Do racismo e apartheid para sátiras em quadrinhos

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Da OperaMundi

Inspirado em Tintim, quadrinho satiriza racismo na África do Sul pós-apartheid
 
Em ‘Papá em África’, o quadrinista sul-africano Anton Kennemeyer bebe na fonte do famoso personagem de Hergé para representar racismo de brancos de origem europeia contra negros africanos de um modo exacerbado e non-sense

Desde 1992, o quadrinista sul-africano Anton Kennemeyer se dedica a cutucar as feridas abertas pelo apartheid, regime de segregação racial que vigorou em seu país entre os anos de 1948 e 1994. Em “Papa in Afrika”, lançado na África do Sul em 2010, Kennemeyer se inspira visual e tematicamente em “Tintim no Congo”, HQ publicada em 1931. A obra do belga Hergé está há décadas no centro de debates sobre a representação de pessoas negras nos quadrinhos por apresentar o país africano e seus habitantes através do ponto de vista do colonizador europeu.

Em sua obra, Kennemeyer faz algo parecido. No entanto, ao representar o racismo de brancos de origem europeia contra negros africanos de um modo exacerbado e non-sense, o quadrinista tece uma crônica ácida da África do Sul atual, que ainda não resolveu a profunda desigualdade simbólica e concreta entre pessoas negras e brancas que nutriu 46 anos de segregação racial oficializada pelo Estado sul-africano.

Reprodução

Capa de “Papá em África”, edição portuguesa da obra do sul-africano Anton Kennemeyer

O quadrinho de Kennemeyer acaba de ser lançado em Portugal com o título “Papá em África”, pela editora MMMNNNRRRGSamuel reproduz abaixo, com autorização da editora, páginas do quadrinho e trechos do posfácio da edição portuguesa, escrito pelos editores Marcos Farrajota e Crizzze.

“‘Papá em África’ é uma crítica à dominação racial e colonial que atravessa, ainda hoje, em pleno pós-apartheid, a sociedade sul-africana, mostrando como certas estruturas sobrevivem à destruição dos quadros legais que lhes deram origem. Mas não se enganem, não vão encontrar na obra de Anton caminhos ou sonhos para uma ‘nação arco-íris’; nem é oferecida nenhuma reinvenção do lugar do negro nas histórias em quadrinhos ou alguma espécie de ‘herói’ negro da resistência que pudesse ser ‘voz’ da população negra sul-africana, de que Anton, aliás, na realidade não faz parte nem tem a pretensão de ser.”

“O objetivo central de ‘Papá em África’ é pontapear com escárnio e pontaria certeira a hipocrisia e a (má) consciência da África do Sul branca, num pós-apartheid lobotomizado. Anton sampla e critica corrosivamente o imaginário colonialista e racista, como aquele oferecido pelo autor belga Hergé em ‘Tintim no Congo’ (1931), álbum que Anton admite ser a sua Bíblia visual, onde volta sempre para sacar mais uma imagem ou uma sequência narrativa.”

“Numa entrevista o autor adverte sobre o livro de Hergé: ‘eu penso que não é um bom álbum, é mais direcionado para um público infantil. E é aí que o problema reside para mim. Porque se fosse dirigido para um público adulto, ele funcionaria melhor. Mas porque é para crianças, elas vêem os estereótipos e pensam que esses estereótipos são reais. Eu lia o álbum com a minha filha, quando ela era muito jovem, talvez com dois anos, e a certa altura ela me perguntava: ‘o que este macaco está fazendo aqui?’ e eu lhe dizia: ‘Isso não é um macaco. É uma pessoa negra.’ E ela ficava completamente confusa, não conseguia perceber: ‘estes são os macacos!’”

“Esta seleção da obra de Anton, quer como autor de histórias em quadrinhos quer como ilustrador, deveria reavivar todos os ‘traumas’ que o branco, seja ele sul-africano, europeu ou português, tem em relação ao negro, fazendo repensar como a relação com esse outro é constitutiva da própria concepção de si mesmo e de como esses espinhos históricos que são a escravatura, a colonização e a segregação racial estão cravados no convívio e interação social, nas relações político-económicas entre ‘Norte e Sul’ e no próprio capitalismo. A crítica à sociedade sul-africana do pós-apartheid cabe que nem uma luva a países ex-colonialistas como o nosso.”

“Será que a África do Sul desmemoriada do pós-apartheid, criticada por Anton, tem alguma semelhança com o Portugal ‘pós-colonial’ que teima em vangloriar-se dos ‘Descobrimentos’ (veja-se o novo museu inaugurado no Porto, ‘World of Discoveries’, mas também os manuais escolares de história) e de uma colonização ‘branda’ (o dito luso-tropicalismo), sem assumir a sua parte na chaga global que é a exploração e subjugação dos países africanos e dos afro-descendentes onde quer que estes nasçam? Não sejamos ingénuos ou hipócritas, Portugal foi o primeiro e maior traficante de escravos africanos no Atlântico, portanto, um dos maiores responsáveis do chamado ‘holocausto africano’; foi dos últimos países europeus a reconhecer a independência das suas colônias em África.”

“Se os portugueses puderam até aqui ‘fechar os olhos’ e ‘fazer ouvidos moucos’ às históricas trapaças portuguesas no Ultramar, eis que com o acelerar da globalização, com o desnorte português e europeu e com a progressiva ascensão a potências mundiais do Brasil (onde o movimento negro e afro-cultural tem peso) e de Angola (onde as chagas da colonização e da guerra são grandes), a história fará rewind e vir-se-á chapar na nossa cara.”

Imagens e texto publicados originalmente no site da editora MMMNNNRRRG.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

4 Comentários

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  1. Outros quadrinhos que

    Outros quadrinhos que poderiam ser alvos de discussões sobre o tema eram os dos famossíssimos nos cinquenta “Os sobrinhos do Capitão”. As histórias se passavam numa iilha colonizada não sei se por belgas ou alemães, numa fazenda onde haviam os personagens Hans e Fritz, os mais radicais moleques que já se viu em todos os quadrinhos, dona Chucrutes, o Coronel e o Capitão, a professora dona Josefina, o almofadinha e sonso Lilico, preferido de dona Josefina e inimigo dos sobrinhos e a Beatriz, que ora era amiga do Liilico ora era amiga dos sobrinhos. Entre outros negros que de vez em quando apareciam, o rei da ilha era um que estava sempre de tanga de palha, amparado por um guada-chuva furado, fumando charuto e com uma cartola quebrada na cabeça. Jogava cartas (escondido, jogo e ácool eram proibidos por dona Chucrutes) e bebia sidra (também escondido) com o Capitão. Ganhava sempre. 

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