O “isentão” e a neutralidade ideológica, por Guilherme Scalzilli

O “isentão” e a neutralidade ideológica, por Guilherme Scalzilli

Publicado no Observatório da Imprensa

Em meio à polarização que inflama os fóruns digitais, ganhou notoriedade uma linha argumentativa supostamente avessa a todos os flancos que porventura participem dos debates. A tendência, calcada no repúdio indiscriminado à esfera política, atrai descontentes que não querem se comprometer com programas e legendas. A eles ficou associada a alcunha “isentão”, que já entrou para o léxico informal da mídia brasileira.

Cabe esclarecer que não estamos no âmbito da relutância, da ambiguidade, da incerteza, do desinteresse e de outras reações compreensíveis diante de algum tema espinhoso. O diferencial do “isentão” reside tanto na postura incisiva, polêmica e amiúde raivosa nos debates políticos quanto na superfície retórica de objeção aos mesmos comportamentos. É uma espécie de hooligan da (falsa) neutralidade. 
Claro que esse discurso é tão ideológico quanto outro qualquer. Podemos vislumbrar repertórios de valores bem marcados no seu punitivismo inflexível, no ódio à militância, no individualismo anticoletivista e meritório, enfim, numa rede simbólica ligada a práticas sociais tipicamente conservadoras, talvez mesmo reacionárias. Além disso, há ali o sintoma clássico da ideologização, o esforço para tornar um posicionamento natural, desapegado, incontroverso.

Assim como todo silêncio alude a um não-dito com certo grau de especificidade, o recurso à aparência de isenção está contaminado pelo viés que procura esconder. Ela funciona a favor de algo que precisa ser negado para garantir sua própria legitimidade junto aos interlocutores. No caso, em meio a disputas inflamadas de narrativas com vínculos eleitorais, tenta-se apagar as marcas de interesses político-partidários cujo desmascaramento quebraria o feitiço niilista da antipatia giratória.

Tais ligações sobressaem na predominância de eixos argumentativos que partem de um antagonismo radical a certas identidades políticas, mas que se tornam cuidadosamente generalizantes, perdendo a contundência e a especificidade, quando se aproximam de outras. O repúdio localizado e o desalento global formam uma estrutura discursiva coesa, fundada na sua própria incoerência, isto é, no vetor indutivo que dela resulta.

Como bom produto ideológico, o “isentismo” demanda adesão completa. Todas as suas manifestações se assemelham na intransigência com que defendem as respectivas linhas de raciocínio e desqualificam o espírito crítico, particularmente do cidadão politizado, estigmatizando as controvérsias que ele provoca. É fácil entender a força que adquire o antipetismo, por exemplo, nesse simulacro de intercâmbio.

O apego ao chamado “discurso único” remete à imprensa corporativa, de onde partem os enunciados que os falsos apartidários reverberam sobre si mesmos. Também o jornalismo tendencioso precisa do ramerrão da objetividade para legitimar suas preferências. O afã de escondê-las, de resto bastante suspeito, revela a tolerância que a dissimulação adquire junto ao público-alvo desses veículos.

Sintomaticamente, outro forte elo intertextual dos “neutros” vem do campo Judiciário, espécie de modelo ético daquele grupo. Na mitologia objetivista, onde os magistrados são idôneos por natureza, a repetição de quimeras igualitárias parece dirimir a prática tendenciosa que as contradiz. Delas nasce o mote favorito do cinismo antitudo, a defesa de punições judiciais isonômicas que jamais acontecem e nas quais ninguém acredita realmente.

O “isentão” personifica a falência de um programa conservador que em outras épocas teve status de plataforma eleitoral. Sem nortes programáticos, frustrados por lideranças indefensáveis, seus adeptos constroem uma nova identidade ocultando os resquícios da antiga, mantendo, porém, o mesmo conteúdo e as mesmas estratégias de persuasão. O menosprezo à democracia representativa é apenas o canal mais conveniente para essa reciclagem de velharias autoritárias.

 
http://guilhermescalzilli.blogspot.com.br/2017/03/o-isentao-e-neutralidade-ideologica.html
 
Redação

6 Comentários

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  1. o….

    Gestapo Ideologica sem argumento. O discurso da  esquerda morreu de velho e podre E continuam a insistir na rota de 1 século atrás. Acusar os outros por sua mediocridade, falta de rumo e canalhice intelectual. Nababescas Elites acusando outros de serem a tal elite. Que falta de discurso, perspectivas e rumos. As pessoas perceberam. A cada dia mais abandonados. Bandidos de hoje, seus argumentos são que já existiam bandidos. Belo Projeto de país. Parabéns.  

    1. Gente olha aqui!

      Um isentão em seu habitat natural, o site de esquerda. Destilando seu cinismo antitudo na defesa de punições judiciais isonômicas que jamais acontecem e nas quais ninguém acredita realmente.

      E pra vestir a carapuça sob medida o isentão não leu o texto!

      1. Kennedy Alencar, Helena Chagas e quetais: adjetivação retocada

        Me irritam mais os textos escorregadios de um Kennedy Alencar e uma Helena Chagas do que um do Reinaldo Azevedo. Nele, o farsesco é menos gritante.

        A adjetivação ~retocada~ que Kennedy e Chagas usam para Temer, Moro, etc. é de lascar: “isso não foi legal”… “é preocupante”… “não fica bem fazer isso”.

        Aff…

  2. Sobre o “isentão”:

    Colunista da Globonews sem noção: de “isentona” a chapa branca em 24h! Ah… isso sim é que é “lavar” a jato… 

    Por Romulus

    Bom, Nassif diz no post “Cristovam Buarque, o que foi sem nunca ter sido”, que a idade o deixou mais contido na maneira de criticar. Pode ser que um dia eu chegue lá.

    Enquanto não chego, fulanizo sim a crítica e digo quem é a “notável” colunista politica sem noção mencionada de forma desidentificada no post.

    Mesmo porque prometi à tal “notável” que o faria, ainda ontem à noite, depois de ver o seu disparate.

    Como promessa é dívida…

    *

    Curioso o caminho dela…

    Apesar de ter Merval Pereira como chefe, sempre se esforçou para ser “isentona” (o que é beeeeem diferente de “isenta”). Não sei se todos conhecem a definição…Aliás, eu mesmo só aprendi o termo neste ano. Surgiu depois que eu já tinha saído do Brasil e precisei de explicador. Bem, o termo é novo, mas o conceito é velho e carcomido como o “jornalismo” feito nos 4 grupos da mídia corporativa familiar brasileira.

    A ele:

    >> “Isentão” é o jornalista que procura passar a impressão de isento fazendo críticas de mais ou menos o mesmo peso aos dois lados da disputa política. Ou seja: não se reflete a realidade. Se, numa escala de 1 a 10, o argumento de “A” vale 8 e o da parte contrária, “B”, vale 2, em vez de criticar nessa proporção, o “isentão” vai manipular o texto de forma fazer com que se chegue a um 5×5.

    A foto no dicionário que acompanha o verbete “isentão” é a dele:

    O correspondente americano na Revista New Yorker para o Brasil, Alex Cuadros.

    Pensa que ele se ofende ao ser chamado de poster child do “isentão”, como se diz na terra dele?

    Que nada!

    Até pouco tempo atrás, quando ainda morava no Brasil, a bio dele no twitter terminava com “100% isentão”.

    A propósito, o tweet que está pregado no topo da timeline de Alex neste exato momento é um exemplo perfeito da tal da “isentonice”:

    Traduzindo:

    >> Eis a minha visão sobre o impeachment de Dilma. Pode não ser golpe [!!], mas certamente está em alguma zona cinzenta democrática [o que quer que isso signifique…]

    Aliás, “alguma zona cinzenta” é exatamente onde o isentão mora. Nada – nada mesmo! – é preto ou branco. Tudo – tudo mesmo! – deve ser relativizado, matizado, ressalvado… … … (ad nauseam)

    Cristiana Lobo nunca foi tão isentona quanto o Alex.

    Afinal, existem (só?) “50 tons de cinza”, não é mesmo?

    Em vez do placar de 5×5, ficava num 6×4.

    Não deixa de ser admirável, lembrando novamente quem é seu chefe.

    MAS…

    Bastou Temer tomar posse em definitivo, baixar o cacete nos manifestantes e avançar na escalada – sem precedentes – do patrimonialismo no uso dos poderes de Estado, para a ex-isentona virar 100% chapa branca. 

    Ou seja: o placar agora é 10×0 !

    Em apenas uma noite – “de São Bartolomeu”? – virou o Jorge Bastos Moreno!

    Isso sim é que é “lavar” a jato!

    Pois vejam se não:


    Não fui honrado com o contraponto do Jorge Bastos Moreno, digo, Cristiana Lobo.

    Parabéns, Cristiana Lobo! Não só titio Merval ficou contente, como quem “assina o cheque”, o Min. Eliseu Padilha, também.

    Não fique mais com insegurança jurídica. Cris!

    Vivemos plena democracia, num Estado de direito onde vigem todas as garantias constitucionais:


    Apenas estupidez ou soma-se a ela, que é certa, desfaçatez e certeza de que “a sangria [agora já está] estancada”, posto que há “entendimentos com MinistroS do STF” e que “as Forças Armadas garantem”? (apud Romero Jucá, grampeado por Sérgio Machado)

     

    CONTINUA EM: https://jornalggn.com.br/blog/romulus/colunista-da-globonews-sem-nocao-de-isentona-a-chapa-branca-em-24h-por-romulus

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