
Milei representa a hipótese de um novo ciclo político na Argentina
por Maíra Vasconcelos
Após um ano da presidência de Javier Milei, primeiro governo de extrema-direita da Argentina, pós-redemocratização, os balanços de sua gestão constatam um êxito político que muitos não haviam previsto ou não esperavam. Muito pelo contrário. Tanto no que diz respeito à manutenção dos índices de aprovação e popularidade (56%), como também por sua capacidade de articulação política para formação de um núcleo de poder que, efetivamente, ao menos neste primeiro ano, tem se consolidado. Aprovou leis importantes no Congresso, pese sua debilidade legislativa (38 deputados e 7 senadores). O governo Milei tem conseguido resultados para além do que se esperava de um personagem periférico, sem experiência política e trato com o poder, saído de programas televisivos, onde era um excêntrico comentarista de economia.
Na área social, a imagem é de terra arrasada. Após rebaixar a status de secretaria os ministérios do Trabalho, da Educação, da Cultura e do Desenvolvimento Social, reunidos no chamado ministério de Capital Humano, ação justificada em prol do maior ajuste fiscal da história do país. Além do fechamento definitivo do ministério de Mulheres, Gênero e Diversidades; com isso, vários programas de assistência social foram extintos, como o de prevenção à gravidez precoce em adolescentes.
Também não foi construído nenhum jardim de infância e espaço social para crianças, este ano. O que afeta diretamente a possibilidade de mulheres poderem ingressar ou se manter no mercado de trabalho. Para citar um número, entre 2019 e 2023, foram construídos 400 novos jardins e espaços para crianças, e foram reformados mais de 300.
Assim, o ajuste fiscal está amparado também em uma narrativa ideológica que justifica a instauração do que se costuma chamar de “batalha cultural”. Uma cruzada em favor de uma cultura anti-direitos humanos, anti-universidade pública, anti-questões de gêneros. Estima-se que as transferências do Estado às universidades nacionais caíram 32%, em 2024.
Ainda segundo a Associação Argentina de Orçamento (ASAP, sigla em espanhol), nenhuma das 61 universidades nacionais, que estão sob responsabilidade do ministério de Capital Humano, receberam fundos necessários para enfrentar o aumento da inflação.
Todas essas ações em favor do equilíbrio fiscal, para “colocar as contas em dia”, “ser a toupeira dentro do Estado, sou eu que destruo o Estado a partir do interior”, nas palavras do próprio presidente. Histriônico, caricaturesco, violento e agressivo com palavras e gestos, Milei continua reafirmando o discurso de campanha, como sendo aquele que veio para acabar com o kirchnerismo, com a corrupção e a inflação.
É fato que Milei conseguiu baixar a inflação, controlar o dólar, e logrou ambos resultados em apenas um ano de governo. Em outubro deste ano, a inflação foi de 2,4%, o índice mensal mais baixo, desde novembro de 2021, que foi de 2,5%.
Um novo ciclo político?
Em termos políticos, o governo Milei tem gerado comparações com ciclos políticos anteriores, como os de Carlos Menem (1990-1999) e Néstor Kirchner (2003-2007). No caso deste último, que deu início ao kirchnerismo, e teve sua continuidade com as presidências de Cristina Fernández de Kirchner (2008-2014). Com isso, algumas avaliações e análises de jornalistas locais apontam para a possibilidade de que com Javier Milei o país esteja entrando a um novo ciclo, um projeto político de ultradireita.
As avaliações locais do governo transitam entre, “está indo bem”, ou, “não está indo tão mal”, ao menos como se esperava. Alguns mais efusivos garantem que, segundo os resultados do primeiro ano de gestão, Milei irá vencer a luta pela estabilidade da economia e o peso voltará a ser uma moeda forte. A conclusão do editorial do jornal “Le Monde Diplomatique”, edição Cone Sul de dezembro, “O ano que vivemos em perigo”, concede esse lugar de “êxito” ao governo, mas mantém uma série de ressalvas e ponderações.
“Convém, entretanto, não se apressar. Discordamos daqueles que asseguram que Milei já ganhou a batalha: a nossa, é uma sociedade volúvel, perigosa como uma serpente, para quem nada nunca é definitivo. Mas, sim, é verdade que a fortuna lhe sorri. Seja pela sorte dos escolhidos, pela intuição própria dos grandes líderes ou pelo temor daquele que não tem nada a perder, o certo é que Milei chega a seu primeiro ano de governo com um êxito impensado”, conclui o editorial.
Programa de estabilização da economia e pacto social
Com sua carga crítica costumeira, o “Le Monde” deste mês, titulou, “Um ano de escuridão sob as forças do céu – o custo é uma tragédia social de proporções bíblicas”. O periódico se referiu também ao fato de que, em um ano de governo, Milei conseguiu controlar o dólar, baixar a inflação, aprovou leis sendo minoria no Congresso e conseguiu se consolidar no poder. Mas tudo isso terá um custo social que se traduz no aumento da desigualdade, com queda do emprego e da renda, fechamento de empresas nacionais e maior precarização do mercado de trabalho.
Como explica o editorial, “O ano que vivemos em perigo”, para que um programa de estabilização da economia possa funcionar, é preciso que esteja sustentado mediante um “pacto social”. Esse pacto é um intercâmbio onde ao menos parte da sociedade civil acredita que recebe algo em troca do sacrifício pelas políticas de ajuste fiscal do governo.
No caso da Argentina, o sacrifício de aguentar, por exemplo, o aumento dos serviços básicos de água, luz, gás e transporte público. Mas também um dado importante para um país como a Argentina, é que, este ano, será registrado o menor índice de consumo de carne do século, cita o editorial.
Mas, depois de um ano de governo “libertário”, Milei logrou poder político e uma aprovação popular que muitos não previam. Mesmo com os resultados da macroeconomia, o que ainda se pergunta em relação à situação econômica do país é se, primeiro, o país está saindo ou ainda permanece em recessão. E essa parece ser uma questão que depende do ponto de vista de cada especialista. Segundo, qual é a probabilidade, pois o país poderia ir por esse caminho, de que Milei consiga fazer com que o peso argentino volte a ser uma moeda forte.
Todas essas variantes e apostas de possível cenário econômico para um país que vinha amargando uma inflação de mais de 200% anual. No entanto, historicamente, a Argentina lida com planos econômicos que não se sustentaram. E, novamente, a questão é o custo que a sociedade argentina irá pagar por ter um plano de estabilização da economia, talvez exitoso.
Como ponto de consenso entre analistas, está a avaliação de que o peronismo não foi capaz de entender, captar e transformar em política as mudanças da sociedade argentina, principalmente, o descontentamento que surgiu na pós-pandemia. Assim, Milei surge como um fenômeno, uma novidade política radical e extrema, mas como um líder que soube ler e aproveitar essa insatisfação social.
Apesar das consequências sociais nefastas que a sociedade poderá enfrentar, ao menos até este momento, Milei consegue se consolidar como um líder político que, em parte, tem resolvido um dos principais problemas que o país vinha enfrentando, a inflação e as disparadas do dólar. No entanto, na Argentina, sempre paira o fantasma da crise de 2001, juntamente com o fantasma de um programa econômico frágil. Milei será quem devolverá o país a uma situação de estabilidade com um programa econômico sustentável? Restam, para isso, outros três anos de governo, ou um ciclo ainda mais longo no poder. E o aumento da desigualdade social batendo à porta.
Maíra Vasconcelos é jornalista e escritora, de Belo Horizonte, e mora em Buenos Aires. Escreve sobre política e economia, principalmente sobre a Argentina, no Jornal GGN, desde 2014. Cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina (Paraguai, Chile, Venezuela, Uruguai). Escreve crônicas para o GGN, desde 2014. Tem publicado um livro de poemas, “Um quarto que fala” (Urutau, 2018) e também a plaquete, “O livro dos outros – poemas dedicados à leitura” (Oficios Terrestres, 2021).
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