
Governo recomprou R$ 627 bilhões de sua dívida, mas ela continuou crescendo
por Lauro Veiga Filho
Imagine por um instante que você tenha resgatado alguma coisa próxima a 10% de sua dívida, entregando o dinheiro nas mãos dos credores e apostando que seu saldo devedor fosse ser finalmente abatido na mesma proporção. Para sua surpresa, no entanto, ao final do “acerto”, a dívida ficou ainda maior. Mal comparando, foi mais ou menos o que ocorreu com a dívida do governo geral no Brasil nos últimos dois anos. O saldo devedor saiu de R$ 6,616 trilhões ao final de 2020, em valores nominais e aproximados, para R$ 7,225 trilhões em dezembro do ano passado, numa variação de 9,21%, ainda que, ao longo do período, o governo tenha recomprado R$ 626,741 bilhões em títulos que se encontravam em circulação no mercado financeiro.
O conceito de governo geral inclui a União, o Banco Central (BC), governos estaduais e municipais, além de suas estatais, envolvendo todo o setor público brasileiro. As operações de emissões e resgate de títulos, no entanto, concentram-se no governo federal, já que Estados e municípios não podem emitir e vender títulos no mercado financeiro para financiar despesas, investimentos e outros compromissos. Quando o total resgatado em determinado período é maior do que o volume de títulos emitidos (ou vendidos), o resultado deveria ser uma redução equivalente no estoque de papéis em circulação, ou seja, teoricamente, o governo deveria observar uma queda no seu endividamento.
Mas há outros fatores que podem impactar o saldo daquela dívida, como o resultado primário dos governos (receitas menos despesas, excluídos os gastos com juros) e encargos financeiros incidentes sobre aquele saldo (que correspondem a juros não cobertos pelo saldo primário e amortizações). Historicamente, o superávit primário sempre foi insuficiente para fazer frente a toda a despesa com juros, até porque os juros brasileiros estão sempre ou quase sempre entre os mais altos do planeta. Por óbvio, quando o governo registra déficit no seu resultado primário, o rombo acaba sendo coberto por mais dívidas. De toda forma, o peso da política de juros extorsivos tem sido decisivo para explicar o crescimento da dívida pública, gerando despesas que transitam fora do orçamento público e não estão sujeitas a qualquer tipo de controle ou governança, para recorrer a um termo da moda, escapando do escrutínio da sociedade.
Estouro dos juros
Numa visão de mais curto prazo, considerando dados de 2021, o valor dos títulos recomprados pelo governo superou o valor total dos papéis vendidos ao mercado por uma diferença de R$ 182,625 bilhões, algo como 2,1% do Produto Interno Bruto (PIB). No ano seguinte, o governo resgatou nada menos do que R$ 444,116 bilhões, algo como 4,5% do PIB, num salto de 143,18% em relação a 2021. Apesar disso, no acumulado dos últimos dois anos, o estoque da dívida registrou acréscimo de R$ 609,127 bilhões. Como isso foi possível se o governo recomprou R$ 626,741 bilhões em títulos que estavam nas mãos dos donos da dívida pública? A grande questão, negligenciada no debate econômico pelas correntes mais conservadoras e pelos “novíssimos liberais”, é que os governos tiveram que pagar R$ 1,234 trilhão de juros, em torno de 12,6% do PIB. Não há orçamento que suporte ou consiga “acomodar” despesas dessa magnitude. Para se ter uma ideia, ao longo do ano passado, o gasto primário do governo central havia alcançado 18,32% do PIB.
Num prazo mais longo, o estrago produzido pelos juros mostra-se continuado e persistente, impedindo o País de construir alternativas para a retomada consistente do seu crescimento e contribuindo ainda para o processo de desindustrialização em curso, com perda de relevância global (e também internamente) da indústria brasileira. Na prática, a política de juros tem operado na contramão dos interesses reais do País, servindo única e exclusivamente aos interesses de uma elite rentista e de altíssima renda. Vêm desse contingente as críticas a qualquer afirmação ou análise que contrarie o monetarismo rasteiro praticado pelo BC e, por consequência, o ataque orquestrado contra o governo e sua equipe econômica.
Nos 16 anos entre o final de 2006 e 2022, a dívida bruta do governo geral foi multiplicada em quase 5,4 vezes, saltando de R$ 1,337 trilhão para R$ 7,225 trilhões a valores nominais. Como proporção do PIB, aquela dívida avançou de 55,48% para 73,45%. Mas esse cenário foi mesmo causado por desarranjos nas contas primárias – que, como se sabe, não contemplam as despesas com juros? Uma resposta afirmativa aqui poderá induzir o analista a erro, além de camuflar a realidade.
A falácia da escalada das despesas
Uma escalada das despesas teria obrigado o governo a emitir mais e mais títulos, para enfrentar o volume crescente de obrigações. Não foi o que se observou no período, lembrando que os dados aqui são oficiais, publicados pelo Banco Central. Entre emissões e resgates, o governo geral terminou retirando do mercado algo como R$ 71,158 bilhões em títulos públicos. Os juros consumiram R$ 5,673 trilhões em valores arredondados, correspondendo a 96,34% do crescimento registrado pelo saldo da dívida nos últimos 16 anos. Se comparado ao PIB estimado pelo BC para 2022, na faixa de R$ 9,836 trilhões, os juros somados daquele período representariam algo como 57,67% de todas as riquezas geradas pela economia naquele ano. A comparação talvez não seja apropriada quando se considera outro tipo de conta. Na soma dos gastos com juros como proporção do PIB, ano a ano, desde 2007, chega-se a uma participação de 97,2% do produto, equivalente a uma média anual próxima de 6,1% do PIB.
A hipótese dos efeitos de uma suposta escalada descontrolada de gastos igualmente não parece ser corroborada pelos dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). O saldo da dívida pública mobiliária federal interna de fato experimentou alta de 421,4% (sem descontar a inflação) entre 2006 e 2022, com o estoque saltando de R$ 1,094 trilhão para R$ 5,699 trilhões. Como proporção do PIB, a dívida interna avançou de 45,38% para 57,94%, ou seja, 12,56 pontos de percentagem a mais. Para comparação, as despesas totais do governo central, também como proporção do PIB, foram elevadas de 16,76% para 18,32%, o que representou uma variação de apenas 1,56 pontos percentuais frente ao volume total de riquezas. No limite, a “escalada” (inexistente) das despesas seria responsável por apenas 12,4% do incremento acumulado pelo endividamento do governo central no período.
Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.
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