bono?
Da mesma maneira que qualquer pessoa singelamente letrada ou que frequentou dois ou mais semestres de um bom curso universitário de Antropologia sabe bem que não existe nem nunca existiu patriarcado em nenhuma sociedade do Ocidente e menos ainda no Brasil, qualquer pessoa com o mínimo de noção de História Política e das Ideias sabe bem que Jair Messias Bolsonaro e seus acólitos podem ser tudo – grosseiros, confusos, radicais – menos a expressão de uma extrema-direita.
Muito já se teorizou sobre tentações ideológicas nesse campo e em campos similares. Alguma síntese desse debate foi apresentada inclusive aqui no GGN [vide https://jornalggn.com.br/artigos/a-tentacao-ideologica-por-daniel-afonso-da-silva/ ].
Quem, por exemplo, chamar o candidato republicado, Donald J. Trump, de partícipe da extrema-direita vira objeto de gargalhadas. O seu mandato como presidente dos Estados Unidos foi marcado pela alt-right, que é algo mais complexo que o tea party e seus congêneres mundo afora, mas todos sabem que ele nem o seu partido se aninham no extremo-direitismo de ocasião. Tout court ou não.
De volta aos fundamentos, vale simplesmente lembrar que extrema-direita é uma corrente de pensamento filosófico e cultural tipicamente europeia e especialmente francesa que emergiu na viragem do século XVIII ao XIX como mostra de profunda condenação a dimensões do radicalismo da Revolução Francesa.
Os seus partidários sempre se apresentaram como conservadores e nostálgicos do statu quo ante. Mas, a partir do último quartel do século XIX, notadamente após a querela franco-prussiana, eles foram adquirindo posturas ultranacionalistas e ultraconservadoras, organizaram-se em partidos, passaram a participar do debate público, planificaram candidaturas e elegeram quadros. Na França e além.
O que se viu depois – às vésperas de 1914, no entreguerras, durante a Segunda Grande Guerra e após – foi a clara ampliação de todas essas tendências em mais e mais partidos políticos e mais e mais candidaturas. Percebeu-se que extremistas direitistas radicais isolados não fazem verão.
Depois de os partidos nazistas e fascistas serem exterminados entre 1944 e 1949, o Front National de Jean-Marie Le Pen foi o arquétipo perfeito e acabado da extrema-direita europeia [tratei longamente disso em https://jornalggn.com.br/entrevista/razao-bolsonarista-e-uma-clara-reacao-ao-mal-estar-intensificado-pela-pasmaceira-do-seculo-xxi/ ]. O momentum do contencioso argelino, entre 1958 e 1962, foi o mais decisivo da afirmação desse fenômeno.
Marcel Gauchet, seguramente o maior especialista do tema em escala mundial, observa que, sim, a extrema-direita foi uma peculiaridade da paisagem política europeia e francesa. Mas uma peculiaridade que começou a desaparecer a partir da aceleração da globalização após 1973 e virou uma simples anacronia depois 1989-1991.
Quem acompanha seus livros, densamente documentados e fortemente filosoficamente inspirados, chega a uma conclusão desconcertante e deveras inconveniente que propõe simplesmente que tem muito tempo que partidos de extrema-direita não existem mais.
De toda sorte, o Front National chegou ao segundo turno das presidenciais de 2002 com o candidato Jean-Marie Le Pen e foi derrotado por uma barragem nacional que reelegeu o presidente Jacques Chirac com mais de 80% do sufrágio. Naquele momento o “medo” do extremismo-direitista era imenso. Mas poucos notaram que o Front National já não era totalmente extremista nem essencialmente direitista. E sobre esse assunto – além dos estudos de Gauchet – existem bibliotecas inteiras e em vários idiomas; e qualquer pessoa minimamente educada algo delas conhece.
O susto francês de 2002 foi mais pelo desespero e pelo que se vayan todos da população empobrecida e desamparada que por qualquer outra coisa. A crise financeira de 2008 e o achatamento das classes médias francesas (e europeias) apenas amplificou essa sensação. Como resultado, o Front National foi se transformado mais e mais num partido conciliador e frequentável a ponto de mudar de nome e levar a herdeira de Jean-Marie Le Pen recorrentemente ao segundo turno presidenciais francesas.
Se por lá, onde tudo nasceu e floresceu, a banda toca assim, imagine-se por aqui.
Jair Messias Bolsonaro – e seu bolsonarismo – nem partido direito possui. Como, portanto, considerá-lo como alguém de extrema-direita? Trata-se de um mero “cidadão autêntico”. Meio Homer Simpson. Meio Mazzaropi. Algo extremista. É verdade. Mas sem nenhuma compleição ideológica verdadeiramente organizada que permita enquadrá-lo como alguém de extrema-direita. Olhando bem de perto, talvez nem de direita ele seja. Um pouco radical, talvez. Mas como não ser radical no exercício do poder num país maluco como o Brasil?
Desse modo, é preguiçoso – e até irresponsável – tomar Bolsonaro como a reencarnação de Hitler, Mussolini ou Franco. Qualquer pessoa minimente educada sabe que o fenômeno Bolsonaro e os mistérios do bolsonarismo são muito mais complexos que as meras comparações históricas.
Comparação nunca fez razão. Mas neste caso inibe a reflexão mais aprofundada sobre os verdadeiros perigos que circundam a existência de Bolsonaro e do bolsonarismo na cena política brasileira.
Seja como for, livros e mais livros têm sido escritos sobre a “extrema-direita no Brasil”. O tema vende. E vende muito. Mas, por incrível que possa parecer, ninguém, nesses livros, define, de modo convincente, “extrema-direita”. Muito menos, “extrema-direita” no Brasil. É curioso. Mas é assim.
E, sendo assim, fica a questão: cui bono a narrativa sobre a existência de uma extrema-direita no Brasil?
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
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“E sabe também que não existem – e quase nunca no passado existiu – “genocidas”, “fascistas”, “nazistas” e afins caminhando pelas ruas, praças e vielas brasileiras.
Qualquer pessoa minimente educada sabe disso.”
Desculpe doutor, mas qualquer pessoa minimamente educada sabe que está errado.
Não tenho a mesma formação histórica ou acadêmica do autor, mas acho que isso não me impede de tecer algumas considerações sobre o texto acima. Texto este que tem um título que chama bastante atenção e, que, por consequência, atiça a curiosidade do leitor. Esta curiosidade é aumentada logo no início quando o autor declara ser arriscado navegar a contravento. Tenho uma queda por textos que naveguem a contravento, pois em geral nos levam a alguma reflexão que, por preguiça mental, costumamos ignorar. Continuei a leitura bastante curioso na esperança de ver minhas ideias preconcebidas serem chacoalhadas por argumentos lógicos e por informações históricas às quais eu teria subestimado ou talvez ignorasse.
Posso dizer que toda a curiosidade, que o título e o início do texto me despertaram, se transformou em lamentável decepção. O autor que dá a entender que navega a contravento, contraditoriamente usa, como argumento recorrente ao longo de todo o seu texto, expressões do tipo:
“Qualquer pessoa minimente educada sabe bem que…“;
“Qualquer pessoa minimente educada sabe disso.“;
“Da mesma maneira que qualquer pessoa singelamente letrada ou que frequentou dois ou mais semestres de um bom curso universitário de Antropologia sabe bem que…“;
“qualquer pessoa com o mínimo de noção de História Política e das Ideias sabe bem que…“;
“mas todos sabem que ele nem o seu partido…“;
“e qualquer pessoa minimamente educada algo delas conhece.“;
Qualquer pessoa minimente educada sabe que o … e os mistérios do … são muito mais complexos que as meras comparações históricas.”
Depois de ler repetidamente, ao longo do seu texto, que “qualquer pessoa sabe“, eu tenho que admitir que eu não sei, que sou um ignorante, e que os argumentos apresentados pelo autor não foram suficientes para me libertar dessa minha ignorância. Embora eu desconheça tantas coisas que são básicas para o autor, eu diria que se, realmente essas são coisas banais, corriqueiras e que todo o mundo minimamente informado sabe, o texto do autor, ao exaustivamente repeti-las, não se mostrou navegar a contravento.
No entanto, para não dizer que discordei de tudo, a seguir transcrevo, embora com as necessárias adaptações, frase do autor, com a qual me identifiquei: “Entretanto, chega um momento que a leitura repetida de que, “eu não sei“, embora me considere uma pessoa minimamente educada, enraivece. Cansa, intriga. Tira do prumo.”
Meus parabéns ao autor.
Concordo 100% e tenho a acrescentar que num artigo anterior ele colocou Nelson Rodrigues, Foucalt e outros filósofos na galeria dos plagiadores e dos imbecis e toda vez arrota sabedoria usando frases como as que você pinçou no texto.
Como você já mandou os parabéns eu mando um beijo.
“Que a gestão da pandemia no Brasil não foi menos desastrosa que na maior parte se não na totalidade dos países pretensamente democráticos do Ocidente. … Qualquer pessoa minimente educada sabe disso.”
Gostaria de saber de onde tirou esses dados. Da bunda? Só pode ser…
O mais incrível é que quem não concorda com a sua mer(d)a opinião não é educado.
Mas respeitemos o dr em arrogância e educação.
Imagino que um dos beneficiários de mais essa cortina de fumaça seja o gangsterismo brasileiro, mais conhecido como milícias. Nesse caso, a política fornece uma roupagem mais ‘legítima’, por assim dizer, aos milicianos. Quanto ao fato de não existir uma “extrema direita” no Brasil, discordo. Ela não é organizada ou programática como são seus pares europeus; mas são muito poderosos, como seus pares americanos, pela sua influência econômica e midiática. Jair Bolsonaro será descartado, em breve, pela extrema direita brasileira – a quem chamo, sempre que comento alguma coisa aqui no GGN, de Binômio Bancos-Corporações. Completa a santíssima trindade dessa extrema direita o agronegócio, voltada inteiramente ao mercado externo, o que o separa um pouco dos outros dois, uma vez que, no geral, tanto se lhe dá quem esteja ocupando o Planalto, mas este é outro assunto. A extrema direita está no melhor dos mundos possíveis, com Lula. Quem tem como adversário um homem pragmático, que não questiona nem condena, que aceita movimentar-se no exíguo espaço a ele permitido por eles mesmos, o Binômio, tem de que se queixar? Agora, eventualmente, é necessário lançar mão de um candidato muito abaixo do Padrão Binômio de Qualidade, para impedir os percalços e contratempos pontuais de ter um ‘adversário’ ocupando aquela cadeira; e o Binômio não hesitou em fazer isso, sabendo perfeitamente que se tratava, no caso, de um bandido reles, um marginal bem ralé. Aos milicianos, a pecha de extrema-direita; aos verdadeiros extremistas de direita, o conceito de responsáveis e dignos, quando não salvadores da pátria. Vide o STF, Moro, dentre outros heróis tipicamente nacionais. Esses são os cui bono dessa situação, os de sempre: a elite dominante, agrária, financeira, burguesa. Apenas, inseriu-se mais um elemento nefasto nesse time: os milicianos, o gangsterismo brasileiro. Se se trata de um fator episódico, gerado pela absoluta falta de quadros políticos capazes de derrotar Lula em 2018, ou um fator permanente, saberemos lá adiante. Quanto ao fato de sabermos (sabermos quem, cara pálida?) que não existem e quase nunca no passado existiram, “genocidas”, “fascistas”, “nazistas” e afins caminhando pelas ruas, praças e vielas brasileiras, gostaria de saber qual o critério do articulista para fazer afirmação tão corajosa. Se ele está se referindo aos iguais dos imbecis figurantes do 8 de janeiro, que estavam lá por uns caraminguás e um lanche, eu posso até concordar; afinal, sequer sabem o que é um fascista, um nazista, ou um comunista. Mas se está se referindo aqueles que já ocuparam altos postos, o que o leva a dizer isso? O histrionismo, nossa incapacidade de produzir um personagem como Hitler ou Mussolini, restritos que estamos aos jânios, collor, e outros personagens mambembes? Ou o número de cadáveres? O alcance do braço da morte, na casa dos milhares, e não dos milhões? Quem patrocina a fome secular nesse país, aliviada em pequenos intervalos pontuais, não é uma elite genocida, fascista, nazista? O que o articulista quer, um Pol Pot brasileiro? Talvez um dia haja um. Como sabe quem já se informou nos canais adequados, o número de dois milhões de mortos no Camboja durante o regime do Khmer Vermelho foi fabricado, somando-se o número estimado de vítimas dos bombardeios americanos no Laos e ao longo da fronteira com o Camboja, as vítimas da invasão vietnamita na mesma época, as vítimas reais do Khmer, dentre outros (para quem duvida: pesquisem no Google Noam Chomsky e o Camboja, ou, para os que leem em inglês, isso aqui: https://books.google.com.br/books/about/Cambodia_1975_1982.html?id=6Ow-PgAACAAJ&redir_esc=y). Talvez algum dia tenhamos isso aqui também, e joguem a culpa de toda a nossa miséria, de nossos massacres, de nossas guerras do contestado e similares, de toda a fome, racismo e demais discriminações e mazelas, nas costas de um político progressista desavisado qualquer, como o Lula. Daí, tendo um culpado para servir de judas, todos esqueceremos que essas coisas medonhas e alienígenas aconteceram aqui, e vivamos felizes para sempre, sem ser mais incomodados por esses esquerdopatas sanguinários. Como o Lula.
Cui bono negar a existência – mundial – da Extrema Direita?
Em 30.03.2023, Bolsonaro voltava da Flórida, após 89 dias. E a Folha cometeu um editorial-candura “Bolsonaro de volta – Ex-presidente tem recepção fria, mas mantém potencial de líder da oposição”.
A Barão de Limeira estava em pânico em busca de uma liderança de oposição, afinal o PT tem de ser contido, não pode governar assim livre, leve e solto.
Para isso, suavizou até o limite da irresponsabilidade todas os crimes cometidos, tratados assim em um único e curto parágrafo:
“Quebrar protocolos é uma das marcas do bolsonarismo. Mesmo na Presidência da República, Bolsonaro fez questão de ignorar regras e desrespeitar liturgias, apenas para lapidar sua identidade de personagem antissistema.”
E o fecho de ouro, eia, sus, avante novo líder da oposição:
“O bolsonarismo até poderia, se abandonasse a violência e o autoritarismo, liderar uma oposição saudável ao PT. Esse não é, infelizmente, o desfecho mais provável.”
Faltou apenas mais uma linha, certamente por descuido do editorialista de plantão:
“É o jeito dele”
O mesmo se aplica ao presente texto-fofura do eminentíssimo Doutor, um ano depois do editorial-candura da Folha:
“Como, portanto, considerá-lo como alguém de extrema-direita? Trata-se de um mero “cidadão autêntico”. Meio Homer Simpson. Meio Mazzaropi. Algo extremista. É verdade. Mas sem nenhuma compleição ideológica verdadeiramente organizada que permita enquadrá-lo como alguém de extrema-direita. “
“Meio Homer Simpson. Meio Mazzaropi.”
Também faltou mais uma linha ao texto:
“Relaxa, vai, é o jeitão dele”
Cui bono?
“Marcel Gauchet, seguramente o maior especialista do tema em escala mundial, observa que, sim, a extrema-direita foi uma peculiaridade da paisagem política europeia e francesa.” Por essa declaração, Marcel mais me parece um asno que o “maior especialista do tema”. Ku Klux Klan mandou um beijo.