
O novo filme de Walter Salles sobre os desaparecimentos de críticos do regime no Brasil dos anos 1970 é um poderoso lembrete de que os ghouls que defendem o massacre em Gaza estão esperando o momento certo
por Jonathan Cook
O novo filme de Walter Salles, I’m Still Here, é um retrato comovente, real e indicado ao Oscar de uma família de classe média e esquerda no Rio de Janeiro no início dos anos 1970, lutando para lidar com o desaparecimento do pai — 25 anos depois confirmado como assassinato — pela ditadura militar brasileira.
A mãe e uma filha adolescente também passam um tempo dentro de um campo de tortura do regime, antes de serem libertadas.
O que mais me impressionou no filme foi o suprimento infinito de oficiais do regime obedientes que impassível e conscientemente abusaram de homens, mulheres e crianças.
Foi um lembrete de que muitas dessas pessoas vivem entre nós — e que elas têm feito muito pouco para esconder quem são nos últimos 16 meses.
Eles são os políticos que estragam a linguagem e o direito internacional ao chamar de “autodefesa” a punição coletiva do povo de Gaza por meio de bombardeios e fome — crimes contra a humanidade.
Eles são os policiais que invadem as casas das pessoas e detêm e prendem jornalistas independentes e ativistas de direitos humanos, incluindo judeus, por protestarem contra o massacre em Gaza.
Eles são os jornalistas do establishment que fingem que a carnificina infligida ao povo de Gaza é apenas mais uma notícia de rotina, menos importante do que a morte de um ator idoso ou a última explosão do misógino Andrew Tate.
E, mais do que tudo, eles são o exército de pessoas comuns nas mídias sociais:
- Zombando das famílias de crianças destruídas por bombas fornecidas pelos EUA;
- Recitando alegações intermináveis de “Gazawood” (Gaza-Hollywood), como se o nivelamento do pequeno território, visível do espaço sideral, fosse uma ficção e que as únicas vítimas fossem os combatentes do Hamas;
- Defendendo como um procedimento legal legítimo o sequestro de centenas de médicos e enfermeiros dos hospitais de Gaza para “campos de detenção” onde tortura, abuso sexual e estupro são rotina;
- Justificando a destruição dos hospitais de Gaza — deixando bebês prematuros, mulheres grávidas, doentes e idosos para morrer — com base em alegações totalmente infundadas e egoístas do governo israelense de que cada um é um “centro de comando e controle” do Hamas;
- Aplaudindo o apagamento do único documentário sobre Gaza humanizando suas crianças porque o pai do narrador de 13 anos é um cientista nomeado pelo governo do Hamas para supervisionar o que era o setor agrícola antes de Israel destruir toda a vegetação do enclave.
Essas pessoas vivem entre nós. Elas ficam mais confiantes a cada dia.
E um dia, se não lutarmos contra eles agora, eles colocarão um capuz sobre nossas cabeças para nos levar a um local secreto.
Eles estarão do outro lado da mesa, nos fazendo as mesmas perguntas repetidamente, nos fazendo examinar álbuns de fotos para encontrar rostos que reconhecemos, pessoas que podemos denunciar.
Eles nos levarão a uma cela suja, onde há uma prateleira dura como cama, nenhum cobertor para nos manter aquecidos, nenhuma chance de tomar banho, um buraco no chão como banheiro e uma refeição para nos sustentar durante o dia.
Eles nos escoltarão silenciosamente por longos corredores escuros até uma sala onde estarão nos esperando.
Haverá uma cadeira no centro de uma sala vazia. Eles acenarão para que nos sentemos. E então começará.
Jonathan Cook é autor de três livros sobre o conflito israelense-palestino e vencedor do Prêmio Especial Martha Gellhorn de Jornalismo. Seu site e blog podem ser encontrados em www.jonathan-cook.net
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Nenhum pensamento equilibrado pode nascer de apegos afetivos, ou, neste caso, de um filme colocado sob o maior oba-oba midiático ufanista já visto.
Aliás, essa é a única virtude do filme, ou seja, mostrar que, apesar de nanicos na indústria de produção de bens culturais de massa, podemos montar um lobby como esse.
Bem, mais ou menos.
Li o The Guardian, O The Independent, mais à esquerda, o El País (o avô espanhol do Clarín porteño), e o Liberation.
Pouco ou quase nada sobre o filme do banco Itaú.
Agora, esse prestigioso e combatente jornalista nos alerta que o filme é um alerta.
Não, não é.
O capuz já foi colocado, meu amigo.
E ali dentro temos a vertigem de que há saída… não há…no sistema capitalista, no estado em que se encontra, não há.
A imagem mais cruel e verdadeira, porém não intencional, pois acho que nunca o carinhoso e educado cineasta herdeiro proporia uma metáfora tão cruel, é a imagem de Eunice (Fernanda Montenegro), idosa e com a memória corroída pela degenerativa doença.
Nosso modo de vida é a nossa doença degenerativa, mas alguns dizem que é o capuz que nos cega e embora a lembrança.
Um jornal murdochiano veicula a seguinte matéria:
“Atrocidades russas em 3 anos de guerra na Ucrânia não devem ser relativizadas
Perspectiva que vê Rússia sempre como vítima, romantiza passado soviético e opõe Putin aos EUA impacta análises”.
Porventura as atrocidades de U$rael em Gaza devem ser relativizadas? As atrocidades do Batalhão de Azov com os Russos devem ser relativizadas?