Lei de exceção num tribunal medieval… Quanta modernidade sô
por Fábio de Oliveira Ribeiro
Após o The Intercept, a Folha e a Veja publicarem os chats que comprovam a conspiração entre Deltan Dellagnol e Sérgio Moro para prejudicar a defesa e condenar Lula dois Ministros do STF se manifestaram. Fachin disse que é inadmissível a militância política do juiz; Luis Barroso parece estar mais preocupado com o suposto crime que teria sido cometido contra os heróis lavajateiros e sugere que a Glenn Greenwald teria que provar que as provas utilizadas para condenar o ex-presidente petista seriam fraudulentas.
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A questão levantada por Barroso merece ser comentada. Mas para fazer isso, retomarei aqui um argumento que já foi esboçado no próprio GGN:
“O caso do Triplex se desenrolou em três camadas. Duas delas (a midiática e a sigilosa dos chats) eram controladas por Sérgio Moro. Na terceira (o processo fraudulento), o advogado do réu não tinha qualquer chance de modificar o resultado desejado pela imprensa e pela dupla juiz/procurador.
A hostilidade do juiz contra o réu e sua parcialidade são comprovadas pela existência de duas camadas processuais impermeáveis à atuação de defesa: a direção do show na grande imprensa com ajuda de Sérgio Moro e a conspiração que ocorria no submundo das mensagens telefônicas.
É inevitável a conclusão de que o advogado de Lula estava fadado a ser derrotado. Durante o curso do processo Sérgio Moro somente deu conhecimento à defesa do que ocorria nos autos. Antes do The Intercept revelar ao respeitável público o conteúdo das mensagens, Cristiano Zanin Martins não tinha condições de atacar processualmente as “tabelinhas” entre Sérgio Moro e Deltan e Dellagnol que redundaram em atos da acusação e decisões judiciárias que levaram à inevitável condenação do réu.”
No caso de Lula não é necessária qualquer comprovação adicional de que as provas foram obtidas de maneira fraudulenta. A questão da nulidade ou não da sentença do Triplex não diz respeito às provas empregadas na sentença e sim à conduta inadequada do juiz que a proferiu. Não pode ser considerado imparcial um juiz que, em sigilo, tramou incidentes processuais com a acusação numa camada processual informal à qual o defensor do acusado não teve acesso.
Essa é a questão jurídica relevante que Luís Barroso pretende evitar. Pode ele ignorar essa questão sem ferir a legislação em vigor? A resposta é não.
A missão do juiz é cumprir e fazer cumprir fielmente a Lei (art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura). Nem mesmo um Ministro do STF pode deixar de aplicar os princípios constitucionais do Direito Processual Penal. A constituição garante o devido processo legal (art. 5º, LIV). O juiz que conspira com a acusação para prejudicar a defesa não pode ser considerado competente para julgar o réu (art. 5º, LIII). A prisão ilegal imposta por ordem de um juiz parcial deve ser imediatamente revogada (art. 5º LXV e LXVIII).
A Declaração Universal dos Direitos do Homem garante a imparcialidade judicial no art. 10º: Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.
O art. 8º, item 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos prescreve que: 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. O Brasil é signatário dos acordos internacionais acima transcritos. Em nosso país, ambos tem força de norma constitucional em razão do disposto no art. 5º, §2º, da CF/88. Portanto, é indiscutível o direito de Lula a um julgamento independente e imparcial.
Ao aplicar a constituição e a legislação processual penal, um ministro do STF não pode discriminar Lula ou de qualquer outro réu por razões pessoais, raciais, políticas, ideológicas ou religiosas sem ferir dois preceitos constitucionais: o que proíbe tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII) e a que veda a criação de norma discriminatória (art. 5º, XLI). Ao que parece Luís Barroso pretende descumprir essas normas de uma forma maliciosa, qual seja: se recusando a discutir o tema juridicamente relevante (que é a nulidade da condenação e da prisão imposta por um juiz que corrompeu sua imparcialidade ao tramar incidentes processuais com a acusação sem o conhecimento da defesa).
O que ocorreu no processo de Lula é anormal e ilegal. Dizer que os juízes sempre fazem isso é um tapa na cara dos membros do judiciário como disse um deles. Sou advogado há quase trinta anos e nunca, em hipótese alguma, tramei incidentes processuais com qualquer juiz ou procurador para prejudicar quem quer que seja. Preservar a higidez do processo, ou seja, agir sempre com probidade de maneira a evitar nulidades processuais, é uma obrigação imposta tanto ao advogado (art. 34, X, da Lei 8.906/1994) quanto ao procurador (art. 236, IX, da Lei Complementar nº 75/1993).
A inadequação do comportamento de Deltan Dellagnol é evidente. Além de se submeter ao juiz, comprometendo sua independência funcional, o procurador lavajateiro contaminou a parcialidade de Sérgio Moro no exato momento que começou a trocar mensagens com ele sobre o processo. Qualquer jurista mequetrefe sabe que uma parte não pode e não deve conspirar com o juiz, pois isso acarreta uma nulidade processual insanável. Sérgio Moro, por outro lado, não recusou o contato do procurador. Muito pelo contrário, ele passou a instigar seu colega de acusação a praticar ou deixar de praticar atos processuais tanto para prejudicar Lula quanto para evitar prejuízos a outros réus em potencial (FHC e Eduardo Cunha). A conduta ilegal dele não pode ser considerada acidental, descuidada ou juridicamente irrelevante.
Um membro do judiciário (seja ele juiz, desembargador ou ministro do STF) não pode aplicar a Lei como se estivesse desobrigado de obedecer os comandos dela. Essa não é uma característica da modernidade e sim da Idade Média, época em que:
“…o detentor do poder não concebe o direito enquanto tal como objeto necessário de suas atenções e instrumento obrigatório de seu regime; não o identifica como um indispensável instrumentum regni”. (A ordem jurídica medieval, Paolo Grossi, Martins Fontes, São Paulo, 2014, p. 61)
O regime político em que nós vivemos é diferente. Nele, todos são iguais perante a Lei (art. 5º, caput, da CF/88) competindo aos órgãos dos três poderes estatais observar o princípio da legalidade (art. 37, caput, da CF/88) e aos juízes aplicar a Lei de maneira adequada a Lei nos casos submetidos ao seu conhecimento (art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura). No Brasil, nenhum juiz é “mais igual”. Nem mesmo um ministro do STF deveria se considerar ou ser considerado desobrigado de cumprir os princípios constitucionais que garantem a validade dos processos. Portanto, o caso de Lula não pode ser tratado como se Sérgio Moro fosse imune ao cumprimento da legislação.
Entre nós o exercício do poder não tem autonomia em relação ao Direito como ocorria na Idade Média. Muito pelo contrário, em nosso país o próprio Direito e sua observância pelo Judiciário são instrumenta publica por excelência.
O STF é o guardião da constituição (art. 102, da CF/88), razão pela qual o ministro Luís Barroso não pode se rebaixar à condição de guardião da Lava Jato como se ela fosse um Ser Supremo fora da ordem constitucional e acima dela. Se o STF não for capaz de anular a sentença do Triplex o resultado será o caos penal, pois a legitimação da conspiração entre Sérgio Moro e Deltan Dellagnol servirá de paradigma para todo e qualquer juiz e procurador mal intencionado colocar a ferros seus inimigos pessoais ou adversários políticos.
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