Destruição dos princípios: a presunção de inocência, por Jorge Folena

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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DESTRUIÇÃO DOS PRINCÍPIOS

Por Jorge Folena

Advogado e cientista político

Tenho sido um crítico ao realismo jurídico americano, uma doutrina relativa à teoria do direito que, a partir dos anos 20 e 30 do século XX, passou a entender que o Direito se manifesta por meio das decisões dos tribunais, em particular as Supremas Cortes de Justiça.

Para esta corrente de pensamento, o juiz não pode ser um mero aplicador das regras aprovadas pelos Parlamentos e Governos, devendo tomar as suas decisões, principalmente nos casos judiciais considerados difíceis, “de acordo com as suas preferências políticas ou  morais”, como esclarece Ronald Dworkin, em sua obra “Levando os direitos a sério”.

A partir daí, ocorreu um gradativo esvaziamento na simples aplicação das regras jurídicas e prevaleceu um imenso grau de interpretação e aplicação de princípios jurídicos, que passaram a ser empregados segundo a convicção pessoal de cada juiz.

 

Com isto, as Cortes de Justiça deixaram de ser aplicadoras das normas jurídicas (regras e princípios) para tornaram-se criadoras de normas de Direito, que, em muitos casos, não estão previstas com clareza nos textos constitucionais nem nas demais leis e regulamentos produzidos pelas instituições políticas.

Além disso, neste mesmo embalo, os movimentos sociais e grande parcela da sociedade civil passaram a depositar as esperanças de concretização de seus objetivos nas mãos dos Tribunais, em razão da ausência de resposta política a suas demandas políticas, sociais e econômicas, o que deu origem ao fenômeno da judicialização da política.

Contudo, não será jamais nas Cortes de Justiça que os problemas políticos poderão ser solucionados, mas sim nos espaços públicos, nos parlamentos e nos governos, mediante a atuação  das pressões que somente a sociedade pode exercer sobre os políticos.

O descrédito na política, como se vê hoje por todo o mundo, traz em si o fracasso da sociedade, cujos integrantes não conseguem se organizar nem impor a ordem para fazer prevalecer seus interesses.

O que se constata atualmente é que as pessoas estão se desinteressando da vida política e permitindo que os espaços públicos sejam ocupados por indivíduos que jamais irão trabalhar para o benefício da coletividade,  pois representam os interesses dos mercados e de outros grupos privados.

Assim, é mais fácil para os cidadãos ficar acomodados, protestando à distância e entregando a solução de seus problemas nas mãos da burocracia, principalmente a judicial e aquelas constituídas pelas demais forças repressivas, como o ministério público e a polícia.

Contudo, as referidas instituições não foram criadas para serem o centro da arena política. Isto porque constituem entes estatais auxiliares, que existem para facilitar o controle e o exercício do poder pelo Estado e, sendo assim, podem agir contra os interesses da coletividade e em favor dos interesses dos grupos dominantes que se tenham apropriado da condução da política.

Quando um determinado Estado passa a ser controlado dessa forma, o que se tem observado é que os direitos liberais fundamentais, constituídos em proteção  e defesa da sociedade civil, passam a não ser mais respeitados. Assim, o habeas corpus e a própria presunção de inocência passam a ser aplicados com restrições ou são até mesmo negados em sua plenitude.

Não é crível que o habeas corpus, instrumento jurídico criado para dar proteção máxima contra as arbitrariedades praticadas ante o direito natural de ir e vir,  possa ser limitado por questões meramente formais e até mesmo morais, como se tem visto nos discursos e votos de juízes da Suprema Corte do Brasil.

Pois o habeas corpus é um instrumento processual que visa garantir a liberdade das pessoas e deve ser analisado em qualquer hipótese para se saber se um determinado indivíduo – quem quer que seja – está sofrendo uma violência por parte das instituições estatais.

Da mesma forma, não se pode limitar a presunção de inocência enquanto não transitar em julgado uma pretensão criminal contra um cidadão.

Nesse ponto, para entendimento geral, proponho que seja feita a seguinte reflexão: “se uma ação viola um direito fundamental, isto significa que, do ponto de vista dos direitos fundamentais, ela é proibida”. É o que diz Robert Alexy, na obra Teoria dos Direitos Fundamentais.

Significa dizer que o princípio da presunção de inocência não pode ser rebaixado pelo mero direito de prender. Infelizmente, por questões de política, pessoas estão sendo presas sem a conclusão do julgamento final por um tribunal superior, como asseguram as normas internacionais a que o Brasil aderiu, como o Tratado de Direitos Humanos de São José da Costa Rica.

É inaceitável que princípios fundamentais que constituem o próprio cerne dos direitos estendidos pelo Estado para garantia dos cidadãos (de qualquer cidadão!) sejam desrespeitados por representantes de instituições criadas meramente para instrumentalizar a ação do Estado na construção do bem-estar coletivo.

Isto porque o Estado não existe por si só e, se existe e manifesta qualquer ínfima medida de poder, todo o poder que detém emana de quem o constituiu em primeiro lugar: o povo, e não as instituições, que lhes devem total obediência.

 
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

12 Comentários

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  1. Mal comparando, mal mesmo,

    Mal comparando, mal mesmo, essa foto me lembra o casal do filme Casablanca.

    Com um detalhe :

    Os dois do filme eram bonitos.

    Esses dois são meia-boca.

  2. Interpretação polític-ideológica do direito positivo

    Em vez de interpretarem o dirito positivo com rigor, à luzi do instrumental hermeneutico,esses lagartinhos do sistema e lambe-sacos dos poderosos não se preocupam em se afastarem da crítica do jurista Ferrara, que condenava os intérpretes ideológicos, que, frequentemente, legislam em vez de aplicarem o direito positivo, colocando no direito o contrário do estabelecido pelo legislador, a fim de atender suas preferências pessoais ou a preferência dos seus correligionários, e outras vezes extraem da lei o que nela não está, por não concordarem com o seu teor, por mais cristalina que ela seja. Na obra Utopia, Thomas Morus escreveu:

    “Vejam, diriam, como este bom príncipe violenta seu coração ao vender tão caro o direito de prejudicar o povo.

    Outro ainda, enfim, aconselha ao monarca ter à disposição juizes sempre dispostos a sustentar, em todas as ocasiões, os direitos. da coroa. Vossa Majestade, acrescenta ele, deveria chamá-los à corte, e persuadi-los a discutir, perante a vossa augusta pessoa, os próprios negócios reais. Por pior que seja uma causa, haverá sempre um juiz para julgá-la boa, seja pela mania da contradição, seja por amor da novidade e do paradoxo, seja para agradar o soberano. Então, uma discussão se trava; a multiplicidade e o conflito de opiniões embrulham uma coisa de si mesma muito clara, e a verdade é posta em dúvida. Vossa Majestade aproveita o momento para resolver a dificuldade, interpretando o direito em proveito próprio. Os dissidentes se submetem à opinião real por timidez ou por temor, e o julgamento é dado, segundo as formalidades, com franqueza e sem escrúpulo. Faltarão jamais ao juiz, que dá uma sentença a favor do príncipe, os necessários consideranda? Não há o texto da lei, a liberdade de interpretação, e, acima das leis, para um juiz religioso e fiel, a prerrogativa real?”

     

    Mas no $TF, os $upremos Ministros, com raras e honrosas exceções, estão preocupados não em aplicar o direito, mas em manter os privilégios dos poderosos e, dessa forma, assegurar para eles próprios as migalhas do banquete burguês. Não é à toa que a Carmem Lúcia recebe o Temer privadamente, num final de semana, na sua residência.

      1. Não adianta traduzir. Talvez só desenho resolva

        Prá qual língua você quer que se traduza?

        Parece que você não fala português nem juridiquês.

  3. A eterna inocência
    O grande filósofo Daniel Dantas num momento de infinita sabedoria teria afirmado que no Supremo tudo é mais fácil. E viva a quarta instância.

    1. O Principio da Razoável Duração do Processo

      A Constituição estabelece que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

      Os jurisdicionados não devem pagar pela morosidade da justiça

  4. direito garantido não se interpreta…

    se continuarem a reduzir a força hierárquica da Constituição, como alguns têm feito e em todas as instâncias, todos os nossos direitos, incluindo os fundamentais reconhecidos e respeitados internacionalmente, restarão apenas declarados e sem que ninguém se considere obrigado a reconhecer e respeitar

    Neste então, quando anulada a força hierarquica, entre a nossa Constituição e um catálogo de propaganda enganosa não não haverá nenhuma diferença

    1. e já podemos nos sentir quase lá…

      quando um ministro do STFquestiona um HC preventivo tendo em mente(?) o fato da pessoa ainda não estar presa, mas que certamente vai estar amanhã ou depois

  5. “Da mesma forma, não se pode

    “Da mesma forma, não se pode limitar a presunção de inocência enquanto não transitar em julgado uma pretensão criminal contra um cidadão.”

    Bonito de falar, mas totalmente errada essa premissa. Isso porque no mundo, todos os países, com excessão do Brasil adotam o fim da presunção da inocencia após a sentença de primeiro  ou segundo grau, mesmo com recursos pendentes às Cortes Supremas.

    Nós aqui no Brasil sabemos muito bem que isso não funciona, além de ser injusto com a sociedade pois significa a virtual impunidade de um criminoso se cada sentença tiver de passar por todas as instância, inclusive o STJ e o STF, o que significaria 4 instancias e uns 40 anos de tramitação e a prescrição de qualquer crime nesse período.

    É por isso que a sentença transita em julgado quando existe a sentença condenatória definitiva em sede de 2º grau.

    Mas na Constituição não diz que a sentença transita em julgado somente após esgotarem-se os recursos? Sim, mas ela não especifica quais recursos pois temos os recursos ordinários, extraordinário e Especial.

    Mas e o STF e o STJ? Eu não posso apelar a esses 2 tribunais?

    Sim, mas esse recurso se chama Recurso Extraordinário e Especial, em oposição ao recurso ordinário. Ele é Extraordinário porque é endereçado a um Tribunal cuja função não é o de revisar um julgamento, apenas proteger as leis e a Constituição e interpretar, em última instancia uma norma jurídica.

    Por isso a legislação infra-constitucional determina que referidos recursos não gozam de efeito suspensivo, o que significa que a sentença vale até ser revisada/confirmada pelo Tribunal Superior.

    -Mas isso é injusto! Não não é. Todos os países, eu disse todos com excessão do Brasil adotam esse procedimento, a de que os recursos endereçados às cortes superiores não suspendem a aplicaçao da pena.

    -Mas no Brasil é inconstitucional. Não não é. Porque a Constituição Brasileira determina que a sentença transita em julgado quando esgotam-se os recursos, mas sem especificar se recursos ordinários ou recursos extraordinário. Assim o STF pode interpretar a CF como é, aliás, atribuiçao sua.

     

     

    1. Pode significar também a punição de um inocente

      Se a população dos demais países comerem bosta, os brasileiros devem comer bosta também.

    2. Princípio da não culpabilidade e direito comparado

      “Direito comparado

      A presunção de inocência é citada por tratados internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Convenção Européia de Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Convenção Americana de Direitos Humanos. “Considerando que a maioria dos países ocidentais está submetida a um desses pactos internacionais ou a mais de um, é possível afirmar, mesmo sem pesquisar detidamente a Constituição de cada um, que em todos eles há presunção de inocência. Os Estados Unidos são exceção, pois nunca assinam tratados internacionais, menos ainda os de direitos humanos”, afirma o professor Thiago Bottino”.

      https://www.conjur.com.br/2009-fev-14/stf-agiu-bem-confirmar-relevancia-presuncao-inocencia

      Direito comparado

      A presunção de inocência é citada por tratados internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Convenção Européia de Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Convenção Americana de Direitos Humanos. “Considerando que a maioria dos países ocidentais está submetida a um desses pactos internacionais ou a mais de um, é possível afirmar, mesmo sem pesquisar detidamente a Constituição de cada um, que em todos eles há presunção de inocência. Os Estados Unidos são exceção, pois nunca assinam tratados internacionais, menos ainda os de direitos humanos”, afirma o professor Thiago Bottino.

  6. Jurídico
    Leio com grande entusiasmo o texto do cientista político Jorge Rúbem Folena a luz de 2 excelentes autores:Dworkin e Alex para enfrentar o punitivismo juridico ora dominante. Com extrema clareza Folena avança percepções para interpretar a ruptura do pensamento liberal desses dois autores consagrados aos quais se une a filosofia jurídica de John Ralws para consagrar dois princípios em ordem sistematizada sendo o primeiro deles a liberdade das pessoas o que fundamenta o pensamento crítico.

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