Fascismo e ansiedade sexual
por Arnaldo Cardoso
O abjeto discurso proferido na Câmara dos Deputados, no Dia Internacional da Mulher, pelo jovem deputado mineiro de extrema direita que se alçou à política nacional através de performance nas redes sociais em contexto de radicalização e polarização política, de tão desprezível que se mostrou, não deveria merecer nada além das medidas já tomadas por partidos políticos e pelo Ministério Público. A espetacularização da política é sabidamente uma das táticas usadas por essas torpes figuras para promover a despolitização do povo, desviar a atenção sobre problemas reais e ganhar visibilidade, ainda que como um troll ensandecido.
Mas há algo que merece ser apreendido da deprimente performance do medíocre e descompensado jovem que ocupou o palco maior da política nacional.
Fascismo e ansiedade sexual
Em capítulo específico do livro “Como funciona o fascismo” (2018) o estudioso do neofascismo e professor da Universidade de Yale, Jason Stanley, expõe como a ansiedade sexual atravessa a mentalidade fascista e se converte em política.
Tanto reportando-se ao fascismo histórico italiano de Benito Mussolini, quanto às expressões da extrema direita contemporânea em diferentes partes do mundo, são abundantes as manifestações de pânico de figuras masculinas caricatas como Donald Trump, Matteo Salvini, Jair Bolsonaro e seus seguidores diante de “ameaças” de natureza sexual. Vale lembrar que Trump, abriu sua campanha política em 2016 com alertas sobre o perigo representado por “estupradores mexicanos”.
Nos Estados Unidos sob Trump, assistiu-se a “uma perda de ‘faculdades lógicas’ diante de uma enxurrada de propaganda vinculando grupos de imigrantes ao estupro.
Na Itália, o líder do partido de extrema direita Liga, Matteo Salvini, sem qualquer criatividade, só trocou as nacionalidades dos “estupradores mexicanos” para promover o mesmo medo em relação a imigrantes provenientes do norte da África e Oriente Médio. Como a hipocrisia é também uma marca desses falsos moralistas, Salvini calou-se diante do escândalo protagonizado por seu principal assessor, Luca Morisi, envolvendo cocaína, estimulantes sexuais e garotos de programa romenos em uma mansão em Belfiore. Drogas, imigrantes e homossexualismo, tudo o que eles publicamente abominam.
No Brasil, o paranoico elevado ao status de mito, também explorou o medo primário de parcelas do eleitorado com alarmes sobre o “kit gay” e a “mamadeira de piroca” – objeto imaginário que talvez pudesse servir para reduzir a ansiedade de seus criadores.
Jason Stanley avalia que:
“A propaganda fascista amplia esse medo ao sexualizar a ameaça do outro. Como a política fascista tem, na sua base, a tradicional família patriarcal, ela é naturalmente acompanhada de pânico sobre os desvios dessa família patriarcal. Transgêneros e homossexuais são usados para aumentar a ansiedade e o pânico sobre a ameaça aos papéis masculinos tradicionais”. (127)
Como bem pontuou a psicanalista Vera Iaconelli em ótimo artigo publicado ontem na Folha de S. Paulo, ao abordar “fachadas masculinas” como a do ‘cara do Campari’, expôs como elas são “um exemplo acabado da fragilidade absoluta de uma imagem construída sobre a areia movediça. Seria apenas um tipo patético e risível se esse raciocínio não se ligasse às piores formas de violência que são cometidas todos os dias contra as mulheres”.
Do livro de Stanley, vale também destacar o trecho em que relaciona a ansiedade sexual com crise econômica […] “A política fascista distorce a ansiedade masculina, acentuada pela ansiedade econômica, transformando-a em temor de que sua família esteja sob ameaça existencial por parte daqueles que rejeitam sua estrutura e suas tradições. Aqui, novamente, a arma usada na política fascista é uma suposta ameaça potencial de agressão sexual”. (134)
O perigo das grandes cidades
Elites liberais de esquerda são sempre vistas por esses fascistas como fonte de ameaças e instabilidade. Para eles, as grandes cidades são as “fontes mais notórias e concentradas de desvio sexual e ameaças violentas”. Não raramente, escolhem cidades do campo para se instalarem e elegem atividades econômicas rurais como modelos para a organização social.
Stanley nos lembra que no começo do século XX na Alemanha “havia uma tradição romântica na literatura e na cultura que considerava as cidades como a causa de males sociais, e o campo como um elemento purificador.
As denúncias de Hitler às grandes cidades cosmopolitas e suas produções culturais são típicas da política fascista”. (136)
A liberdade e a igualdade como ameaças
Ainda do capítulo 8 do livro “Como funciona o fascismo” o autor reflete que “Ao empregar a política da ansiedade sexual, um líder político apresenta, ainda que indiretamente, a liberdade e a igualdade como ameaças. A expressão da identidade de gênero ou preferência sexual é um exercício de liberdade. […] O direito de uma mulher de fazer um aborto é também um exercício de liberdade. […] Quando a igualdade é concedida às mulheres, o papel dos homens como únicos provedores de suas famílias é ameaçado”. (137)
Um dos atuais expoentes da extrema direita, a Primeira-Ministra da Itália, Georgia Meloni, líder do partido neofascista Irmãos da Itália (FdI) manifestou recentemente uma indagação em evento público “por que os intelectuais e os artistas [em sua maioria] não gostam da direita?”. Pouco depois o país assistiu aos repetidos ataques de membros do governo Meloni e seus apoiadores – como o Presidente do Senado, Ignazio La Russa, filho de fascista histórico e que, com orgulho, dá continuidade ao legado familiar – ao mais importante festival de música popular italiano, o Festival de Sanremo.
Nas cinco noites do festival, com o teatro Ariston lotado e com transmissão ao vivo para milhões de telespectadores pela tv estatal RAI, viu-se um cantor rasgar a foto de um ministro vestido de nazista em sua festa de formatura; cantores e cantoras lerem manifestos contra a violência de gênero no país e, para o horror dos políticos da direita e da extrema direita, um beijo espontâneo um tanto sensual dado pelo cantor Rosa Chemical no também cantor e influenciador social Federico Fedez.
Nos dias que se seguiram, o tal beijo foi mais discutido pelo governo que atos de violência contra jovens em um colégio de Florença, que estimativas de queda no PIB e diante de mais um tenebroso naufrágio na costa italiana de barco com imigrantes provenientes do Paquistão e do Afeganistão, causando mais de 70 mortes.
O beijo foi mais preocupante que tudo isso.
No Brasil, a derrota nas urnas em outubro passado do projeto fascista liderado por Bolsonaro, foi decisiva para interromper essa marcha, mas como se viu ontem na tribuna do Congresso Nacional, há ainda muito trabalho pela frente.
A realidade impõe aos democratas que sejam vigilantes, dispostos a fazer valer os princípios democráticos consubstanciados na Constituição Federal do Brasil de 1988 e que estejam conscientes das necessárias mudanças na cultural geral, para superar os vícios remanescentes do passado colonial, patriarcal e escravista que, combinados e explorados nos períodos autoritários no país, e um tanto descuidados nos períodos democráticos, ainda operam e comprometem a liberdade, a igualdade e a justiça social em nosso país.
Arnaldo Cardoso, cientista político (PUC-SP), pesquisador, escritor e professor universitário.
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