Por um observatório da grande empresa, por Elcemir Paço Cunha

O que elas fazem, ou deixam de fazer, têm o potencial de afetar a vida econômica do país. Isso inclui o comportamento político dos gestores.

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Comentário: Por um observatório da grande empresa

por Elcemir Paço Cunha

Recentemente o blog traduziu o artigo “Gestão em questão” que trouxe o cenário da condução dos negócios privados e das atividades públicas na Inglaterra. No comentário da tradução, está ventilada a possibilidade de aproximações com o que ocorre no Brasil.

Chama a atenção no comentário a sugestão de que o debate público, no país, a respeito da gestão dos negócios privados alimenta-se basicamente de “desastres, escândalos e suspeitas de fraudes, como mais recentemente protagonizaram Vale, JBS, Lojas Americanas, Petrobrás entre outras”. Uma vez que esses episódios são enterrados pelo tempo, o modo como as grandes empresas são conduzidas pode passar novamente à penumbra. Mesmo o jornalismo econômico é muito superficial nessa matéria — fixando-se muito ao problema do desempenho e suas implicações ao mercado de capitais —, mesmo porque possui alguma dependência dos seus anunciantes formados especialmente por essas empresas. Há ocasiões de exceção, obviamente.

Esse monitoramento da condução das grandes empresas não é algo menor. Aquilo que elas fazem, ou deixam de fazer, guarda o potencial de afetar a vida econômica do país. Isso inclui o comportamento político de seus gestores. Por isso não parece contraditório afirmar que a gestão privada seja assunto público. Isso se aplica a todos os tipos de grandes empresas e setores inteiros.

O caso da Braskem em Alagoas é muito emblemático. Ele demonstra com clareza solar o caráter destrutivo que as forças produtivas podem assumir sob o imperativo de um modo de organização econômica que canaliza as energias às práticas espoliativas. E isso independentemente das palavras bonitas que embelezam o chamado ESG (sigla inglesa para Ambiente, Social e Governança) e da composição acionária que exerce controle sobre o direcionamento dos negócios (no caso, a Petrobrás é acionista com 47% do capital votante).

Obviamente que aquelas grandes empresas que desempenham suas funções por meio de concessões ocupam lugar de destaque sob a noção geral de a gestão privada ser assunto público. O caso recente da Enel em São Paulo é apenas mais um desses episódios pelo fato de que as consequências na dificuldade de reação rápida, deixando milhares de paulistanos em condições precárias de fornecimento de energia, não é muito mais do que um resultado de decisões administrativas sob escopo contratual discutível. O caminho do baixo custo operacional e ampliação da distribuição de dividendos, às custas do enxugamento de quadros e atenção míope sobre a manutenção, não parece construir as melhores condições para enfrentar adversidades.

Outro caso nesse escopo das concessões e que confirma aquela noção geral é o dos planos de saúde. Não é assunto novo, como todos sabem. Muitos problemas são conhecidos, entre os quais estão incluídas as limitações do sistema regulatório (no geral, as agências reguladoras no país estão capturadas pelas grandes empresas). Recentemente, no entanto, a deputada estadual Andrea Werner trouxe elementos que merecem atenção.

Diante dos inúmeros cancelamentos unilaterais realizados por seguradoras, segundo a deputada, as empresas que operam os planos de saúde alegaram funcionar em “prejuízo operacional”, supostamente gastando mais do que arrecadam com alguns contratos. Após inquirir essas empresas, Werner sugeriu que certa “insustentabilidade do modelo de negócio” deve-se sobretudo a uma “série de erros grosseiros de gestão”. Se é que são de fato “erros”, diga-se. Sob certo prisma, tais erros parecem estrategicamente elaborados, conforme seu relato:

[…] a gente perguntou para as associações como pode ter um resultado operacional tão ruim ao mesmo tempo em que a gente vê contratos milionários de publicidade, de patrocínio? E de naming rights, que é quando uma empresa paga para que um teatro, um estádio ou uma casa de show tenha o nome da companhia por um tempo. […]. A equipe do Gabinete da Inclusão olhou os resultados financeiros de várias das seguradoras e encontramos orçamentos nas centenas de milhões em marketing. […] Aí você pode dizer [que] marketing é importante para o negócio crescer e por isso fizemos questão de perguntar como eles avaliam o retorno desse investimento em marketing. A gente não teve resposta.

Por que essa ideia de prejuízo operacional nos parece propositalmente incompleta? Bom, o modelo das seguradoras é parecido com o previdenciário. As pessoas pagam no decorrer da vida sem utilizar tanto para poder usar no futuro. [E] por que dois anos de lucro recorde não foram capazes de segurar o impacto de dois anos supostamente mais difíceis? Uma reportagem do Valor Invest mostrou que as trinta cooperativas da Unimed tiveram perdas bilionárias em investimentos inadequados. Em resposta ao nosso questionamento, nos disseram que isso não trará impacto aos usuários, mas em seguida usam os prejuízos operacionais para justificar uma revisão do rol de cobertura e reajustes de planos coletivos em mais de 30%.

Os planos de saúde fizeram nos últimos quatro anos muitas aquisições. São movimentos que a gente chama de verticalização. Uma única empresa é dona da clínica, do laboratório, do hospital e do plano de saúde. Entre 2019 e 2022 foram 314 fusões e aquisições de acordo com a KPMG. Se uma empresa é dona da seguradora, da clínica, do laboratório e do hospital, quando ela paga pelas consultas, exames, tratamentos, ela não estaria pagando para ela mesma? […] Ou seja, aquilo que eles chamam de prejuízo operacional, que cada uma daquelas despesas que eles têm, traz consigo sua própria margem de lucro.

Quem está controlando a forma como essas empresas são geridas? Bom, a gestão deve estar mais do que perfeita, não é? Já que o CEO mais bem pago do Brasil está no setor de saúde suplementar. Um único executivo da HapVida recebeu 82 milhões de reais no último ano. […]

Uma questão essencial nesse caso, e até óbvia, decorre da forma de mercadoria que a saúde humana assume nesse contexto. Esse fato óbvio deve eventualmente ser dito. Dele cresce uma árvore de contradições cujos frutos não caem distantes de seus galhos mais longos. Algo semelhante vale para as informações dos usuários das redes sociais comercializadas e manipuladas pelas chamadas Big Techs para finalidades diretamente ligadas à circulação das mercadorias e para o exercício de influência política, colocando à prova as capacidades políticas dos países em disciplinar essa forma do capital e sua lucrativa parceria com a vicejante rebeldia reacionária dos nossos tempos.

Parece haver lugar para modos de articulação entre academia, poderes da república e órgãos e organizações da assim chamada “sociedade civil” (incluindo o jornalismo econômico) com o fito de levantar dados e aglutinar aqueles hoje dispersos, monitorar e normatizar vários aspectos tangentes a tais empresas, suas estruturas, práticas, remunerações etc., gerando relatórios e boletins para alimentar o debate público. Um observatório multidisciplinar da grande empresa prestaria um grande serviço nessa direção. Há iniciativas muito interessantes, ainda que tenham atenção setorial, a exemplo do agronegócio.

O único risco real de um observatório da grande empresa é não ter olhos e aparelhos suficientes.

Elcemir Paço Cunha – Departamento de Ciências Administrativas. Faculdade de Administração e Ciências Contábeis – FACC/UFJF. Programa de Pós-Graduação em Administração – PPGAdm/FACC. Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF

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