Resolução 586 do CNJ, direitos dos trabalhadores e ação sindical, por Ricardo Nunes de Mendonça

Os conflitos que chegam à Justiça do Trabalho não são causa de incerteza quanto ao custo do trabalho para o mercado, são consequências

Resolução 586 do CNJ, direitos dos trabalhadores e ação sindical

por Ricardo Nunes de Mendonça[1]

I.

No dia 30 de setembro de 2024 o CNJ – Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução nº 586, que “Dispõe sobre métodos consensuais de solução de disputas judiciais na Justiça do Trabalho”.

Sob o argumento de que mesmo após a reforma trabalhista – que visivelmente atacou o direito ao acesso à Justiça – ainda é necessário “reduzir a litigiosidade que há na Justiça do Trabalho”, o CNJ, sob a batuta do Ministro Luiz Roberto Barroso, editou Ato Normativo cujo objetivo, segundo seus próprios termos, é atribuir “quitação ampla, geral e irrevogável” aos acordos extrajudiciais homologados na Justiça do Trabalho.

Antes de se abordar o conteúdo da Resolução, algumas considerações são necessárias.

A primeira diz respeito à alegada “ excessiva litigiosidade”, que segundo o voto do Ministro Barroso, “torna incerto o custo da relação de trabalho antes do seu término, o que é prejudicial a investimentos que podem gerar mais postos formais de trabalho e vínculos de trabalho de maior qualidade”[2].

As premissas e a conclusão em destaque são falsas e não resistem a um confronto com a realidade.

Os conflitos que chegam à Justiça do Trabalho todos os dias não são causa de incerteza quanto ao custo do trabalho para o mercado, ao contrário, são consequências, dentre outros fatores, de uma histórica delinquência patronal que majora o lucro aos custos do descumprimento dos Direitos dos Trabalhadores.

Dados oficiais da própria Justiça do Trabalho sobre a natureza das ações ajuizadas; dos pedidos habitualmente deduzidos pelos desempregados e desempregadas (afinal de contas sempre foi a Justiça dos desempregados); a respeito do tempo de duração e efetivação dos direitos em favor de seus titulares e de quem são os litigantes habituais e os maiores devedores listados pelo Poder Judiciário, desmentem as premissas que constaram no Voto do Ministro Luiz Roberto Barroso.

De acordo com o Relatório Geral da Justiça do Trabalho a maior parte das reclamatórias ajuizadas pelos desempregados brasileiros no ano de 2023 trataram de FGTS, adicional de insalubridade, verbas rescisórias e horas extras, evidenciando que a maior parte dos casos trazidos à Justiça do Trabalho cuida do inadimplemento de direitos básicos”[3].

Segundo o mesmo relatório, o prazo médio de duração de uma demanda, em dias, no país, desde o ajuizamento até “a extinção do processo na fase de cumprimento de sentença”, ou seja, até a satisfação do direito reconhecido em favor do trabalhador, é de 1518 dias, ou, 4,15 anos,.[4] Nesse tempo as empresas mantem os recursos nos seus respectivos patrimônios.

Os setores da economia mais demandados no ano de 2023, foram, nesta ordem, Serviços Diversos; Indústria e Comércio. Entre os campeões de recursos no Tribunal Superior do Trabalho estão: 1º) Correios; 2º) Bradesco S/A; 3º) Petrobrás; 4º) Santander; 5º) Fundação Casa; 6º) Banco do Brasil S/A; 7º) Contax S/A; 8º) Caixa Econômica Federal; 9º) Itaú; 10º) Oi S/A.

Aos trabalhadores e trabalhadoras que tiveram os seus direitos tardiamente reconhecidos foram pagos R$ 41.351.596.053,50, só no ano passado[5].

O INSS recebeu, no mesmo período, R$ 4.321.897.861,94 em razão da delinquência patronal[6].

O que estes breves dados denunciam é que a alta litigiosidade a que se refere o Ministro Luís Roberto Barroso, não decorre da má índole, do oportunismo ou da injustificada beligerância de quem trabalha. Deriva da delinquência de quem não quer ter seu poder e seu lucro tolhidos pelas normas de Direito do Trabalho.

Um olhar mais detido aos dados enunciados pela Justiça do Trabalho permitirá, com absoluta segurança, reforçar tais conclusões e desmentir a afirmação de que as demandas causam incerteza no mercado. A quantificação do custo da mão de obra é conhecida por quem, habitualmente, descumpre as normas de proteção ao trabalho. Não há insegurança a este respeito. O que há, isto sim, é uma opção consciente e rentável pelo descumprimento da lei.

Também é falsa a afirmação de que a suposta incerteza inibiria investimentos e geração de postos de trabalho mais seguros e mais bem remunerados. 

O que inibe investimentos e criação de postos de trabalho mais qualificados, na ordem capitalista, são fatores econômicos que nada têm que ver com o Direito do Trabalho. Baixo crescimento econômico e altas taxas de juros que privilegiam o capital financeiros são alguns dos verdadeiros fatores que inibem investimentos focados em gerar riqueza a partir do trabalho humano.

Há segurança jurídica para quem promove trabalho digno e cumpre os compromissos legais, convencionais e contratuais. O custo do trabalho é sabido e o risco de condenação judicial extraordinariamente baixo. Há, de outro lado, concorrência desleal, delinquência patronal, dumping, intensificação desmedida do trabalho e do lucro para quem descumpre a lei e depois recorre aos poderes constituídos para que estes validem suas más práticas e não constranjam os seus interesses.

É a agenda que o movimento sindical bancário se depara, por exemplo, com as negociações coletivas desde 2018. O movimento dos bancos não está só em usurpar, diariamente, os direitos dos bancários, mas também negar-lhes o acesso à Justiça. Querem eliminar o risco não pela efetivação dos Direitos, mas pela impossibilidade de reclamá-los judicialmente.

Se o ataque ao acesso à Justiça se deu, primeiramente, pela via legislativa, agora se dá pela via judicial.

A Resolução do CNJ, calcada em premissas e conclusões falsas, quer, na verdade, reduzir o custo da mão de obra e atende aos interesses de quem, repita-se, delinque conscientemente. É mais uma medida aderente a agenda neoliberal que se hegemoniza no âmbito das mais altas Cortes de Justiça brasileiras, destacadamente o Supremo Tribunal Federal.

O discurso da conciliação, que habita o Judiciário, sobretudo o trabalhista, desde a criação da Justiça do Trabalho, sempre serviu, preponderantemente, a um conjunto de interesses: os de quem emprega. Não só porque aumenta o lucro, tornando o trabalho mais barato, mas porque dociliza quem trabalha, evitando que reaja às ilegalidades e abusos que é vítima.

Por estas razões, o movimento sindical precisa enfrentar e desconstruir a Resolução do CNJ junto a suas bases. Ela atenta contra os Direitos e interesses da classe trabalhadora e estimula ainda mais delinquência patronal.

Dito isso, passa-se a uma análise dos termos jurídicos da Resolução.

II.

A par de não se ignorar a possível inconstitucionalidade da Resolução 586 do CNJ – posto que Ato Normativo que, por dispor “sobre métodos consensuais de solução de disputas na Justiça do Trabalho”, pode significar usurpação de competência exclusiva do Congresso Nacional (arts. 2º e 22 da Constituição Federal de 1988) – a norma prevê que os “acordos extrajudiciais homologados pela Justiça do Trabalho terão efeito de quitação ampla, geral e irrevogável, nos termos da legislação em vigor”, sempre que houver cláusula expressa nesse sentido nos termos do acordo.

Além da exigência de cláusula com eficácia liberatória geral, a norma prevê que as partes proponentes da transação deverão se fazer acompanhar por seus respectivos advogados ou sindicatos, vedada a representação por advogado comum.

Ainda no âmbito das exigências que condicionam a legalidade da transação, a Resolução prevê que os trabalhadores menores de 16 anos se façam representar pelos pais, curadores ou tutores e que não existam vícios de vontade ou defeitos dos negócios jurídicos de que cuidam os arts. 138 a 184 do Código Civil brasileiro, vedada a presunção ante a mera hipossuficiência do trabalhador.

Em nenhuma circunstância a quitação alcançará, consoante o parágrafo único do art. 1º da Resolução, as seguintes hipóteses: “I – pretensões relacionadas a sequelas acidentárias ou doenças ocupacionais que sejam ignoradas ou que não estejam referidas especificamente no ajuste entre as partes ao tempo da celebração do negócio jurídico; II – pretensões relacionadas a fatos e/ou direitos em relação aos quais os titulares não tinham condições de conhecimento ao tempo da celebração do negócio jurídico; III – pretensões de partes não representadas ou substituídas no acordo; e IV – títulos e valores expressos e especificadamente ressalvados.”

Acaso as condicionantes previstas para a eficácia liberatória geral não se façam presentes, assevera o art. 2º da Resolução, o acordo terá “eficácia liberatória restrita aos títulos e valores expressamente consignados no respectivo instrumento, ressalvados os casos de nulidade”, permitindo-se ao trabalhador exercer o direito de ação em relação as pretensões não quitadas.

Ainda segundo os termos da norma, eventual transação depende da provocação do Judiciário pelas partes interessadas, e pode ser feita pelo próprio trabalhador ou substituto processual legitimado, como, por exemplo, os Sindicatos profissionais, sendo vedada “a homologação apenas parcial de acordos celebrados” (art. 3º).

Perceba-se que qualquer transação que preencha as condições previstas no art. 1º da Resolução, teoricamente, poderia ser submetida ao crivo do Poder Judiciário com eficácia liberatória geral. Ressalte-se, no entanto, que momentaneamente, mais precisamente por um prazo de seis meses, a Resolução prevê que as normas nela previstas só se aplicarão “aos acordos superiores ao valor total equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data da sua celebração” (art. 4º).

As rescisões contratuais, por exemplo, que antes da Reforma Trabalhista eram submetidas ao crivo, fiscalização e homologação dos sindicatos obreiros sem eficácia liberatória geral, agora poderão ser submetidas ao Poder Judiciário como proposta de conciliação extrajudicial com quitação ampla e irrestrita do contrato de trabalho, desde que preencham os requisitos condicionais enunciados pelo Conselho Nacional de Justiça.

Como dito anteriormente, fica evidente que a medida precisa ser combatida pelos sindicatos de trabalhadores pois não só lhes retira o protagonismo na tutela dos interesses de quem trabalha, mas, sobretudo, estimula a delinquência patronal e o descumprimento de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. A conciliação, nos termos postos, serve, primeiro, a reduzir o custo do trabalho e, segundo, a resolver um suposto problema da Justiça do Trabalho: a excessiva litigiosidade. Mas, e os interesses dos trabalhadores e trabalhadoras?

Da leitura do Voto do Ministro Luís Roberto Barroso nos autos Ato Normativo 0005870-16.2024.2.00.0000, que deu azo à Resolução nº 586 do CNJ, ora em análise, não se infere uma única menção à defesa e à promoção dos Direitos Sociais Trabalhistas como justificativa da decisão.

O silêncio a este respeito escancara os interesses que se pretende atender com esta Resolução, deixando claro que não são os da classe trabalhadora.


[1] RICARDO NUNES DE MENDONÇA. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC/PR. Mestre em “Derechos Humanos Interculturalidad y Desarollo” e Doutor em “Ciencias Jurídicas y Políticas” pela Universidad Pablo de Olavide, Sevilla – España. Professor licenciado de Direito do Trabalho do Centro Universitário Autônomo do Brasil – UNIBRASIL. Diretor de Pesquisa do Instituto Defesa da Classe Trabalhadora – IDECLATRA. Advogado sindical, sócio do GASAM Advocacia, integrante da Rede LADO.

[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Autos: ATO NORMATIVO 0005870-16.2024.2.0000, disponível no site oficial do CNJ para consulta pública. p. 2.

[3] JUSTIÇA DO TRABALHO. Relatório Geral da Justiça do Trabalho, disponível no site https://tst.jus.br/web/estatistica/jt/relatorio-geral para consulta pública.

[4] JUSTIÇA DO TRABALHO (2023). p. 52.

[5] Idem. p. 26.

[6] Idem. p. 25.

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