Problematizando a escolha da chefia do Ministério Público brasileiro, por Marcelo P. Goulart e Márcio S. Berclaz

É oportuno e atual discutir a insuficiência da previsão constitucional para a escolha do Procurador-Geral da República.

do Coletivo Transforma MP

Problematizando a escolha da chefia do Ministério Público brasileiro

por Marcelo Pedroso Goulart e Márcio Soares Berclaz

Materialmente, quem precisa (ria) “chefiar” o Ministério Público é a sociedade. No desafio da vida democrática cotidiana, é para a sociedade que o Ministério Público existe e se justifica como instituição do dito sistema de justiça. Não a partir de qualquer “lugar”, mas tomando como ponto de partida a missão constitucional confiada à instituição.

A evolução histórico-institucional do Ministério Público brasileiro deve ser permanente e constante, acompanhando os problemas da sociedade no seu tempo, com atenção à dialética da história, sempre na direção de avanços e aprimoramentos necessários a qualquer instituição. 

Quando esse tema aparece, ainda que de maneira marginal, na pauta de candidatos a Presidente da República, quando a discussão sobre autonomia, independência e controle do Ministério Público ganha os editoriais dos “jornalões”, quando, numa simples conversa, percebe-se que a sociedade, de modo geral, ainda desconhece não só algumas atribuições constitucionais, mas como se dá o processo de escolha da chefia do Ministério Público, tem-se um indicativo de que a tarefa de democratização do Ministério Público é um desafio urgente.

Nesse contexto, poucas vezes foi tão oportuno e atual discutir a insuficiência da previsão constitucional para a escolha do Procurador-Geral da República.

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É o Procurador-Geral da República quem não só preside o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), colegiado criado pela Emenda Constitucional n. 45/2004, como também ocupa assento único no Supremo Tribunal Federal, como Corte Constitucional, representando o Ministério Público brasileiro, composto de dois grandes ramos: Ministérios Públicos dos Estados e Ministério Público da União (Federal, do Trabalho e Militar).

No art. 127, a Constituição da República confere ao Ministério Público a missão de promover e defender a ordem jurídica (a Constituição e toda legislação a ela adequada) e a democracia substantiva (o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis), assim como tão bem sintetizada nos seus três primeiros artigos. Dessa missão decorrem inúmeras atribuições, previstas no rol exemplificativo do art. 129, dentre as quais a de fiscalizar, em nome da sociedade, os poderes da República. Pela importância dessas tarefas, os trabalhadores dessa Instituição nela ingressam por meio de concurso público de provas e títulos para integrar uma carreira pública de Estado (Constituição da República, art. 129, § 3º, combinado com o art. 37, inciso II).

A rala previsão normativa constitucional prevê em dois precários parágrafos do artigo 128 a configuração da Procuradoria-Geral da República. No primeiro, determina que ao PGR cabe a chefia do Ministério Público da União. Ainda nesse parágrafo, define que a sua nomeação recaia sobre integrante da carreira, maior de trinta e cinco anos, com nomeação pelo Presidente da República e aprovação do seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal para mandato de dois anos, permitida a recondução. 

De pronto, três problemas chamam atenção: 1) permitir-se que seja justamente a autoridade fiscalizada, no âmbito civil e criminal, pela Procuradoria-Geral da República, no caso, o Presidente da República, a responsável pela indicação e nomeação do seu próprio fiscal;  2) exigir que  apenas a maioria absoluta do Senado (metade do total de membros mais um), e não a qualificada (p. ex., dois terços ou três quintos do total de membros) aprove a nomeação, sem a participação da Câmara de Deputados como Casa do Povo; 3) permitir uma sempre questionável recondução, ao invés de prever mandato um pouco mais estendido sem essa possibilidade sempre polêmica. 

Percebe-se de plano que o Ministério Público, Instituição encarregada da defesa do regime democrático, nos termos do artigo 127 da Constituição, não respeita a melhor dimensão da democracia para a escolha do PGR, nem mesmo na dimensão da representação, quando mais da participação, da deliberação e da radicalidade. 

O máximo que se tem é um mecanismo democrático indireto em que o Presidente da República “da vez” escolhe quem ocupará este cargo, nomeação submetida à aprovação por maioria absoluta por apenas uma das casas do Congresso Nacional.

Essa nomeação sequer prevê uma pré-seleção de interessados por chamamento público ou qualquer outro modo mais democrático de chamamento ou escolha, com possibilidade de diálogo e participação da sociedade, inclusive para impugnar ou questionar, a partir de critérios objetivos ou de requisitos pré-definidos, pretendentes ao cargo. 

A aprovação pelo Legislativo, como regra e fluxo procedimental, não é precedida de audiências públicas e de possibilidade de efetiva participação da sociedade civil e dos movimentos sociais-populares como destinatários da ação do Ministério Público como instituição do sistema de Justiça ou de aplicação do Direito. 

Em outras palavras, aceitar a “normalidade” desse aberrante modelo seria como aceitar, no microcosmo, que fosse o Prefeito Municipal de qualquer município brasileiro o principal responsável pela escolha do Promotor Promotor de Justiça que irá fiscalizá-lo, contanto que houvesse aprovação por maioria absoluta dos membros da Câmara de Vereadores.

Evidente que não é preciso muito esforço para que se perceba uma contradição lógica e ético-republicana nesse modelo, suficiente para, no mínimo, enfraquecer a independência e a necessária autonomia institucional do Ministério Público, atributo essencial que decorre de sua missão e das atribuições que, em regra, têm como objeto o enfrentamento com o poder político ou com o poder econômico, isoladamente considerados ou em combinação.

Mas não é só. Preocupante ainda é que, de modo a complementar esse arrevesado modelo, o parágrafo segundo do artigo 128 da Constituição preveja que a destituição do Procurador-Geral da República não pode ser de iniciativa do Congresso ou mesmo de qualquer outro cidadão, mas unicamente do próprio Presidente da República que o nomeou, o que não faz o menor sentido, posto que se equipara um processo de “destituição” a uma simples exoneração, ainda que essa precise ser autorizada por maioria absoluta, e não qualificada, do mesmo Senado. Afigura-se aqui, a esdrúxula figura do fiscal refém do fiscalizado. 

Ainda que aparentemente menos ruim, a forma de escolha dos Procuradores-Gerais de Justiça (Chefes dos Ministérios Públicos Estaduais e do Distrito Federal) também não se apresenta como a mais compatível com o regime democrático na amplitude e riqueza da sua dimensão (ver CR, art.128, § 3º).  A formação de lista tríplice dentre integrantes da carreira não é suficiente para dar contornos de legitimidade à escolha dos Procuradores-Gerais de Justiça, pois a decisão final cabe ao Chefe do Executivo, com os mesmos inconvenientes apontados para o caso da nomeação do PGR. Se é certo que o ato complexo permite “primeiro turno” que passe pela eleição interna com participação dos agentes políticos na definição dos três nomes a compor a lista – um inegável avanço ao tempo da sua implementação –, também é certo que os Legislativos Estaduais e do DF ficam afastados do processo, e o “segundo turno” ocorre de forma pouco transparente, tornando os candidatos sobrantes susceptíveis ao jogo político-partidário clientelista e elitista de baixo alcance que se trava entre as quatro paredes dos gabinetes palacianos. Aqui, também, em último grau, o fiscal é escolhido pelo fiscalizado, possibilitando formas de cooptação que igualmente ferem de morte a autonomia do Ministério Público. 

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O processo de escolha e de destituição dos Procuradores-Gerais, em todos os níveis, deve garantir-lhes legitimação sociopolítica, como também deve preservar a autonomia institucional dos Ministérios Públicos. Mais: adequando-se esse processo ao princípio constitucional da democracia semidireta, devem ser estabelecidos mecanismos que permitam a participação cidadã, o controle social e a responsabilização (accountability) do escolhido.

Tomando de empréstimo binômio proposto por Paulo Freire, para além da denúncia, apresenta-se para reflexão alguns dos possíveis anúncios desse modelo.

Ainda que seja de se esperar que com a conscientização e reflexão da sociedade possamos alcançar níveis mais avançados e bastante disruptivos com o limitado e insuficiente modelo atualmente vigente, importante chamar atenção de que são bastante factíveis propostas “reformistas” de baixa ou média intensidade, mas capazes de incrementar o formato atualmente vigente.

Enquanto espera-se espaço de abertura para a primeira proposta, apresenta-se algumas hipóteses que servem para amadurecer e estimular o debate a respeito do tema, certo de que o simples fato de o assunto ser problematizado e discutido já cria um ambiente propício para conscientização da sociedade sobre o ponto objeto de análise.

Afinal, sabe-se que a mudança cultural é lenta e enfrenta os limites da dialética da história, desafiando uma linguagem para muito além do universo jurídico e, inclusive, por outros meios de alerta e sensibilização para o problema, na certeza de que o melhor “modelo” não poderá ser construído de maneira “corporativa” ou “por dentro do Ministério Público”, mas por uma qualificada e atenta escuta da sociedade.

Propõe-se, assim:

1)Discutir, em perspectiva crítica, as vantagens e desvantagens adoção da lista tríplice como um dos aspectos integrantes no processo de escolha dos Procuradores-Gerais da República, dos Estados e do Distrito Federal, repensando como se dá a formação da lista e estendendo-se o direito ao voto a todos os integrantes da instituição (agentes políticos e técnico-administrativos), aprimorando o encaminhamento direto da lista tríplice às respectivas casas legislativas objetivando a avaliação das propostas dos membros da lista tríplice em audiências públicas e sabatinas;

2) escolha dos Procuradores-Gerais pelo plenário dos órgãos Legislativos, após audiências públicas com possibilidade de participação da sociedade, com envolvimento de comissão especializada correspondente e por deliberação de maioria qualificada, para mandato de 04 (quatro) anos, vedada a recondução;

3) envio do nome escolhido pelo Legislativo ao Executivo para mera expedição do ato de nomeação, salvo eventual e excepcional hipótese de devolução por descumprimento ou insuficiente observância do fluxo devido;

4) conferir aos respectivos órgãos da administração superior dos Ministérios Públicos, aos Chefes de Executivo, às bancadas dos partidos políticos e, sobretudo, às organizações populares da sociedade civil devidamente reconhecidas como existentes e legítimas, a iniciativa para o pedido de destituição dos Procuradores-Gerais perante os órgãos Legislativos que os escolheram;

5) prestação de contas anual, pelos Procuradores-Gerais, sobre o cumprimento do que, idealmente com a necessária e democrática participação da sociedade,  foi estabelecido no planejamento estratégico e nos planos gerais de atuação dos respectivos Ministérios Públicos, em audiência pública realizada na sede dos respectivos órgãos Legislativos que os escolheram, garantindo-se o direito a voz aos presidentes de todas as comissões legislativas, aos representantes legais das organizações da sociedade civil e a qualquer do povo, mediante prévia inscrição.

Antes que se diga que outros modelos de direito comparado adotarem perspectiva similar a que temos, a autenticidade e singularidade do Ministério Público brasileiro, atuante tanto na titularidade da ação penal como na defesa e promoção dos direitos humanos, não por acaso definido por qualificada doutrinadora como uma “jaboticaba” (Maria Tereza Sadek), impõe que haja um modelo exemplarmente democrático e vigorosamente legítimo para escolha das suas chefias, no caso, as diferentes “Procuradorias-Gerais”.

Um novo (ou no mínimo aprimorado) modelo robustamente democrático que tenha como premissa a preservação da autonomia e da independência da instituição. Um  arejado e mais republicano procedimento de escolha que, diferentemente do que hoje ocorre, permita que haja consciência, organização e politização da sociedade para compreender a importância e o papel desta autoridade jurídica não só para o fortalecimento do Ministério Público brasileiro, mas, sobretudo, para que seja o Ministério Público, cada vez mais, uma essencial à justiça, comprometida com a realização dos objetivos da República e imprescindível para a árdua e cotidiana tarefa de fiscalização dos poderes constituídos para resguardo de direitos fundamentais e coletivos do povo brasileiro.  

Marcelo Pedroso Goulart ([email protected] – membro do MP-SP (aposentado), do Coletivo por um Ministério Público Transformador e do Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estudos em Ministério Público, Direito e Democracia

Márcio Soares Berclaz ([email protected] – membro do MP-PR, do Coletivo por um Ministério Público Transformador e do Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estudos em Ministério Público, Direito e Democracia

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