É preciso chamar Genocídio de Genocídio.
por João Amorim
Albert Camus certa vez disse que chamar as coisas pelo nome errado causa sofrimento ao mundo. Em tempos das chamadas pós-verdade, fake news e deep fake, percebemos a cada dia que a verdade se tornou refém de poderosos interesses corporativos, assim como toda a nossa linguagem e comunicação.
Já há décadas nos acostumamos a denominar imperialismode globalização, trabalhadorde colaborador, chefede líder, oportunismo de pragmatismo, golpe de Estadode impeachment, lutas e movimentos identitários, de reinvindicação de direitos e reparações históricas, de “mimimi”, e assim por diante. Detalhes que vão esvaziando a força dos conceitos corretos, portadores de valores e significados resultantes de uma série de direitos e conquistas sociais decorrentes de séculos de lutas.
Concomitante a esse processo – global e que, como toda estratégia de dominação e alienação, se adapta às peculiaridades culturais de cada localidade, diga-se de passagem –, temos a cotidiana normalização de perversidades, outra característica das novas realidades comunicativas, e a busca constante pela suavização midiática de pessoas cruéis, quando passamos, por exemplo, a chamar qualquer fascistóide imbecil de mito ou ultraliberal, somente para torná-lo mais palatável a certa opinião pública, criando um simulacro útil àqueles que lucram com o caos e a morte, os verdadeiros controladores de uma ordem mundial criminosa e destruidora.
A vida confinada nas redes sociais nos traz um mundo ambíguo, sem sentido, dividido entras as muitas crises e tragédias humanas e humanitárias, e a frivolidade estética, ética e intelectual das celebridades instantâneas e passageiras dessa nova realidade.
Em todos os campos das relações políticas atuais, nos debruçamos com disputas de versões, narrativas e explicações esfarrapadas, muitas delas desafiadoras da lógica mais comum e inteligível, diante dos muitos escândalos e incompetências.
Por isso, é preciso buscar chamar as coisas pelos nomes corretos. Principalmente para não gerar ainda mais sofrimento ao mundo.
Nos últimos 45 dias, temos assistido às devastadoras cenas dos ataques israelenses à Faixa de Gaza, em resposta ao ataque do Hamas. E, antes que os algoritmos se contorçam em cólicas, e os mais exaltados disparem a pergunta pronta de sempre – “E o Hamas?” –, me adianto: sim, os atos praticados pelo Hamas também se subsomem a tipos penais internacionais, e seus agentes devem ser julgados e condenados por tribunais internacionais legítimos, e dentro dos preceitos do Direito.
Não é por outra razão que, desde 2021, a promotoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) investiga, de modo inédito no Direito Internacional, a situação nos territórios palestinos, abordando os atos praticados tanto pelas Forças de Defesa de Israel quanto por grupos palestinos, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, desde 2014. Este inquérito busca reunir provas da prática de crimes de guerra e crimes contra a Humanidade, ambos tipificados pelo Estatuto de Roma (1998), nos territórios do Estado da Palestina, que é membro formal do TPI desde 2015.
Em sua ofensiva, Israel já despejou sobre a população civil naquele território, composta em sua maioria de mulheres e crianças, o equivalente, em explosivos, a duas bombas de Hiroshima. As ações israelenses mataram, até o momento, mais de 14 mil pessoas, das quais 5.500 crianças. Mais de 3.800 pessoas estão desaparecidas, a metade delas crianças, provavelmente debaixo dos escombros dos edifícios bombardeados indiscriminadamente.
Hospitais foram destruídos e tomados de assalto, instalações e abrigos de agências humanitárias, escolas, mesquitas, igrejas, edifícios, casas foram deliberadamente bombardeados e arrasados. Mais de 1,5 milhão de pessoas foi forçada a se deslocar, e bombardeada tanto no meio do caminho quanto ao chegar ao destino indicado como “seguro”. As pessoas que ainda estão ali seguem condenadas a viver praticamente sem água, sem comida, sem energia, sem esperança.
As autoridades israelenses, após toda a devastação, morte e sofrimento causados a milhões de civis palestinos – tanto na Faixa de Gaza quanto na Cisjordânia –, acenam com uma troca de reféns por prisioneiros palestinos (muitos, inclusive, crianças que nunca cometeram crime algum, além do de terem nascido com uma nacionalidade-alvo), mas sem qualquer garantia de que o massacre e a destruição serão definitivamente encerrados.
Soldados israelenses registram a comemoração pela tomada de um hospital, onde recém-nascidos agonizaram e sufocaram, sem suas incubadoras, e onde crianças passam por cirurgias sem anestesia. Integrantes do governo Netanyahu já afirmaram que deveria ser jogada uma bomba atômica sobre a Faixa de Gaza, que ali só vivem animais, que os ataques militares estão mais preocupados com a destruição do que com a precisão, que todos os palestinos devem ser expulsos ou aniquilados, ou, ainda, que os ataques não vão parar até que tudo esteja destruído.
Desde 1948, com a adoção da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (que o Estado de Israel ratificou em 1949), todas as normas que tipificaram ou tipificam o crime de genocídio (Estatuto do Tribunal Internacional Penal para Ruanda, Estatuto do Tribunal Internacional para a Ex-Iugoslávia e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional), oconsideram um crime internacional, que pode ser praticado tanto em tempos de guerra quanto de paz, e que agride profundamente a dignidade de toda a Humanidade, sendo considerado um dos chamados Crimes de Atrocidade (Genocídio, Crimes contra a Humanidade, Crimes de Guerra e Limpeza Étnica).
A definição legal de genocídio engloba quaisquer atos praticados com o intuito de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como assassinato, atentado grave à sua integridade física e mental, submissão deliberada a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial.
Além disso, dentre outras questões, todas as normas internacionais pertinentes também são unânimes em punir, além dos autores dos atos genocidas em si, os conluios com vista a cometer genocídio, o incitamento, direto e público, ao genocídio, a tentativa de genocídio, e a cumplicidade no genocídio.
Assim, não apenas o Estado de Israel, através de suas forças de segurança, comete atos de genocídio diariamente, desde o início da operação militar na Faixa de Gaza, como as potências que apoiam e legitimam esses atos, assim como as empresas que financiam e viabilizam a sua concretização, por cumplicidade também o fazem, e devem ser igualmente punidos ou boicotados.
Alguns chamam as ações realizadas por Israel, na Faixa de Gaza, desde 07.10.2023, de “operação militar”, “legítima defesa”, “dano colateral” ou mesmo “guerra”, palavra que implica numa certa aparência de equilíbrio de forças entre os beligerantes. Há ainda os que chamam as pavorosas e criminosas declarações dos membros do governo israelense de “liberdade de expressão” ou de “declaração política”. Outros, como eu, preferem chamar a tudo isso pelo nome correto: Genocídio.
Chamar os massacres que estão sendo perpetrados na Faixa de Gaza pelo seu nome correto, não apenas é uma questão de legalidade e justiça, mas também, e sobretudo, de luta contra a desumanização e o extermínio do povo palestino.
João Amorim é Livre-Docente em Direito Internacional pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). Pós-Doutor em Direito Internacional e Relações Internacionais, no Instituto de Relações Internacionais da USP. Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (CAPES 6). Mestre em Direito Internacional, pela Faculdade de Direito da USP (CAPES 6). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (1999).
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