
Renovação da burguesia reacionária na América de Trump?
Faz algum tempo que temos insistido sobre as eminentes ameaças que certos gestores econômicos do capital, tais como Musk, Zuckerberg, Bezos, Thiel, Altman etc. representam. A julgar por aquilo que dizem e fazem na condução de seus grandes negócios, não seria muito exagerado especular sobre os rumos que ajudam a imprimir sobre a humanidade.
As mais recentes movimentações de tais gestores econômicos diretamente no plano político colocou outras camadas nessa especulação possível. Como é de conhecimento geral, muitos sinais foram emitidos com a presença do baronato das chamadas bigtechs na posse para o segundo mandato de Trump, com a inserção direta de Musk na equipe do governo e com a influência de Thiel nos bastidores. Isso sem mencionar as afinidades entre o programa de Trump e os endinheirados que trabalham em sua plataforma de governo, a exemplo daqueles que se encontram reunidos na Heritage Foundation e seu Project 2025.
Diante dessas movimentações, acusaram no debate público o estabelecimento de uma autêntica oligarquia. Biden chegou a empregar o termo “oligarquia dos ultra-ricos” em seu último pronunciamento. A The Economist recentemente reagiu a essa possibilidade. Seu argumento principal é que os EUA de Trump não se tornariam uma “tech oligarquia” uma vez que as empresas conduzidas por aquele baronato presente na posse não possuem um significativo peso na economia daquele país. É um argumento raso. Mas estamos de acordo com o essencial: a América de Trump não se tornará uma oligarquia porque já o é. A Corporate America sempre deu as cartas principais do jogo. Mudam os figurões, os gestores que compõem o baronato e suas alianças, mas a influência do grande capital é estrutural.
Mas existem de fato algumas novidades observáveis. Elas exigem maior esforço de análise. Aqui faremos apenas indicação sumária de pelo menos duas.
De fato, a presença desses gestores econômicos no governo é uma novidade. O próprio Trump já era expressão, por si mesmo, de um fenômeno que nos parece importante. Uma espécie de divisão das tarefas envolvidas na condução do processo de acumulação era uma marca mais constante. De um lado, os gestores econômicos tinham olhos para seus processos particulares na concorrência intercapitalista. Não que isso excluísse trustes, cartéis e outras alianças espúrias. De outro lado, os gestores políticos do capital, entre burocratas e políticos profissionais, tendiam a ocupar as posições no estado político e, de lá, procuravam enxergar a “floresta como um todo” e não suas árvores individuais. A articulação entre esses gestores não era necessariamente prejudicada pela divisão das tarefas. No final, a questão decisiva sempre foi a de garantir o adequado processo de acumulação em espiral positiva, impondo muitas vezes certas medidas contrariamente aos interesses dos capitais particulares que, por meio de variados expedientes, procuravam colocar o aparato estatal a seus serviços e contra os demais. Essa aliança, pois, não elimina tensionamentos. E a balança varia muito de tempos em tempos e em lugares diferentes.
Na Corporate America do mascate Trump essa divisão de tarefas é um alvo. E isso não é tão somente pela presença de Musk e influência de Thiel, além daquilo que simplesmente não temos notícia. Trump está também munido da diretriz de atacar o chamado “estado profundo”. O plano, já em andamento, parece ser o de eliminar posições ocupadas por técnicos e recrutar agentes “ideologicamente” afinados com a programática trumpista. O aparelho do judiciário também não está imune.
O que parece ser um elemento de novidade é a tomada do poder político por gestores econômicos e seus consortes, dispensando a mediação política e burocrática. É como se, pelo menos num grau ainda desconhecido, os gestores econômicos e políticos fossem encarnados pelas mesmas figuras lideradas pelas personificações do capital já citadas. Uma rápida passagem dos nomes da equipe do governo, incluindo as indicações para embaixadas, reforça essa impressão. E, talvez, o conflito de interesses possa não se mostrar o maior dos problemas. E isso nos leva para a segunda novidade.
Existe um aparente paradoxo: o ideário das principais figuras é salpicado por elementos reacionários ao passo que representariam pontos tecnologicamente mais avançado do sistema e, por isso, voltados para frente. Musk é um dos piores exemplares. Conta-se que sua decisão de investimento em inteligência artificial se deu por temor de que, num futuro não muito distante, ela fosse uma ameaça ao adquirir consciência e o perseguisse até marte. A recente saudação abertamente nazista só seria, talvez, comparável a Henry Ford e seu conhecido antissemitismo que escorria das páginas de seu livro dos anos de 1920, The international Jew. A tendência é que supere Ford com sua declaração de apoio ao partido reconhecidamente neonazista Alternative für Deutschland – AfD nas eleições que se aproximam na Alemanha.
Zuckerberg é figura conhecida em sua pretensão de habitar um bunker na Nova Zelândia, com grandes portas antiexplosão e outras extravagâncias. E ele é apenas um entre os endinheirados do setor de tecnologia a apostar em uma previsível hecatombe social nos próximos anos e a procurar refúgio embaixo da terra. O Vale do Silício está povoado de tipos parecidos. Mais recentemente, em participação num podcast duvidoso, o dono da Meta disse que “boa parte do mundo corporativo é bem castrado culturalmente (…). Uma coisa é criar um ambiente que seja acolhedor para todos, mas outra é sugerir que a masculinidade é inerentemente ruim. Acho que abraçar a agressão tem méritos que são realmente positivos”. A seta é notoriamente anticivilizacional, regressiva.
Um comparativo aqui é inevitável. Houve momento na história em que uma burguesia reacionária ajudou a dar vazão às tendências mais hediondas de suas sociedades. De cepa europeia, nutriu nas primeiras três décadas do século XX certa ansiedade quanto a uma suposta decadência cultural do ocidente. Havia elementos de messianismo e aspirações românticas. Entre as personificações no momento presente parece ter lugar uma ansiedade abertamente apocalíptica. Para essas figuras tudo indica ser mais fácil a destruição da humanidade do que a elaboração de alternativas. Conduzem seus negócios a partir desse tipo de ideário.
Somos obrigados então a perguntar: estaríamos testemunhando uma renovação da burguesia reacionária e um modo peculiar de sua articulação no poder político na ainda maior economia capitalista?
Elcemir Paço Cunha – Departamento de Ciências Administrativas. Faculdade de Administração e Ciências Contábeis – FACC/UFJF. Programa de Pós-Graduação em Administração – PPGAdm/FACC. Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF
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