Como viver em um país de humanos transformados em gado, por Eduardo Ramos

Para Eduardo Ramos, campanha midiática com apoio da elite transformou humanos em gado tangido por mantras semióticos criados para fim político

Foto: © Arquivo/Agência Brasil/ASCOM ADEPARÁ

Como viver em um país de humanos transformados em gado

por Eduardo Ramos

Perdi a conta de quantas vezes abordei essa questão. Interessante como a mente humana é capaz de se abstrair do que não a atinge como realidade vivida. Faz sentido. Um canadense ou um sueco provavelmente não refletirão quase nada sobre “viver numa nação sem democracia” – porque esses signos não farão parte de sua realidade tempo/espaço de viver.

Pensam na democracia no sentido de “como aprimorá-la”, jamais compreenderiam nossa angústia diante do flagelo que é tê-la – democracia – como uma semente frágil e constantemente pisoteada por oligarquias perversas, grande mídia, e até os que seriam os mais responsáveis por mantê-la firme, como Judiciário, MPF, Congresso Nacional, e a elite do país.

Ora, todos sabemos que são os que mais a boicotam do modo mais cínico e perverso que a mente humana pode conceber! Isso é o Brasil, há séculos.

Do mesmo modo, mambembe ou não, éramos acostumados a uma espécie de “limite mínimo de democracia”, desde a chamada redemocratização do país e o chão mais ou menos sólido que nos dava a Constituição de 1988. A mídia era venal mas tinha limites. Idem o Judiciário, os militares, os empresários, havia um certo desejo de deixar vicejar essa semente, respeitá-la.

Lembro com clareza absoluta do clima da eleição vencida por Lula em 2002 (meu Deus!, e pensar que foi só há vinte anos!!!…), do clima absolutamente normal no país, as brincadeiras sobre o último gesto desesperado de nossa direita, com o filme medonho de Regina Duarte falando, o rosto aterrorizado, sobre o medo que tinha de Lula e do PT.

Não tínhamos ideia, nem nos nossos piores pesadelos, que aquela bombinha semiótica risível era apenas o começo de uma onda que, anos depois, tomaria conta do mundo e do Brasil, a extrema direita assumindo o controle dos meios de comunicação e literalmente distorcendo a verdade, tornando-a uma neblina, um fantasma, enquanto o império das Fake News criava um gado humano fanático, preconceituoso e selvagem, o que começamos a ver no Brasil a partir de 2005, no episódio do mensalão.

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Mas o fato é que, em 2002, brincávamos uns com os outros, não havia ódios, nojos, repulsas, não num nível de histerias que gerasse desavenças graves ou agressividades diversas, muito menos cisões na sociedade. Lembro das brincadeiras que fazíamos com os amigos que iam votar em Serra, totalmente inocentes, como: “olha, carecas não são confiáveis, vota no barbudo” – e o amigo ria junto, falava qualquer coisa contra o Lula, cada um defendendo seu modo de ver o mundo, seus medos, seus sonhos, a beligerância era PRÓXIMA DE ZERO!

Havia distorções da mídia, manipulações, que hoje parecem um jardim da infância se comparadas ao “pós-doc” que Veja, Globo, Steve Bannon, Cambridge Analytica nos trouxeram de 2005 em diante, de bombas atômicas semióticas, mentiras propositais escolhidas a dedo para se tornarem “a verdade”, e toda a sorte de manipulações tão grotescas quanto eficientes, capazes de fazerem um país inteiro odiar determinado líder e idolatrar um outro, sentir nojo da ideologia “X” e celebrar a “Y”, uma coisa diabólica, sem fronteiras, sem limites, com bilionários como os irmãos Koch injetando milhões de dólares para financiarem MBLs e assemelhados no Brasil e outros países, de modo orquestrado, calculado, planejado – literalmente, táticas de guerra para controlar o destino de nações. O que pode ser mais desesperador e hediondo do que viver num mundo assim?

Do ambiente saudável, bem humorado, apesar da disputa ferrenha, em 2002, passamos por mensalão em 2005, julgamento do mensalão em 2012, “o gigante acordou” em 2012/2013, “os vinte centavos” em 2013/2014, e a partir de 2014, a Lava Jato.

Não mais tumores jogados no tecido social brasileiro, mas um câncer gigantesco com direito a metástases espalhadas em todo o corpo social, um juiz psicopata, cínico, malicioso e com sede de grandeza e poder, manipulando doze procuradores próximos da imbecilidade mais tacanha, eles mesmos banhados em preconceitos, ódios e fanatismos, cegos guiados pelo juiz psicopata, toscos, achando-se os “paladinos do novo Brasil”, nem perceberam em seu narcisismo festivo que destruíam o país jogando-o no pântano da falta de direitos, do aviltamento total da política enquanto o meio de debates ideológicos e disputa pelo poder.

Não se perceberam marionetes, aqueles homens e mulheres comuns, rasos, como rasa é a maior parte de nossa sociedade, de repente se olhando no espelho – coitados! – e vendo-se gigantes, aplaudidos em festinhas e rodas sociais, celebridades, não mais comuns… – Saberão algum dia do esgoto em que se meteram? Saberão algum dia do tamanho e do mau cheiro pútrido da lata de lixo da História em que se atiraram em sua estupidez sem limite?

O caso é que, se em 2005 fui despertado para esse tema tão essencial – a sociedade tornada um gado humano – por conta dos paroxismos criados em torno do mensalão e o ensaio do impeachment de Lula, foi em 2012/2013, com a soma de dois processos sociais perversos, que comecei a refletir com ansiedade e angústia sobre os fatores que permitiam essa tragédia, o fazer de uma nação um imenso rebanho!

A campanha “o gigante acordou” acoplada ao patético “não é pelos vinte centavos”, quando a mídia colou no PT toda a revolta nascida dessas manifestações, e ali começou todo o nojo, fanatismo e ódio contra Lula, Dilma e PT, ver aquele processo, ver o poder da Globo sobre os ministros do STF nos julgamentos do mensalão, ver parte imensa da sociedade sair do tédio para uma agressividade raivosa como eu nunca tinha testemunhado na vida.

Essas coisas me deram a noção do quanto podia ser perigoso, bombástico, o processo de transformar humanos em gado tangido por mantras semióticos criados propositalmente para um fim político – em 2012/2013 foram plantadas na sociedade brasileira, como “chips nos cérebros”, todas as sementes do que estava por vir com a Lava Jato e seu filho mais insano, o bolsonarismo.

Mas todo o horror, não se enganem, o mesmo processo social, frutos de uma mesma raiz, uma mesma árvore: a manipulação da sociedade através da dominação total dos meios de comunicação, com o ocultamento ou distorção da verdade e a criação de um “mundo-matrix”, onde as informações, “inoculadas na veia” das pessoas, criou uma espécie de zumbis, gente “morta”, no sentido de não mais terem acesso à verdade, à realidade, pobres escravos mentais daqueles que os viciam e trazem sob o cabresto, tangendo-os para onde bem quiserem…

Esse não é um processo estático, ou mesmo de resultados idênticos, atinge as pessoas de modo diferente e com limites igualmente diversos. Uma pessoa que celebrou a Lava Jato teve em Moro um herói, pode ter um limite ético ou signos intelectuais que a impeçam de ver Bolsonaro como “mito”, ao contrário, muitas delas, APESAR DA REPULSA QUE SEGUEM SENTINDO POR LULA, nele votaram e votarão, porque a parte de seus cérebros capaz de reconhecer o horror absoluto, o que é bestial, demente, o mal absoluto, por assim dizer, não chegou a ser atingida.

Outros, não têm chão algum, limite algum, da Lava Jato saltaram no barco do inferno bolsonarista ainda mais cegos, selvagens, imbecilizados em um nível quase inacreditável!

Há gados diversos nesse processo social perverso que vivemos nas últimas décadas, uns se deixam conduzir a determinados pastos, “apenas enlameados e sujos”, outros, perdem a noção até mesmo de sua humanidade, a civilidade mais básica, se mergulham em esgotos pútridos como se fossem piscinas naturais…

Testemunhar tamanho horror social é um evento desesperador como poucos, é como viver na época da escravidão tendo a consciência da covardia imunda desse evento, é como viver na Alemanha de Hitler sendo lúcido, é como estar no Mississippi nos anos 60 odiando o racismo, a lucidez, às vezes, pode fragmentar nossas mentes, diante da malignidade absoluta do nosso tempo/espaço de viver.

Como explicar milhões de pessoas celebrando Moro como herói? – Homens tornados num gado humano!

Como explicar milhões de pessoas concordando com a ideia, achando-a crível, justa, de um homem ser condenado POR UM TRIPLEX QUE NUNCA LHE PERTENCEU? Como crer e festejar tal excrescência, tal incoerência, tal estupidez, absurdamente risível? – Homens tornados num gado humano!

Como explicar o ódio à Dilma, honesta, digna, séria, cheia de equívocos políticos econômicos, mas uma pessoa essencialmente “fácil de se respeitar” por suas virtudes? Como tirá-la do poder para deixar um Temer em seu lugar, como?!?

Homens tornados num gado humano!

E, por fim, a demência das demências, o fanatismo dos fanatismos:

Como considerar Bolsonaro um cristão? Como não enxergar os crimes de sua família? Como não enxergar o genocídio causado por ele na pandemia? Como não enxergar o desmatamento descontrolado? Como não enxergar o país mais violento do que nunca? Como não enxergar o desmonte da Educação? Como não enxergar a corrupção despudorada do orçamento secreto?

Como?????

Homens tornados num gado humano!

Que homens e mulheres preparados para esse objetivo escrevam teses, livros, descubram os fatores dessa tragédia, desse evento, desse processo social que nos destrói enquanto nação, que nos impede, nos bloqueia em relação à civilidade mais básica, nos impede, inacreditavelmente, de sermos humanos, apenas isso, humanos… Somos esse país miserável em que, contingentes imensos de gente são tornados uma espécie mórbida de gado humano.

É desesperador!

(eduardo ramos)

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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