A teoria evolucionista à luz da realidade da morte física

A teoria evolucionista à luz da realidade da morte física

A maioria dos organismos unicelulares e alguns dos pluricelulares reproduzem-se por repartição simples, ou seja, sem troca de material genético entre parceiros de sexos diferentes. É uma espécie de linha de montagem biológica na qual o novo é a exata repetição genética do antigo. Num certo sentido, esses organismos microscópicos serão eternos pelo menos enquanto se reproduzirem. Não morrem. Entretanto, têm uma desvantagem em relação aos mortais: nada criam a partir de si mesmos, assim como do ambiente, ao contrario dos organismos sexuados que criam a partir deles novas criaturas também criadoras, em alguma medida diferentes dos pais.

Portanto, a morte parece ser uma conseqüência necessária da evolução sexuada pois, sem ela, não poderia haver criação indefinida de novas espécies macroscópicas. Atualmente, estima-se que existam no mundo 1 milhão 750 mil espécies; contudo, desde o início da vida até hoje, calcula-se que tenha havido 1 bilhão. Sem a morte individual, essa proliferação de espécies criadas pela evolução não seria possível já que todos os nichos biológicos estariam saturados muito antes do 1 bilhão. Isso reforça a conclusão acima de que a morte é essencial para a evolução. A evolução, por sua vez, é a expressão do prazer sexual que é fundamental à função criativa dos sexuados.

Morte e prazer andam emparelhados nas tragédias gregas e também em Shakespeare. A poesia universal está repleta de “desejo de morte”. Alguns seres, como os zangões, morrem no ato sexual. Na arte ou na vida, são situações extremas, que, entre homens e mulheres, desvirtuam o processo criativo ou o bloqueiam em razão da ruptura do equilíbrio entre impulso ao prazer individual e impulso ao prazer da procriação, nesse caso o prazer da realização do novo. Há também a ruptura do equilíbrio pelo lado oposto: os obcecados por criar, que se esquecem de amar; e os que apenas amam, sem cuidar de criar.

Essa reflexão deriva diretamente da discussão que temos tido neste blog sobre evolucionismo e criacionismo. Entendo que a mesma dificuldade que o evolucionismo tem para explicar a origem da vida se aplica à justificação da morte. Se fôssemos apenas uma combinação específica de elementos químicos que adquiriram propriedades replicadoras através de um complicadíssimo processo de trocas genéticas, sem um propósito, não teríamos preocupação em criar uma prole mas estaríamos focados exclusivamente em nossa preservação individual, como amebas. Isso talvez corresponda ao gene egoísta de Dawkins, mas não à complexidade do gene humano que tem elementos simultâneos de defesa individual e da espécie.

Elementos químicos não morrem, a não ser por decaimento radioativo durante  décadas, séculos ou milênios. Por que morremos nós? Obviamente, porque somos diferentes de um grupo de elementos químicos. Temos vida. Não há propriamente uma definição de vida aceita universalmente, mas todos sabemos aproximadamente o que é. E não é apenas algo que, surgindo do acaso, adquiriu fantásticas propriedades replicadoras com a faculdade de transformar em ações volitivas do ser humano energia retirada da natureza. Morremos porque a morte é um estímulo à criação, já que a sobrevivência garantida num ser eterno convidaria à indolência.

Não pensem com as categorias de hoje. Pensem o será o mundo daqui a cem, duzentos, quinhentos anos. Claro que sempre há a possibilidade de esta geração nos levar à extinção por uma guerra nuclear insana, ou por outros meios de destruição em massa. Porém, desde que isso não aconteça, as perspectivas são animadoras. Não existe mais um país hegemônico no mundo que possa determinar por conta própria uma nova ordem econômica, ambiental, geopolítica, científica, política. Passamos por crises profundas nessas áreas, mas sua solução, quando vier, terá de vir necessariamente por acordo e cooperação.

A democracia está se consolidando em todo o mundo não obstante deficiências que ainda existem. Mas estamos progredindo: basta comparar a situação institucional de hoje com a de 50 ou 100 anos atrás. Há um compromisso crescente nos países com a eliminação da miséria, o combate ao trabalho escravo, a defesa do trabalho decente, o combate à corrupção, a luta contra o desemprego e a discriminação de raça, religião, sexo. O neoliberalismo, que se apoia na ideia da liberdade individual ilimitada, sem consideração do outro, foi colocado na defensiva pela crise. Tudo isso implica contrariar pesados interesses das elites tradicionais, mas, se houver paciência e respeito aos princípios da democracia de cidadania ampliada, as coisas tendem a melhorar, e não a piorar.

Nesse quadro, a criatividade humana terá espaço para se expandir de forma quase ilimitada, estabelecendo condições de convivência humana mais eqüitativas e justas. É claro que não precisamos esperar 50 anos a fim de começar a trabalhar para chegar a esse ponto. Alguns países nórdicos da Europa já chegaram lá há muito tempo. Naturalmente, a generalização de novos paradigmas de vida, dentro de um capitalismo regulado, para incluir regiões como África, América Latina e Ásia terá de levar algum tempo. Mas não necessariamente muito tempo.

Por outro lado, a explosão de criatividade humana terá o efeito de estender o tempo para as novas gerações. Eu “terei vivido” muito mais que meus pais, independentemente do tempo biológico, porque sou testemunha de tremendas transformações no meu tempo que eles não viram; e as novas gerações “viverão” muito mais que eu, tendo em vista sua própria criatividade. É que é a vontade de criar, nas artes e na vida cotidiana, não a vontade de poder de Nietsche, que move a evolução e o mundo. Para criar, é preciso construir o novo. E para construir o novo, inclusive novas instituições mais adequadas aos novos tempos, o velho deve morrer.

Insista-se que a justificação da morte individual em favor da sobrevivência e expansão da espécie decorre do fato de que a morte é a contrapartida necessária da diversidade biológica: vida eterna individual, de um ponto der vista filosófico, é incompatível com os mecanismos biológicos que produzem a diversidade e novação de espécies  no mundo observada ao longo de eras. Mas o que dizer do destino individual depois da morte? Há uma sobrevivência de algum aspecto do indivíduo à morte física?  Não é uma pergunta  a que se possa responder cientificamente, e nem mesmo filosoficamente. Pertence ao campo da Metafísica.

Na “Fenomenologia do Espírito”, Hegel conduz seu processo dialético do espírito no sentido de sua extinção como síntese final. Em matéria de Metafísica, porém, dou preferência ao grande repositório de sabedoria há milênios, os Vedas. A Metafísica hindu postula um ser supremo, o Absoluto ou Atman, que se replica como Atman individual na psicologia de cada ser humano. Na morte, o Atman individual é recolhido ao Absoluto, como braços de água que voltam a uma lagoa. No entanto, como na Índia é possível acreditar em tudo, e também no seu inverso, há controvérsias quanto ao destino do Atman individual: uma corrente acredita que ele perde a individualidade e se confunde com o Absoluto; outra, que de alguma forma conserva sua individualidade espiritual. Metafísica por metafísica, esta última é a que me dá mais conforto.

*Economista, professor de Economia Internacional da UEPB, autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus”, ed. Civilização Brasileira.

Luis Nassif

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