Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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De volta a “Guerra sem fim”, por Daniel Afonso da Silva

Não é a primeira vez que o meu zelo no trato das palavras para me aproximar da “problemática russo-ucraniana” atual vira objeto de discordâncias.

De volta a “Guerra sem fim

por Daniel Afonso da Silva

Guerra sem fim”, de minha autoria, publicado em A terra é redonda, no dia 3 de outubro de 2023, foi objeto de muitas impressões, avaliações e reprimendas [vide https://aterraeredonda.com.br/guerra-sem-fim/]. Algumas muito favoráveis. Outras nem tanto. Muitas bem neutras. Mas a maior parte transmitida informalmente. Por amigos ou pessoas próximas. Através de mensagem rápida, ligação ligeira ou, simplesmente, com uma sinalização carinhosa informando “li seu texto”. Carlos Henrique Vianna foi além. Escreveu um artigo-resposta, publicou, descobriu o meu contato e me enviou.

Confesso que recebi e li e reli com gosto o que ele fez. Não o conheço pessoalmente. A sua mensagem e o seu texto me informaram da sua existência. Mas, ao que tudo indica, trata-se de uma pessoa simpática. Uma simples leitura do que ele escreveu evidencia essa simpatia tangida em claríssima honestidade intelectual e incontestável decência no trato de antagonismos. O que ensejaria uma ou várias conversas em pessoa, sem a guilhotina do tempo nem dos caracteres, para adentrarmos nessa verdadeira selva selvagem de temas que nos reúne.

Antes de iniciar comentar aos comentários de Carlos Henrique Vianna, gostaria de explicitar a minha convicção de que em conversa de alto nível, não existe certo nem errado; apenas argumentação racional mais inteligível e convincente. Essa convicção me foi enraizada no espírito por um distinto mestre catalão, de saudosíssima memória, de nome Josep Fontana i Làzaro.

Josep Fontana i Làzaro foi, indiscutivelmente, um dos maiores intelectuais europeus dos últimos cinquenta anos. Ele publicou trabalhos simplesmente extraordinários num tempo onde trabalhos extraordinários ainda existiam às fartas no campo das ideias. Os seus Por el bien del império e El futuro es un país extraño são, seguramente, dos estudos mais lúcidos, consistentes, engajados e relevantes disponíveis para uma compreensão segura da pasmaceira mundial que nos toca viver.[1] Encontrei-me com ele em Barcelona, na qualidade de estudante estrangeiro, uns três lustros atrás. Ele já era um senhor às voltas com os seus oitenta anos e não passava despercebido por ninguém. Portava uma impressionante história intelectual, política e humana detrás de si. E me impressionou profundamente ao me receber com uma indescritível generosidade. Num misto complexo de nobreza, delicadeza e sinceridade que ainda me emociona ao lembrar. Foi a primeira vez – e, talvez, a única – que alguém de tamanha expressão me disse tête-à-tête que a honestidade intelectual é o único valor universalizável no campo das ideias. E que, por isso, em conversa de alto nível, não existe certo nem errado; apenas argumentação mais inteligível e convincente.

Nesse espírito, inicio o diálogo com Carlos Henrique Vianna, fomentado pelo seu artigo “Lula e a guerra da Ucrânia”, publicado no dia 13 de outubro de 2023, em Faltou dizer News [vide https://faltoudizer.com/2023/10/13/lula-e-a-guerra-da-ucrania-por-carlos-vianna/].

O núcleo da crítica de Carlos Henrique Vianna ao meu “Guerra sem fim” [vide https://aterraeredonda.com.br/guerra-sem-fim/] reside em dois vetores. Um sobre a minha investida em nuançar o uso da categorização de “guerra” na denominação da “nova fase da tensão russo-ucraniana” iniciada em fevereiro de 2022. Outro sobre a minha percepção sobre as ilusões ocidentais ucranianas.

Tratarei do primeiro assunto agora e sobre segundo, voltarei em outro momento para analisar.

São dois assuntos, claramente, muito complexos. Bibliotecas inteiras já foram escritas sobre eles nos últimos trinta anos – para não dizer muitos séculos. Permito-me lembrar que o eminente historiador britânico Timothy Garton Ash [vide https://www.timothygartonash.com/], grande especialista da Eurásia, certa feita, reconheceu ser humanamente impossível acompanhar tudo de relevante que se escreve sobre aquela região de mujiques eternizada por Tolstói. E adiciono que países, famílias e amigos, em vários lugares do mundo, desde o 24 de fevereiro de 2022, estão francamente divididos na variedade de convicções que as polaridades desses assuntos fomentam.

Sobre o primeiro assunto, então, o mínimo que se deve humildemente reconhecer, é que existe uma diatribe intelectual multimilenar entorno da concepção de guerra. Os ensinamentos militares ofertam um caleidoscópio de possibilidades. Os estudos de estratégia também. As instruções do direito nacional e internacional procuram dar alguma precisão, mas ficam apenas em aproximações. Os estudos acadêmico-universitários relativizam ao máximo o problema. Os jornalistas e a opinião pública ou publicada em toda parte também. Os diplomatas e os políticos, especialmente aqueles de cabeça puída de realpolitik, sabem muito bem que, independentemente do que venha a ser uma guerra, é sempre melhor que ela não seja nem ocorra. Como indicava o eminente primeiro-ministro inglês David Lloyd George às voltas da Grande Guerra de 1914-1918 – quando o mundo inteiro apreendeu a fúria macabra dos eventos impressionantemente extraordinários de Verdun, La Somme, La Marne, Chemin des Dames sem nem sonhar com a desgraceira de Stalingrado – só banaliza a definição de uma guerra quem não sabe o que ela é. A máxima atribuída a Otto von Bismarck de que é melhor não saber como as salsichas são feitas também estava em muita voga naqueles tempos difíceis como artifício de se recusar definições rápidas e simplistas demais para guerra.

Nesses termos, para se ser minimamente intelectualmente honesto, vai relevante se reconhecer que, especialmente, depois do chão de ruínas da noite escura das guerras totais de 1914-1945, a noção, a percepção, a compreensão e a definição de guerra foram ampla e radicalmente alteradas. Em seguida, depois das efemérides de Hiroshima e Nagazaki a dissuasão nuclear ressignificou ainda mais os tons aplicados à sua categorização. Em algum momento da segunda metade do século XX, depois das experiências dramáticas de europeus e norte-americanos nas guerras na Coréia e no Vietnã, virou popular, por conta disso, a concepção de “guerras irregulares” para sofisticar mais e mais a definição de guerra. Hoje em dia, depois da erosão da Guerra Fria e com a emergência da Economia 4.0, fala-se, também e inclusive, de “guerras invisíveis”, como notavelmente analisou e avançou o eminente historiador francês entendido do assunto Thomas Gomart.[2]

Desse modo, como se pode notar, a definição de guerra não é um assunto trivial tampouco pode ser objeto de banalizações. O questionamento emitido pela abordagem de Carlos Henrique Vianna frente ao meu artigo vai, nesse ínterim, no sentido de se saber se o que ocorre no inquestionavelmente lamentável embate corrente de Rússia versus Ucrânia deve ou não receber a denominação de guerra.

Quem tiver a paciência de retornar ao meu artigo e analisá-lo com calma e sem parti pris vai notar que utilizo a expressão “tensão” – mais precisamente, “a nova fase da tensão russo-ucraniana” – para designar a imensa complexidade do problema. Prefiro, desse modo, “tensão” a “guerra” de modo consciente e voluntário. Mas, Carlos Henrique Vianna (e muitos outros) parece que não se convenceu totalmente.

Não é a primeira vez que o meu zelo no trato das palavras para me aproximar da “problemática russo-ucraniana” atual vira objeto de discordâncias. Quando iniciei, por escrito, a minha abordagem da situação com o artigo A intermitência de uma ilusão, publicado no Jornal da USP, no dia 15 de fevereiro de 2023 [vide https://jornal.usp.br/artigos/a-intermitencia-de-uma-ilusao/], a incompreensão foi similar. Recebi, na ocasião, também vários comentários, considerações e reprimendas. Uma jornalista de um reputado portal de notícias brasileiro me retorquiu fortemente dizendo se tratar de uma “guerra e que eu não ousasse mais voltar a falar do contrário. Um diplomata de um importante país europeu na função de embaixador baseado em um país euroasiático me chamou de “ardorosamente anti-ucraniano”. E, para não avançar sobre muitos outros exemplos similares, um querido amigo meu, de distinta e refinada cultura, chegou a me enquadrar como “o último comunista” por considerar que a minha opção pela expressão “tensão” em lugar de “guerra” endossava a “retórica imperialista russa da Rússia e do ditador Vladmir Putin”.

Naquela ocasião, para valorar o debate de ideias, voltei à carga para defender frações de meu ponto de vista com o artigo O futuro e o passado de uma ilusão, novamente no Jornal da USP, agora no dia 3 de março de 2023 [vide https://jornal.usp.br/artigos/o-futuro-e-o-passado-de-uma-ilusao/]. Acredito ali ter me feito melhor entender – quem sabe, esquecer. Menos pela força de meus argumentos e mais pela impaciência de meus interlocutores, que à época não pareciam portar paciência suficiente para retornar e contrastar ao conjunto de informações que mobilizei.

A essa altura dessa nova conversação sobre o tema, agora diretamente com Carlos Henrique Vianna, já não deve de ser surpresa para ninguém que nos lê que, além de colaborar em A terra é redonda, escrevo regularmente para outros lugares e, notadamente, tenho o privilégio de ser publicado constantemente aqui no GGN – O jornal de todos os Brasil tem perto de dez anos. Menciono o GGN por uma razão curiosa e conexa ao assunto aqui em discussão. O meu primeiro artigo generosamente publicado por aqui levou por título “A Ucrânia nossa de cada dia” [vide http://jornalggn.com.br/noticia/a-ucrania-nossa-de-cada-dia-por-daniel-afonso-da-silva]. Quem me incentivara a escrevê-lo e publicá-lo com os Nassif, Luis e Lourdes, foi o meu querido amigo J. Carlos de Assis que, creio, seguir dispensando apresentações – pois quem tem alguma idade e alguma cultura, como claramente deve ser o caso de Carlos Henrique Vianna, pode francamente se lembrar do impacto da publicação de A chave do tesouro e Os mandarins da República quando do início da redemocratização brasileira.[3] J. Carlos de Assis, à época comigo em terras paraibanas, me chamou a atenção para a relevância do artigo do eminente cientista político norte-americano John J. Mearsheimer sobre a “problemática ucraniana”. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault era o artigo, a revista Foreign Affairs o seu lugar original de publicação, o ano era 2014 e o mês, setembro.[4]

Li e reli aquele artigo e confabulei longa e repetidamente com J. Carlos de Assis sobre o seu conteúdo. Naquele entremeio, ele, J. Carlos de Assis, me sugeriu apresentar a minha impressão geral sobre o tema – especialmente porque eu também tinha acabado de ler e estava impactado com o formidável The second world de Parag Khana e ainda carregava frescas na memória as impressões avançadas no impactante DarkMarket de Misha Glenny sobre a Ucrânia, a Rússia, a Eurásia e afins – na forma de um artigo com linguagem para ampla divulgação.[5] E foi o que fiz.

Quem tiver o cuidado de retornar a esse meu artigo “A Ucrânia nossa de cada dia” publicado aqui no GGN vai notar que, desde 2014, tento ser parcimonioso na mobilização de conceitos bélicos e belicistas para abordar a “problemática ucraniana”. E quem voltar a ver os numerosos artigos meus publicados aqui também sobre o tema vai notar que quase nunca utilizo a denominação “guerra” para caracterizar a situação.

Goste-se ou não, existe uma “problemática ucraniana” consoante à “problemática russa” com a Ucrânia e à “problemática ocidental” com a Rússia. Não é o caso de se revisitar, aqui, as longas questões que envolvem cada uma dessas problemáticas nem todas elas em sua sincronicidade. Mas vai importante dizer, para marcar o diálogo, que muito dessa questão reside na complexa concepção russa sobre a Grand Russia.

A concepção russa de Grand Russia, ao que se entrevê, vai plasmada ao imaginário russo e eslavo de modo tão fortemente entrelaçado que se confunde com a própria história da Rússia e do mundo eslavo. Basta uma releitura das grandes narrativas de Tolstói, Dostoiévski, Gorki, Pushkin e afins ou, caso se queira algo mais concreto, que se revisite as obras incontornáveis de Orlando Figes [vide http://www.orlandofiges.com/], notadamente o seu notável The people’s tragedy, para se ter uma ideia do que se trata.[6]

É muitíssimo provável que a revolução russa e a fúria stalinista durante a Segunda Guerra Mundial tenham malversado a noção quando o expansionismo russo ganhou propósitos difusos. Mas toda gente de alguma cultura ao longo do século XX jamais menosprezou as peculiaridade russo-eslavas em sua compreensão de sua Grand Russia. Não ao acaso, o general De Gaulle, para ficar apenas num exemplo, em pleno período soviético, sempre se dirigiu “à la Russie éternelle” – “La France de toujours rend visite à la Russie de toujours” – e nunca à URSS, que ele considerava um “momento passageiro”. Adiante, todos os negociadores europeus e norte-americanos da “dissolução lenta, tranquila e gradual” do bloco soviético, no período de Mikhail Gorbachev, tiveram o mesmo zelo do general francês em nutrir a mesma devoção – mesmo que, muita vez, sem nenhum respeito – pela grandiosidade da Rússia e por sua concepção de Grand Russia.

Gente como Henry Kissinger, George Kennan ou Zbigniew Brzezinski – que podem ser chamados de tudo, menos de pró-soviéticos ou pró-russos –, quando dos espasmos finais da URSS, alertaram às principais capitais do Mundo Livre para a necessidade de, também por isso, se respeitar verdadeiramente a Rússia que renascia. Recomendaram que ela fosse tratada, sim e também, como a “Russie de toujours”. Mesmo cientes que ela estava agudamente fragilizada pelos fracassos recorrentes do socialismo real. No fundo, eles não consideravam consequente se assovelar nem humilhar aquele imenso país eslavo que vive sob o arquétipo do urso.

Pois tem sido justamente o inverso que se tem feito com esse país de alma mujique desde 1989-1991. E, sim, o desrespeito aos acordos de cavalheiros que foram estabelecidos no fio do bigode e sem tratados entre norte-americanos, europeus e russos sobre a OTAN representam um dos fatores mais decisivos do retorno em chamas da “problemática ucraniana” consoante à “problemática russa” com a Ucrânia e à “problemática ocidental” com a Rússia nos dias atuais na forma de carnificina eurasiana na Ucrânia.

Quem tiver a paciência de retornar ao discurso do presidente Vladimir Putin da véspera do início da “contraofensiva” russa na Ucrânia em fevereiro de 2022 vai notar a latência de todos esses fatores. Quem recuperar as declarações recentes do centenário Henry Kissinger sobre o assunto vai encontrar o mesmo. Quem recorrer aos discursos recentes de praticamente todas as lideranças europeias e norte-americanas que viveram diretamente as negociações para a dissolução da URSS vai perceber a eloquência e a complexidade de tudo isso. Vide, por exemplo, as memórias de Hubert Védrine e Fiodor Fédorowski, respectivos sherpas francês e soviético em 1989-1991 e ainda vivos hoje em dia. Nesses termos, não foi nada extemporânea a preocupação do presidente Mikhail Gorbachev, pouco antes de morrer em agosto de 2022, em alertar ao mundo inteiro de que o que se passa entre a Rússia e a Ucrânia desde o fevereiro de 2022 não se trata 1. nem de uma guerra tampouco 2. de uma guerra russa pela Ucrânia. O momento é, sim, delicado, dizia ele. Talvez o mais periclitante da história da humanidade, continuava. Mas não é o caso, seguia, de se banalizar a utilização do conceito guerra para abordá-lo. Pois, ainda segundo ele, não é bem o caso.

Olhando em perspectiva e com todo o cuidado necessário, se existe alguma guerra, essa guerra é de norte-americanos e europeus pela fragilização da Rússia, da Eurásia, da China e de suas conexões globais. Quando digo e reconheço isso, não quero dizer nem reconhecer qualquer vinculação explícita nem implícita minha à utópica e ilusória fraseologia meridionalista do “Sul Global” – que tive a oportunidade de demonstrar as falhas e falácias recentemente noutro artigo, que também entrou em contestação, aqui no GGN [vide https://jornalggn.com.br/geopolitica/a-armadilha-do-sul-global-por-daniel-afonso-da-silva/]. Nada disso. Estou, simplesmente, dizendo o óbvio: que o mundo é real e, sim, também brutal.

O maior problema geoestratégico dos Estados Unidos neste século XXI é a China. A China muito mais que os BRICS e muito mais que o dito “Sul Global”. Ninguém em Washington leva, verdadeiramente, a sério um nem o outro. BRICS nem o “Sul Global”. Os norte-americanos, mesmo os mais consistentes dentro e fora do deep state deles, não sabem o que fazer é com a China. Mas, em contraponto, sabem bem que golpear a Rússia agora faz ganhar tempo para golpear com mais certeza e precisão a China ulteriormente. Basta que se acompanhe as considerações de Edward Luttwak [vide https://www.hoover.org/profiles/edward-n-luttwak], dos mais influentes estrategistas norte-americanos sobre a matéria. Ele declara e demonstra isso tão abertamente que chega a ser até constrangedor.

Nesse sentido, sim, está-se promovendo uma “guerra por procuração” na Ucrânia. Norte-americanos e europeus começaram a jogar a sorte de sua própria existência no fomento à tensão russo-ucraniana.

Pierre Conesa [vide https://www.diploweb.com/_Pierre-CONESA_.html], um reputado alto funcionário francês teorizou longamente sobre essa sanha de “guerras por procuração” notadamente após a URSS e após o 9/11 e também evidenciou às fartas as raízes da situação atual conectada a essa tentação das procurações. Não é o caso de se demorar muito sobre isso aqui agora. A grande questão central envolve saber se essa “guerra mundial “por procuração” é, de fato, uma guerra? Acredito, na companhia de muitos, que não necessariamente e necessariamente não.

Voltando frontalmente ao ponto com Carlos Henrique Vianna, ao se optar – como opto eu – pela utilização de “tensão” em lugar de “guerra” na explanação sobre a situação russo-ucraniana corrente, não se está negando a coexistência de múltiplas dimensões de guerras regulares, irregulares e invisíveis no que se passa entre Moscou e Kiev. Muito do contrário. Está-se a reforçar a complexidade de tudo que se passa por lá e pelo mundo.

Um importante geógrafo e diplomata francês de nome Michel Foucher, de quem tive o privilégio de seguir um formidável seminário geopolítica tempos atrás, foi dos primeiros a notar certa insurgência da tentação colonial russa no conflito atual. Calejado de cultura eslava e de cultura geopolítica como é, não restam dúvidas da agudeza de sua avaliação. Mas, ao mesmo tempo, ele foi dos primeiros a afirmar se tratar da “pior guerra no continente europeu desde 1945”.[7] Essa parece ser, claramente, a narrativa mobilizada por Carlos Henrique Vianna ante o meu artigo. Entretanto, todos sabemos – Michel Foucher e Carlos Henrique Vianna à frente – que essa narrativa acalenta a opinião pública europeia e norte-americana, mas, também e sobretudo, silencia uma quantidade imensa de outras opiniões e fatores incrivelmente complexos.

Veja-se só – e essa observação talvez venha a chocar o meu interlocutor Carlos Henrique Vianna –, não há consenso sobre se é ou não é uma guerra isso que se passa atualmente nos prados do mundo eslavo nem entre os russos tampouco entre os ucranianos e menos ainda entre europeus e norte-americanos. Quem voltar com calma ao meu artigo aqui em litígio, no caso, “Guerra sem fim”, vai notar que digo isso e digo mais. Digo que as percepções na África, na Ásia e na América Latina também não são harmoniosas sobre o assunto. Bastar-se-ia voltar ao contexto do não endosso generalizado de embargos e sanções internacionais à Rússia por parte dos países desses continentes como aguardavam europeus e norte-americanos ao longo de 2022. Isso evidenciaria muito das percepções conceituais sobre guerra ou não guerra de parte a parte. Já se escreveu muito sobre isso e em muitos lugares. Não é o caso de retornar às deliberações das Nações Unidas sobre o problema aqui.

De toda maneira, existe outra informação, talvez relevante, que Carlos Henrique Vianna nem ninguém poderiam saber. O título original de meu artigo agora contenda não era “Guerra sem fim”: era “To be or not to be”. Algum editor em A terra é redonda que o modificou. E o fez acertadamente. “Guerra sem fim” ficou mais conivente ao conjunto da discussão sugerida no artigo e menos elipticamente obscuro como o meu título original. Agradeço, assim, ao editor anônimo que promoveu essa modificação. Especialmente por, certamente, ter sido essa modificação um dos subterfúgios para fisgar a atenção distinta de Carlos Henrique Vianna e estarmos aqui avançando essa conversação.

Acredito já ter coberto a questão de Carlos Henrique Vianna sobre ser ou não ser uma guerra a “nova fase da tensão russo-ucraniana” em curso. Acredito também ter deixado claro que sigo aberto a seguir o diálogo com ele ou quaisquer outros com fins de ser eventualmente convencido do contrário. Afinal, como disse e redigo, em conversa de alto nível, não existe certo nem errado; apenas argumentação mais inteligível e convincente.

Sobre o tema da “ocidentalização ucraniana”, retornarei em outro momento para uma segunda parte desse diálogo.

Mas, antes de me despedir, gostaria de tocar em duas impressões paralelas do artigo de Carlos Henrique Vianna sobre o meu que me deixaram, sensivelmente, constrangido. A primeira vai no título – “Lula e a guerra da Ucrânia”. A segunda vai no segundo parágrafo que diz “Quer me parecer que o artigo [no caso, o meu artigo] representa mais, ou menos, a opinião de muitos intelectuais e políticos de esquerda no Brasil” [vide https://faltoudizer.com/2023/10/13/lula-e-a-guerra-da-ucrania-por-carlos-vianna/].

Pode parecer evidente, mas nunca vai inconsequente explicitar a evidência de que não falo nem respondo tampouco tenho a pretensão de influenciar os posicionamentos do presidente Lula da Silva nem de seu governo tampouco dos integrantes de sua frente ampla de apoiadores que vai do Partido dos Trabalhadores da gente honrada de São Bernardo do Campo, Diadema e afins ao Partido Socialista Brasileiro do governador Geraldo Alckmin passando pelo Partido Socialismo e Liberdade do prefeiturável Guilherme Boulos. Não tenho a pretensão de influenciá-los e confesso despudoradamente acreditar ser por eles, inclusive, ignorado dado ao caráter francamente obscuro quando não demasiado excêntrico de minhas impressões aqui e alhures. Sou um mero observador periférico e obtuso da realidade nacional e de algumas epopeias internacionais que procura se manifestar publicamente de maneira intelectualmente honesta. Só, somente só e simplesmente só isso.

Da mesma sorte e agora confrontando a segunda impressão paralela de Carlos Henrique Vianna, não represento intelectuais tampouco políticos de esquerda com as minhas ideias, publicações e posições. Para ser bem sincero e sob pena de soar cabotino, confesso que nem sei se essa coisa que se chama esquerda continua verdadeiramente existindo entre nós para além das nostalgias de alguns, das incontinências de um e outro frequentador assíduo de algum centro acadêmico de cursos universitários de Humanidades e Ciências Humanas Brasil afora, das cercanias do Partido da Causa Operária (inquestionavelmente o último bastião brasileiro reconhecidamente sério desse enquadramento ideológico) e um e outro espaço de divulgação de ideias políticas. Digo isso com alguma convicção e sem o interesse de iniciar uma outra discussão. Para eventuais maiores aprofundamentos sobre esse assunto intelectualmente também muito complexo sugiro o incontornável La Droite et la Gauche de Marcel Gauchet[8] e, por que não, a importantíssima entrevista de Paulo Eduardo Arantes em A terra é redonda [vide https://aterraeredonda.com.br/a-terra-e-redonda-entrevista-paulo-arantes/].

Não sei qual é o espectro ideológico de Carlos Henrique Vianna tampouco a densidade de seus equipamentos intelectuais e culturais gerais. A única informação suplementar ao seu nome que possuo é que ele foi co-fundador e ex-presidente da Casa do Brasil em Lisboa. Nesse sentido, não sei exatamente como enquadrá-lo. Se é que seria, verdadeiramente, o caso de enquadrá-lo (ou enquadrar qualquer pessoa) para se dialogar. Acredito desnecessário.

Espero – e com isso me despeço –, por fim, ter deixado para Carlos Henrique Vianna que, no que tange as variadas escalas da questão russo-ucraniana, sigo convencido de que não existem santos no serralho. Todos os envolvidos possuem múltiplas partes importantes de responsabilidade. Denominar “guerra” em lugar de “tensão” tende a simplificar o problema e eximir especialmente dos mandatários ucranianos e ocidentais, europeus e norte-americanos, imensas parcelas de encargos. Voltarei a isso em breve, tratando do Ocidente e a Ucrânia. Por agora, deixo um forte abraço e o desejo de boa semana. Ao Carlos Henrique Vianna e a quem quiser.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.


[1] FONTANA I LÀZARO, Josep. Por el bien del imperio. Barcelona: Passado & Presente, 2011. FONTANA I LÀZARO, Josep. El futuro es un país extraño: una reflexión sobre la crisis social de comienzos del siglo XXI. Barcelona: Passado & Presente, 2013.

[2] GOMART, Thomas. Guerres invisibles – nos prochains défis géopolitiques. Paris: Talandier, 2021.

[3] ASSIS, J. Carlos. A chave do tesouro. São Paulo: Paz e Terra, 1983. ASSIS, J. Carlos. Os mandarins da república. São Paulo: Paz e Terra, 1984.

[4] MEARSHEIMER, John. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. Foreign Affairs, sept/oct 2014.

[5] KHANNA, Parag. The Second World: How Emerging Powers Are Redefining Global Competition in the Twenty-first. New York: Randon House, 2009. GLENNY, Misha. DarkMarket: How Hackers Became the New Mafia. London: Vintage, 2012.

[6] FIGES, Orlando. A People’s Tragedy: A History of the Russian Revolution. London: Penguin, 1998.

[7] Vide, especialmente, FOUCHER, Michel. Ukraine – une guerre coloniale en Europe. Paris: De l’Aube, 2022. FOUCHER, Michel. Ukraine-Russie, la carte mentale du duel. Paris: Gallimard, 2022.

[8] GAUCHET, Marcel. La Droite et la Gauche: Histoire et destin. Paris: Gallimard, 2021.

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