
A fragilidade do arcabouço
por João Furtado
A maior fragilidade do arcabouço é o tratamento comedido ao investimento público. O que esperávamos? Uma ênfase maior nos investimentos públicos. Uma conta segregada, à parte do orçamento regulado pelo arcabouço, para viabilizar um pacote robusto de investimentos públicos transformadores da nossa condição precária, resultado de tantos anos de investimento aquém do necessário até mesmo para manter as infraestruturas existentes.
Pagaremos caro por esse comedimento? Espero estar errado no “pessimismo”. Por quê pagaremos caro? Porque a modéstia do investimento público congela as deficiências e as insuficiências das estruturas de produção públicas e dos serviços de utilidade pública. Todas elas são custos privados e custos sociais. O caminhão que roda na via precária incorre em custos que reduzem a rentabilidade da empresa e do cliente e a capacidade de expandirem os seus negócios. O ônibus travado em vias congestionadas não tem receitas suficientes, seus usuários consomem-se em horas perdidas e oneram com o seu cansaço a vida pessoal, familiar e laboral. Os dois exemplos bastam como ilustração de uma longa série de situações que todos conhecemos.
Ora, sem as externalidades positivas geradas pelos investimentos públicos os próprios investimentos privados serão menos rentáveis ou inviáveis. Não é só o efeito-crescimento, pelo multiplicador. Nem também os efeitos de aceleração dos investimentos que se sucedem e alimentam uns aos outros. É mais simples, por enquanto. São os investimentos que promovem a redução de custos e a irrigação e a fertilização dos campos adjacentes.
Foi este, historicamente no Brasil, o papel dos investimentos públicos. Ou haveria Plano de Metas de JK sem a CSN de GV? Ou a petroquímica tripartite sem a Petrobras do Petróleo é Nosso? Gostemos ou não dos resultados, o rodoviarismo se alimentou dos investimentos públicos em asfalto e foi assim que a indústria de automóveis, caminhões e ônibus prosperou. Os investimentos públicos são precursores e viabilizam os privados. Foi sempre assim; e quando deixou de ser, prolongamos uma crise (anos 80) que poderia ter sido superada, mas dura até hoje.
O que vale para os investimentos privados vale com ajustes para o consumo pessoal e das famílias. Investimentos em cidades e mobilidade podem melhorar substancialmente a vida, pela moradia e pelos tempos desgastantes do transporte. Isso repercute na qualidade de vida. No tempo de usufruto da vida. Na convivência familiar. No tempo para o parque, o cinema, a cultura, o esporte, o lazer e o ócio. Sim, o ócio.
Mas os investimentos públicos para as pessoas e a vida social repercutem também na produtividade. Urbanização e mobilidade, com cidades densas e transportes mais eficientes e saudáveis, em corredores, com veículos coletivos eletrificados, descarbonizados, melhoram a vida coletiva e social, com efeitos nas empresas, na produtividade e nos seus custos. Saúde, disponibilidade para o trabalho, arejamento mental são predicados que precisam ser cuidados, construídos, não existem “por aí”.
Investimentos coordenados em capacitações e tecnologias nos serviços públicos aos cidadãos também permitem melhorar de modo substancial a eficiência desses serviços e portanto permitiriam a otimização dos gastos correntes. Assim como o bom projeto reduz os custos do investimento e eleva a rentabilidade do empreendimento, também os investimentos em capacitação e tecnologia dos serviços públicos melhoram o desempenho da prestação e reduzem as ineficiências e os custos.
Haveria uma fundamentação adicional indiscutível para este pacote de investimentos, se qualidade de vida e externalidades positivas às empresas não bastam como justificativa: a descarbonização acelerada que eles propiciariam. Ela é urgente. Por nós e pelo mundo. E os padrões intensivos em carbono só podem ser modificados com investimentos reorientadores.
Infelizmente, a precariedade da luta política e a tacanhez dos interesses em disputa impede que o duelo se faça com avanços, com a conquista de posições sobre o futuro. Continuamos a retalhar e a esquartejar o que existe, como hordas em meio ao butim. Não há investimentos em refino, é preciso retalhar as refinarias que existem. Usinas hidrelétricas, gasodutos, rodovias, ferrovias – a lista é longa e os resultados conhecidos: soma zero ou negativa.
No fundo, os interesses dominantes, sobretudo em suas versões mais rentistas e parasitárias, não querem investimentos, porque não querem aumentos de oferta, porque temem a concorrência que essas novas capacidades criam. Projetos novos são o âmago do capitalismo e a antítese do rentismo que – infelizmente, desgraçadamente – prevalece. Até quando?
O debate entre investimentos públicos e privados é uma manifestação da pobreza dos interesses em disputa e das visões de futuro. Investimentos privados estão centrados em sua rentabilidade, os públicos estão voltados para a produção de externalidades. Assim deve ser. Eles não são essencialmente concorrentes. São complementares. Quanto mais investimento público, mais investimento privado. Porque investimento público aumenta eficiência dos investimentos privados e dos negócios privados existentes. Todos eles. Com isso restauram-se níveis mais elevados de rentabilidade, quiçá de competitividade, exportações e novos investimentos. Um ciclo virtuoso que a maioria dos brasileiros adultos e todos os jovens desconhecem.
Quando os investimentos públicos são bem concebidos e implementados, eles geram efeitos positivos que trazem investimentos privados para as faixas de rentabilidade que podem aceitar (e não existiriam sem os públicos). Acontece que ambos estão enredados em longa paralisia. Uma longa paralisia. Uma paralisia que se reforça, porque o atraso com relação às fronteiras produtivas e tecnológicas vai se agravando. Dito de outro modo, capitalistas e setor público perderam capacidade de conceber e implantar bons projetos de investimento. Há poucas exceções a esta afirmação nos últimos 25-30 anos. É por isso que relançar o investimento – o público e o privado – é tão importante.
O arcabouço fiscal é muito decepcionante nesse quesito. Ele não construiu um espaço relevante para soerguer o investimento público, com ele o privado, com ambos as condições para o relançamento da economia. Isso não faz apenas a diferença com relação ao resultado do desempenho da economia em termos de crescimento (PIB). Não faz apenas a diferença também entre os efeitos fiscais do crescimento, em um arcabouço tão dependente da taxa de crescimento, determinante da arrecadação fiscal e portanto do resultado primário. O problema crucial é outro: sem investimentos revigorantes e transformadores, que aumentem as capacidades de produção e as orientem para o futuro, com eficiência e competitividade que só bons projetos podem criar, são maiores os riscos de que qualquer crescimento modesto tenha impactos nos preços. Por isso, o cenário supostamente prudente, com investimentos muito limitados, é de fato o mais arriscado. E é nele que Neto confirma o seu prognóstico. Um prognóstico construído passo a passo.
João Furtado é economista
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.
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Por que teorizar sobre o que não é teórico. O debate não é sobre investimento público ou privado, é sobre a continuidade do movimento privatista.
Teve um presidente que disse “Leiam meus lábios! Não vou aumentar impostos!” Era Bush pai. Os EUA sofreram recessão e ele teve que aumentar impostos e perdeu a reeleição pra Clinton. Ontem Haddad fez esse discurso. Quero ver o que o gênio Haddad fará quando Bobbynho Fields em maio dar a estrelinha de bom aluno pro Haddad e juros de 13 por cento – que asfixia a economia. O plano Luladad é ótimo – desde que se tenha receita. É como alguém inventar um carro movido a água e torcer pra achar um oásis no meio do deserto. Enfim, que o Sr Crise venha em socorro mais uma vez de Lula, porque se depender do bom moço Haddad vamos acabar no calabouço.
Nos EUA o investimento público, assim que gera alguma coisa da qual se possa extrair lucro, é concedido (ou cedido) à iniciativa privada, mediante sistemas próprios de privatização. Não se pensa em atender as necessidades do público, e muito menos em elevar padrão de vida de quem quer que seja. Pensa-se em ganhar dinheiro. E ninguém se escandaliza com isso. Aqui ainda se pensa em bem público, daí o constante apelo ao espírito público dos operadores do sistema político, que, como qualquer coisa a que chamemos Espírito, só existe em nossos desejos e nossa imaginação. Qual a diferença? Esta: Os EUA são a única ex-colônia do mundo que se transformou em metrópole à moda antiga. O Brasil é uma ex-colônia eternamente à procura de uma metrópole. Portugal, a de fato e de direito, França, nossa ex-metrópole cultural, a Inglaterra, a metrópole que nos introduziu ao maravilhoso mundo das finanças, e finalmente os EUA, que gostou tanto de nós que nos trata e cuida como o quintal da própria casa. O Brasil é a amante com a qual o amásio faz tudo que não pode fazer em casa, se é que vocês me entendem. Juros altos são feios? Pratiquemos juros baixos em casa, e na rua, a gente escorcha. Agrotóxicos é feio, dá câncer? Tudo bem, aqui a gente não usa, e lá, com a amante, a gente carca o dente. Enfim, tudo que aqui é ilegal, imoral, ou engorda, lá fora é permitido e dá lucro. E lá fora, amigos, é o Brasil. No mundo inteiro essas coisas são malvistas ou proibidas, mas como o Brasil parece não fazer parte do mundo inteiro, lá pode. Se o Brasil não existisse, pessoal, nada seria permitido. Mas, felizmente, o Brasil existe, e com arcabouço ou sem arcabouço, lá a gente pode tudo. De juros escorchantes a agrotóxicos, lá tudo é permitido. Amigos do GGN, continuo achando inócuo e contraproducente julgarmos que podemos e devemos ter autonomia para regular o que quer que seja, da política econômica à diplomacia, como se fossemos um país livre e sem amarras de qualquer natureza. A política monetária do BC é feita para agradar e atrair o investidor estrangeiro, gerar riqueza para fora, e o arcabouço também: ele não altera nada, em essência. Se der certo, aquecerá a economia, e despertará a fome do Capital externo, da mesma forma. Vejam Lula 1 e 2, e Dilma 1; como terminou esse ciclo? Deixaram que nos divertíssemos, achando que estávamos a caminho de nos tornar uma nação próspera e líder regional, e quando o pré-sal nos deu um meio de transformar a fantasia em realidade, a gente nunca mais prosperou, maninha, depois que eles chegaram. Ou voltaram, maninha, melhor dizendo. Quando da ‘redemocratização’ de meados dos anos 80, ouvi inúmeras vezes que agora era para valer, o país estava maduro, não havia mais espaço nem condições para aventuras ou golpes. Deu no que deu. Para manter ou aumentar as próprias vantagens e privilégios, há sempre espaço e condições. Ninguém abre mão daquilo que lhe favorece e beneficia. Perder Cuba, Nicarágua? Tudo bem, é uma pain in the ass, mas deixa pra lá. Perder o Brasil? Fuck you, man! Aí já é avacalhar a guerra com baladeira. Aí não! O arcabouço não veio para confundir, nem para explicar; veio para manter tudo como está. Os mais espertinhos dentre os operadores e especuladores do mercado financeiro sabem disso, e já estão tornando público seus elogios; a bolsa sobe, o dólar desce, e tudo continua maravilhoso para eles, da mesma forma que fica quando a bolsa desce e o dólar sobe. Com Lula, com Dilma, com Temer, com Bozo, com quem quer que seja, para eles o céu é sempre de brigadeiro e o mar, de rosas. Com ou sem teto de gastos, com ou sem arcabouço. Porque a riqueza e prosperidade deles, eles a buscam longe de casa, onde tudo é permitido. Fora da Revolução, não há salvação. Só mais do mesmo, ou seja, a Democracia modelo euro-americano, galinha que acolhe a todos sob suas asas, até mesmo escorpiões.
Esperemos que Nassif, em breve tempo, nos traga uma análise – o mais didática possível – sobre o “Plano Haddad”.
O artigo de João Furtado, não obstante a boa intenção, não ajuda o público leigo a compreender os meandros e as possíveis artimanhas.
Não é de todo correto afirmar que o capital financeiro é pura ficção e parasitismo. Nele há componentes como juros e sistema de crédito que sob uma direção social impulsiona a economia. Por isso, tomar as rédeas do mercado é fundamental. De preferência com uma ampla intervenção estatal nos bancos públicos e privados. A começar por demitir Campos Neto e expurgar da diretoria do Banco Central os representantes do mercado financeiro.
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