Brasil tem tudo para recuperar o atraso digital, por Antonio Machado

A provocação de Musk fará sentido se nos levar a refletir, e a agir. Temos estruturas para fazer mais e melhor, além de gente qualificada.

Markus Spiske – Unsplash

Ideia para viralizar

Brasil tem tudo para recuperar o atraso digital e não ser gato e sapato dos Elon Musk das redes sociais

por Antonio Machado

A campanha aberta pelo misto de empreendedor visionário com bate-bumbo da extrema-direita global Elon “Posso Fazer O Quiser” Musk, conforme definição sarcástica de artigo da Bloomberg, poderá ser boa ao país, não ruim, como parece à primeira vista, se levar à tomada de consciência sobre o nosso brutal atraso tecnológico.

Os posts e vídeos do acionista controlador e executivo principal de empresas bem-sucedidas na fronteira tecnológica – da Tesla (fabricante de carros elétricos), à SpaceX (foguetes), Starlink (satélites de comunicação) e Neuralink (implantes de microchips) -, só reverberam no mundo digital e na imprensa tradicional graças a seu investimento fracassado no Twitter, hoje apenas X.

Com a rede social adquirida por uma avaliação irrealista em 2022 de US$ 44 bilhões, sem nunca ter dado lucro e com receita ínfima, Musk a liberou de qualquer controle de conteúdo de seus usuários.

O que ele fez, quando o valor de mercado do X veio abaixo de US$ 20 bilhões? Reincorporou contas excluídas de notórios movimentos de ódio, conspiracionistas, grupos nazistas e de pedófilos, e até de Donald Trump, empresário farsante que se alçou na política como disseminador de notícias falsas em dimensões siderais.

É uma rede tornada tóxica, vedada na China, submissa a controles na Índia e Turquia, multada na União Europeia. E é tóxica porque o seu modelo de negócios se baseia na “economia da atenção” – quanto mais um post ou vídeo é visto e replicado, maior a sua audiência, a métrica para a venda de anúncios. Todas usam este recurso, só que algumas redes são menos acintosas na busca de atenção que o X.

Musk apelou à barbárie para excitar os algoritmos do X e vender publicidade com isso. Foi assim que tomou as dores de Bolsonaro e seu grupo, movendo campanha de difamação do ministro Alexandre de Moraes, do STF, acusado de tirano, e a alardear que o país vive sob uma ditadura. É o novo, velho cinismo dos oligopólios.

O lamentável é que o Brasil dispõe dos recursos tecnológicos para fazer frente aos sistemas que levam hackers chineses, russos etc. a interferir em eleições, como se provou na Inglaterra e EUA, e a dar asas a picaretas sortidos. Nossos governantes têm de acordar.

X da questão é um Y nacional

Como empresário, o sul-africano radicado nos EUA desde que chegou para se graduar em Stanford é um investidor ousado. Como ativista político, é primário e, a seu modo e para quem gosta, divertido.

Parceiro de longa data e formulador dos planos de negócios de boa parte das investidas de Musk, Peter Thiel, um libertário convicto, não aguentou. Dois anos atrás, disse que se afastara do amigo.

Em se tratando do X, não se põe à mesa o que vem de Musk. Exceção foi a oportunidade que ele deu a nossos governantes e políticos a fazer o que se demanda de modo organizado desde 1994, e por este escriba, na versão digital, desde 2010: a digitalização completa de todos os processos públicos e privados. O analfabetismo digital é impeditivo absoluto para qualquer projeto público e privado.

Como indicou no distante mês de junho de 2017 a Agenda Fiscal do BID, Banco Interamericano de Desenvolvimento: “Os novos modelos de negócios e as soluções digitais disruptivas em plataformas abertas constituem uma grande oportunidade para os países, ao mesmo tempo em que exigem adaptar os atuais mecanismos de gestão tributária e fiscal ao uso intensivo de dados na nuvem, big data, blockchain, data analytics, inteligência artificial e machine learning”.

À exceção de um punhado de atentos funcionários do governo, quase ninguém se interessou. Se tivesse atentado, o X teria um “Y” cujos dados dos brasileiros estariam no Brasil para lhe fazer frente.

Dados digitais são “bem-comum”

Efeitos de rede transformam pequenas vantagens em avalanches. É o que se vê na propagação em ondas nas redes sociais de tolices a granel – os “memes”, expressão para o que viraliza na internet.

Quando empresas estão no controle dos dados, elas guardam com um grande zelo essas vantagens monetizáveis, de modo que fechar uma conta numa plataforma de rede (Instagram, Facebook, YouTube etc.) implica perder milhares de clientes ou seguidores.

É o que explica, em parte, porque o poder econômico, político e tecnológico no mundo se concentrou em poucas e grandes empresas, as bigtechs. Se esta tendência se consolidar, a web acabará ainda mais centralizada, com poucos comandando a inovação tecnológica. E fazendo gato e sapato das instituições dos países em que operam.

Alguns países tentam conter com regulamentação, ações antitrustes e vetos a novas aquisições o poder das bigtechs. O modelo da Ásia, mais pragmático e eficaz, contempla redes abertas e com softwares não-proprietários, sustentado no conceito dos “meios partilhados para muitos fins”, e não fecha a porta para ninguém.

A professora Mariana Mazzucato, no estudo “O que é ‘público’ na Infraestrutura Pública Digital”, chama de “bem comum”. Esse é um caminho aberto ao Brasil. Sabemos fazer. Falta decisão política.

Dica aos líderes distraídos

O Brasil tem tudo para recuperar o atraso digital e fazer melhor que países mais avançados, como Índia e Indonésia. Graças à infra digital, a economia indiana foi a de maior crescimento nos últimos 14 anos e tende ao 5º maior PIB do mundo até o fim da década de 2030 (projeção do Banco Mundial, do Goldman Sachs, do JP Morgan).

Modestos ou distraídos, nossos “líderes” ignoram que um país que tem um meio de pagamento instantâneo como o PIX, toda a população com cadastros em vários bancos de dados públicos e, além disso, possui a maior operação de logística do mundo com os Correios não se pode queixar de agressões digitais de um bilionário doidão.

Prova de que desconhecem o valor perdido pela indiferença digital é que 15 órgãos e ministérios cuidam de tecnologia da informação. “Cuidam” é modo de dizer. Em gestão, mais é menos por definição.

A provocação de Elon Musk fará sentido se nos levar a refletir, e a agir. Temos estruturas para fazer mais e melhor, além de gente qualificada. Como destaca Marc Andreessen, criador do browser de internet e cofundador da empresa californiana de capital de risco Andreessen Horowitz: “Sempre há pessoas excelentes mesmo nos sistemas mais quebrados”. Fica a dica aos cansados de mesmices.

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Redação

1 Comentário

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  1. Threads da Meta (uma gigante) não vingou , tem a Bluesky agora.

    Não é fácil ocupar um espaço com um concorrente consolidado.

    Se for um Y nacional e privado concordo, mas uma rede social estatal me assusta e muito.

    Em termos de tecnologia o Estado brasileiro está atrasado em fiscalização, combate ao crime, educação, medicina e outras coisas.

    Vamos investir grana, gente e tempo em rede social !?

    Desculpa mas discordo.

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