Os militares não devem fiscalizar as eleições, por Fábio de Oliveira Ribeiro

No Brasil, durante quatro anos Jair Bolsonaro tentou de todas as maneiras criar um cenário parecido com aquele que provocou a guerra civil ucraniana.

Os militares não devem fiscalizar as eleições

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Aristóteles disse que “A palavra, porém, tem por fim fazer compreender o que é útil ou prejudicial, e, em consequência, o que é justo ou injusto. O que distingue o homem de um modo específico é que ele sabe discernir o bem do mal, o justo do injusto, e assim todos os sentimentos da mesma ordem cuja comunicação constitui precisamente a família e o Estado.” (A Política, Aristóteles, Saraiva de Bolso, Rio de Janeiro, 2011, p. 22)

Assim como o amor e a linguagem sincronizam os membros de uma família, o discurso e a política são capazes de sincronizar os habitantes de uma mesma cidade (ou Estado). Todavia, Aristóteles enfatiza que a amizade é essencial para a construção da coesão social. Uma cidade em que predomina a inimizade entre os cidadãos não conseguiria resolver seus problemas sem o derramamento de sangue. Ela se tornaria presa fácil para seus inimigos externos.

Foi exatamente isso o que ocorreu no caso da Ucrânia. Aquele país foi rapidamente desestabilizado pela CIA porque os ucranianos já estavam divididos étnica e linguisticamente. Assim que o governo foi derrubado e substituído por um regime nazista, a violência cresceu até se tornar o fenômeno mais importante em toda Europa. Os europeus deram pouca atenção às reclamações feitas pelos habitantes de Lugansk e Donetsk, que durante vários anos foram militarmente atacados pelos soldados e pelas milícias nazistas de Kiev. O resultado previsível ocorreu há alguns meses: a Rússia invadiu o país para proteger contingentes populacionais que falam russo e que estavam sendo exterminados. 

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No Brasil, durante quatro anos Jair Bolsonaro tentou de todas as maneiras criar um cenário parecido com aquele que provocou a guerra civil ucraniana. Mas ao que tudo indica ele fracassou. As disputas partidárias e ideológicas entre os brasileiros não são e não serão tão violentas quanto aquelas que estão incendiando o coração da Europa. 

Não só isso, bem ou mal, mal ou bem, apesar de não ter evitado o aumento exponencial de violência contra os índios, o Judiciário brasileiro conseguiu se posicionar corretamente acima da bestialidade bolsonarista. Quanto mais Bolsonaro se mostrar irritado com o STF menor serão as chances de o Führer bananeiro provocar uma ruptura e o banho de sangue que ele deseja. Os militares usaram o presidente genocida para conquistar salários melhores e uma fatia maior do orçamento, mas nada indica que eles se sintam particularmente tentados a estraçalhar o país só para manter Bolsonaro na presidência. Mas na verdade não é disso que eu quero falar. 

O processo de comunicação de que fala Aristóteles é obviamente muito diferente daquele que existe na atualidade. Entre nós, não é mais possível dizer que “A palavra, porém, tem por fim fazer compreender o que é útil ou prejudicial, e, em consequência, o que é justo ou injusto.” Os algoritmos sincronizam as pessoas levando em conta apenas as agendas políticas e econômicas de seus donos. A distinção entre justo e injusto se tornou opaca num mundo em que as Fake News podem ser mais intensamente compartilhadas do que as verdades factuais. Em decorrência das inovações tecnológicas, que foram utilizadas pela CIA para desestabilizar a Ucrânia, a palavra se tornou incapaz de fazer compreender o que é útil ou prejudicial. 

Nem mesmo os EUA pode dizer que está imune à desordem provocada pelas redes antissociais que espalham mentiras, falsificações e ódio racial e político na internet. A invasão do Congresso dos EUA não foi uma exceção, mas o sintoma de uma doença que está se espalhando rapidamente. Se depender das hordas bolsonaristas algo semelhante ocorrerá no Brasil após a vitória de Lula. Será preciso garantir a ordem, mas isso não poderá ser feito sem que as redes antissociais comandadas pela familícia sejam monitoradas e desativadas antes, durante e depois das eleições. Esse talvez seja o maior desafio imposto ao TSE e ao STF nos próximos meses.

Numa democracia, o resultado eleitoral justo não é aquele que um dos contendores pretende impor à força ao conjunto da sociedade. As eleições devem ser conduzidas pela instituição criada para essa finalidade e não por capangas do candidato a ditador que pretende se perpetuar no poder sem a maioria dos sufrágios. Aquilo que Jair Bolsonaro considera benéfico para si mesmo pode ser e será prejudicial para o Brasil, especialmente se as eleições forem de alguma forma controladas pelo Exército. A missão dos militares é defender as fronteiras do país e não transformar as eleições num campo de batalha. Eles não são juízes eleitorais e não podem constituir um Tribunal de Exceção para julgar a atuação do TSE.

Se querem colaborar para a preservação da ordem, os militares brasileiros devem monitorar e fiscalizar os bandos de criminosos comandados pela familícia Bolsonaro. Eles são os únicos que, nesse momento, se apresentam como inimigos internos do Brasil. 

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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