A PEC 5 e o Ministério Público que persegue pessoas que furtam comida estragada

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Os crimes famélicos mostram que o debate sobre maior "controle e transparência" nas ações do MP não se esgotou com a rejeição à PEC 5

Sede do Conselho Nacional do Ministério Público
Foto: Divulgação/CNMP

Jornal GGN – Repercutiu nesta semana, nas redes sociais e na grande mídia, a declaração de um defensor público do Rio Grande do Sul que atua no processo de dois homens acusados de furtar comida quase estragada de um supermercado. Eles foram absolvidos, mas o Ministério Público do Estado recorreu da decisão.

“Tristes tempos em que lixo (alimento vencido) tem valor econômico. Nesse contexto, se a mera leitura da ocorrência policial não for suficiente para o improvimento do recurso, nada mais importa dizer”, escreveu o defensor público Marco Antonio Kauffman.

Quando o País que saiu do mapa da fome assiste a população mais vulnerável recorrer a ossos e pelancas para sobreviver à miséria, os crimes famélicos – furto de alimentos de baixo valor – chamam ainda mais atenção da opinião pública sensibilizada.

Um caso como este que ocorreu em Uruguaiana abre um debate mais aprofundado sobre o grau do punitivismo de setores do Ministério Público.

A grande pergunta que se faz é: até quando o Conselho Nacional do Ministério Público, a instância que deveriam fortalecer a instituição, será leniente com excessos, equívocos e abusos?

Os crimes famélicos mostram que o debate sobre maior “controle e transparência” nas ações do MP não se esgotou com a recente rejeição à PEC 5.

A LOTERIA CHAMADA MINISTÉRIO PÚBLICO

Autor do livro “Virtude e Limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil”, o cientista político Fábio Kerche, favorável à PEC 5, tem uma expressão certeira para resumir a relação entre cidadão comum e MP: loteria.

Selecionados exclusivamente por concurso público, procuradores e promotores agem segundo seus próprios valores e visão de mundo, e o cidadão “fica na mão do acaso. A sociedade não tem instrumento nenhum para cobrar uma atuação [mais harmônica] do Ministério Público.”

“Por isso o CNMP, se desempenhasse um papel efetivo, poderia ser instrumento de incentivo para que os promotores atuassem de jeito x ou y, aumentando a previsibilidade e transformando o trabalho dos três MPs [Federal, Militar e do Trabalho] em algo mais similar”, disse Kerche em entrevista ao jornalista Paulo Moreira Leite.

PEC 5: UMA REFORMA OBSTRUÍDA PELO LAVAJATISMO

É aqui que entra a discussão sobre a chamada “PEC da reforma do MP” – ou “PEC da vingança” para os lavajatistas.

A proposta, de autoria do deputado Paulo Teixeira, tenta introjetar mecanismos de “controle e transparência” a partir de mudanças na composição do CNMP.

O texto original tenta estabelecer “freios e contrapesos” sobre uma instituição que não nasceu parte dos três Poderes da República – e talvez por isso mesmo, esteja completamente entregue ao corporativismo.

Na semana passada, o substitutivo ao texto original da PEC 5, apresentado pelo deputado Paulo Magalhães, acabou rejeitado por apenas 11 votos na Câmara.

O racha na esquerda ficou escancarado, com PT e PCdoB apoiando a modesta reforma, enquanto PSOL, PSB e PDT sucumbiram ao discurso de que a PEC seria uma “interferência” na autonomia do Ministério Público.

Como disse o jurista Pedro Serrano ao GGN na tarde desta sexta (29), “não se confunde autonomia com soberania”.

O QUE DIZ O TEXTO DA PEC 5

São três os pontos principais, segundo o autor Paulo Teixeira resumiu em entrevista à TVGGN:

1- Um Código de Ética do MP deve ser aprovado pelo CNMP em até 180 dias após a aprovação da PEC, ou o Congresso vai legislar sobre a matéria;

2 – O corregedor do CNMP passará a ser escolhido pelo Congresso a partir de uma lista quíntupla entregue pelo próprio Ministério Público;

3 – Atos praticados com fraude ou dolo por membros do MP serão declarados nulos.

OS PONTOS MAIS POLÊMICOS

1 – Aumento da influência do Congresso

A principal diferença entre o texto original da PEC 5 e o substitutivo, é que Paulo Magalhães tentou aumentar o número de cadeiras de 14 para 17, para que o Congresso pudesse indicar mais nomes para o CNMP.

A proposta original prevê 14 cadeiras, mas suprimindo a indicação de um membro pelo Ministério Público do Distrito Federal e Regiões.

Na conta final, o MP indicaria a maior parte do conselho, enquanto o Congresso passaria a indicar quatro membros ao invés de dois, como faz atualmente.

2 – Escolha do corregedor

O ponto considerado mais polêmico diz respeito à escolha do corregedor.

A mudança na escolha do corregedor, que passaria a ser por lista quíntupla, visa “eliminar certa sensação de corporativismo e de impunidade em relação aos membros do Ministério Público”.

A oposição à PEC 5 sustentou que o MP é um órgão independente em relação aos demais Poderes da República e, por isso, não deve responder ou sofrer interferências do Legislativo.

À TVGGN, Teixeira lembrou que em quase 17 anos de existência, o MP acumulou mais de 6 mil reclamações sobre condutas de seus membros e apenas 5% delas foram processadas. Desse total, uma minoria de cerca de 21 casos resultou em demissão.

O CNMP não puniu rigorosamente nenhuma das transgressões graves dos procuradores da Lava Jato em Curitiba. Nem mesmo a punição ensaiada ao procurador Diogo Castor de Mattos pode ser tomada como exemplar, já que o conselho apenas recomendou a abertura de um processo de demissão – que pode não ocorrer, se o MP não quiser levar adiante.

Leia mais: O CNMP simulou uma punição ao procurador Castor?

3 – Afronta à autonomia do MP

Da questão das cadeiras e da escolha do corregedor, desdobra-se outra crítica à PEC 5, sobre a afronta à independência funcional e autonomia do MP.

Para Teixeira, o argumento não se sustenta porque a democracia brasileira deve ser regida sob a “lógica do sistema de freios e contrapesos” e o Ministério Público não pode querer se colocar fora do alcance desse sistema moderador.

Ao programa “Direito do Amanhã”, uma parceria entre a TVGGN e a FENED, Teixeira disse, na quinta (28), que o substitutivo foi rejeitado, mas o texto original será votado pelo plenário da Casa e, em caso de nova derrota, ele reapresentará a proposta quantas vezes forem necessárias. “Água mole, pedra dura.”

Em entrevista à TVGGN, o ex-procurador-geral da República criticou duramente o substitutivo do deputado Magalhães, já rejeitado pela Câmara, mas admitiu que o texto original, apresentado em março de 2021 por Paulo Teixeira, é “moderado”.

O site Conjur fez um resumo comparativo sobre como é a atual composição do CNMP e como ficaria a partir da PEC-5.

Site Conjur, especializado em notícias do mundo jurídico, faz um paralelo entre como é e como ficaria a composição do CNMP a partir da aprovação da PEC 5/21. Foto: Reprodução/Conjur

O defensor do RS Marco Kaufmann e o procurador José Godoy falarão ao programa “TVGGN 20 Horas” na noite nesta sexta (29). Assista pelo link abaixo.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

2 Comentários

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  1. não concordo com esta PEC e nem com a defesa que Paulo Teixeira faz dela. simplesmente, ela não ataca o problema e cria interferências indevidas no órgão.

    cada procurador age individualmente e a PEC não irá interferir em nada disto. não dá para mudar o caráter de cada procurador, ou seja, se o problema é o punitivista do órgão, ele irá continuar.

    quando se fala na PEC, muitos petistas só pensam na Lava-Jato. por mais que a operação tenha tido os seus excessos, ela não significa que todos os casos de corrupção investigados pelo órgão sigam o mesmo roteiro. a Lava-Jato só teve o desenrolar que teve por causa do apoio da população – este, alimentado diariamente pela mídia. ou seja, se uma situação daquela se configurar novamente, outra Lava-Jato vai acontecer. nenhum órgão de controle, 2 instância ou STF foram contra a opinião popular.

    no fim, ao permitir que o CNMP interfira nas decisões de
    um procurador, deixará casos sensíveis sob influência política, casos que não tem visibilidade – casos que envolvem indígenas, madeireiros, grilheiros, contra coronéis deste Brasil.

    o PT já foi melhor do que isto – ao enviar uma proposta destas. decepcionante.

  2. E pensar que, em fins de 1841, ou 1842, o jovem Marx, através da Gazeta Renana, envolveu-se numa polêmica sobre uma tal “Lei Punitiva do Roubo de Lenha”, pela qual alguns pobres foram condenados pelo “roubo” de lenha seca, caída ao chão, em propriedades privadas de terceiros.
    Nesse caso, tratava-se de tentar sobreviver ao inverno rigoroso. Não importa, a propriedade privada é sagrada; seja lenha seca, ou cocô seco, se está em propriedade privada, e mesmo que não sirva para nada, não é seu – morra de frio, mas não roube nem minhas raspas, nem meu resto.
    E eis que, inacreditavelmente, 170 anos depois, nos tristes trópicos, a preocupação do pobre não é morrer de frio, mas de fome; mas o Poder Judiciário, irascível, impérvio, continua o mesmo. É lixo, está estragado, mas tem (tinha) dono. E não é seu, pobre nojento, fedido, e tire a mão do meu lixo!
    É evidente que, como na Ilha das Flores, os porcos precisam comer, afinal, são também criaturas de Deus. E como tudo é uma questão de ser capaz de vender, seja o que for, seja do jeito que for, esses pobres detestáveis estão causando prejuízo, conspurcando o funcionamento perfeito do nosso capitalismo. Portanto, que sigam o exemplo mais que oportuno daqueles outros miseráveis mais conscienciosos, e esperem sair o caminhão do lixo, para em sua caçamba mergulhar e escolher o que mais lhes aprouver.
    Sejamos todos cidadãos, bons cidadãos. Só tomem cuidado para que a máquina compactadora de certos caminhões de lixo não seja acionada inadvertidamente, ou por um solavanco, e vocês sejam transformados em cubinhos de ossos e pelancas, também.

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