O ônus da desinformação, por Antonio Machado

Empresário precisa entender que o e-commerce é bem-sucedido não por lidar com importados, mas por conectar o produtor ao consumidor final

O ônus da desinformação

por Antonio Machado

O que ameaça o varejo tradicional não é a importação, mas a união direta do produtor ao consumidor

A polêmica criada pela oposição do varejo, apoiado por parte da indústria de vestuário, à enorme popularização das plataformas de comércio eletrônico chinesas tipo Shein tem implicações muito mais profundas do que sugere a discussão na Câmara, que deu ouvidos às pressões dos lobbies e reinstituiu o imposto de importação sobre as encomendas por pessoas físicas de até US$ 50 por operação.

No fim, as partes se entenderam pela tributação federal – já que a estadual por meio do ICMS com alíquota de 17% é aplicada desde o ano passado -, mas não entenderam a transformação que já aconteceu e é disruptiva para o varejo tradicional. Aliás, grande parte do empresariado ainda supõe enfrentar fantasmas, ao ver na importação e não no varejo eletrônico eficiente o que ameaça o seu negócio.

A matéria foi aprovada esta semana e seguiu para apreciação pelo Senado. Não foi uma votação tranquila. Deu-se sem voto nominal de cada deputado presente, em que o parlamentar não se manifesta, tal o medo da reação do eleitor. A proposta aprovada sem voto veio de uma composição entre os presidentes Lula e da Câmara, Arthur Lira.

Ciente da repercussão negativa dessa medida junto ao eleitorado de baixa renda, maior consumidor das chamadas ‘blusinhas’ vendidas em sites como Shein, AliExpress e a novata Temu, todos da China, Shopee, de Singapura, e Mercado Livre, da Argentina mas com sede fiscal no Uruguai, o presidente Lula arrastou o quanto pôde a iniciativa de restringir por meio da tributação tais importações.

O acordo com Lira levou a Câmara a impor uma tarifa de 20% sobre as importações de pequeno valor por pessoas físicas adicional ao ICMS de 17% já existente, perfazendo uma oneração total de 44,58%. Se o varejo e a indústria fossem atendidos, a tributação chegaria a quase 100%, travando as importações mas não a progressão do e-commerce das plataformas de fora sobre o comércio tradicional.

Escapou ao empresário desinformado a noção de que o e-commerce é bem-sucedido não por lidar com bens importados, mas por conectar o produtor ao consumidor final. Entrega mais à indústria a um preço menor ao consumidor com sobra suficiente para bancar a logística, o meio de pagamento e sua lucratividade. Shein se tornou o maior varejista de moda do mundo assim, vendendo mais do que H&M e Zara combinadas e com dependência mínima de lojas físicas.

Substituição de importadores

A discussão está servindo para abrir os olhos do cidadão, o que terá consequências políticas já que interfere na compreensão sobre os impostos que virão substituir o ICMS, ISS, PIS, Confins e o IPI parcialmente, mais o Imposto Seletivo, criado a pretexto de onerar produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. Não seria mais lógico banir o que é danoso? Seria, mas não é disso que se trata e, sim, de encontrar uma desculpa para o aumento da arrecadação.

“Saímos do modelo de substituição de importações para o modelo de substituição de importadores”, gracejou no X o professor da UNB, Roberto Ellery Jr., referindo-se à oneração das plataformas.

A tributarista Maria Carolina Gontijo, fenômeno pop no X, foi mais ferina: “1) Pessoal descobriu o ICMS ‘por dentro’ (que o faz ter dupla incidência); 2) pessoal está olhando etiqueta e descobrindo que o produto nacional vem da China; 3) governo está comprando uma briga gigante por conta de 2 paçoquitas (R$ 2 bilhões) a mais na arrecadação”. Isso está claro desde o início, mas a indústria não deve visitar lojas de vestuário. Se visitasse, veria que o grosso de roupas e calçados têm etiquetas de países asiáticos.

A expectativa dos defensores da taxação de blusinhas importadas é que o e-commerce estrangeiro desista do Brasil. Esperem sentados.

Chinês vende Made in Brazil

O tema gerou uma pesquisa do professor emérito de administração e marketing digital da Harvard Business School, John Deighton, que a divulgou em abril do ano passado. Merece ser lida com atenção.

Segundo ele, o fato de o modelo surgir na China não surpreende e explica por que Shein e Temu foram concebidos para resolver o que seria um problema. “Desde o fim da década de 1970, quando a China aumentou a sua produção industrial e começou a abrir a economia ao mundo, suas pequenas e médias fábricas lutaram para ter acesso aos grandes mercados consumidores dos EUA e da Europa”, diz ele.

“Os consumidores americanos aceitaram os produtos chineses, mas o faziam sob marcas reconhecidas mundialmente, incluindo marcas próprias de grandes comerciantes como Walmart, Costco e Target. A maior parte desses lucros era revertida para as marcas, e não para os fornecedores chineses.” É o estágio atual do varejo brasileiro, que vai à China suprir os estoques do que vende.

As plataformas de lá fazem o contrário: vieram para cá e passaram a substituir o que ainda importam com artigos comprados, cada vez mais, no Brasil. E fazem mais: usam inteligência artificial para encomendar o que tem probabilidade de agradar ao consumidor, o que significa que ambos, produtor e plataforma, operam sem estoques e, portanto, a própria operação gera o capital giro do negócio. Todos ganham: o produtor, o e-commerce e, sobretudo, o consumidor.

Como as nações prosperam

O que merece muita atenção é que a tecnologia se torna inovadora a partir do momento em que ela produz novos modelos de negócios. É o que as fintechs instaladas em aplicativos de celular fizeram, ao disputar o cliente com as redes de agências de bancos. Ou o iFood e o Uber fizeram com seus aplicativos, representando as inovações criadoras de mercados, portanto, de empregos e novos negócios.

O Uber foi copiado por outros negócios, ampliando e não reduzindo o mercado de trabalho e as oportunidades de logística de entregas. O Airbnb, de habitações, inspirou o Turo, entre outros, de aluguel de carros. Em tais casos, os incumbentes destes mercados tentaram proibir ou dificultar a nova concorrência. Nenhum conseguiu.

Shein já está com 55% de sua receita no Brasil vinda da venda de peças produzidas por micros e pequenos fabricantes brasileiros, e o mesmo deverá fazer o Temu, com sortimento maior de bens.

Eles, como destaca o professor de Harvard, não são só varejistas. “São plataformas pioneiras focadas em tecnologia que estão mudando a própria natureza dos negócios.” Se varejo e indústria fizerem como os bancos em relação ao Pix, que se adaptaram à inovação sem retorno, todos ganham. Ou busquem fazer melhor e os desafiem sendo ainda mais inovadores. É assim que as nações prosperam.

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