Desde o Projeto Guri, a consciência da função social do artista, por Arnaldo Cardoso

A violonista paulista de 23 anos Gabriele Leite, no contexto da atual pandemia, reflete sobre as conquistas já acumuladas

Desde o Projeto Guri, a consciência da função social do artista

por Arnaldo Cardoso

Olhando para o caminho já percorrido desde os primeiros acordes no Projeto Guri, passando pelo Conservatório de Música de Tatuí, bacharelado na Unesp e atualmente o mestrado na Manhattan School of Músic, a violonista paulista de 23 anos Gabriele Leite, contexto da atual pandemia, reflete sobre as conquistas já acumuladas, alterna horas diárias de estudo com a produção de pequenos vídeos de execuções ao violão que são postados nas redes sociais para manter o contato com seu público, trocar ideias e experiências com amigos da música.

Com vários projetos em compasso de espera, Gabi – como é chamada pelos mais próximos – falou nesta segunda parte de sua entrevista para o Jornal GGN sobre a experiência de cursar o mestrado (em módulo online) numa universidade norte-americana; o aprendizado com o professor-orientador Mark Delpriora; o conceito de “performance historicamente informada” e o lugar da arte engajada; a função social do artista; racismo e diversidade no Brasil e o desejo de se envolver em projetos sociais que promovam a educação musical em nosso país.

AC – Se não fosse a pandemia, em 2020 você teria se mudado para Nova York para cursar seu mestrado na MSM. O ano de 2020 nos Estados Unidos foi um ano conturbado, marcado pelo assassinato de George Floyd – cidadão negro morto por policiais brancos – que desencadeou uma onda de protestos por todo o país liderada pelo movimento Black Lives Matter e, em novembro, a tumultuada eleição para sucessão presidencial. Como você viu esses acontecimentos em 2020 nos EUA?

GL – Um turbilhão de acontecimentos nos EUA marcou 2020 e fez com que mundialmente se discutisse mais, particularmente no Brasil, problemas como o racismo, privilégios, sobre o lugar de fala das pessoas. Considero muito importante a discussão sobre diversidades e a disposição em compreendê-las. É fundamental escutar o outro.

AC – Na Manhatan School of Music você tem um professor orientador/tutor? Como tem sido esse relacionamento?

GL – Na Manhattan School eu estudo sob orientação do professor Mark Delpriora, que é um excelente professor de violão e uma pessoa incrível, que compartilha com seus alunos suas experiências como a master class com o mestre espanhol Andres Segovia (pai do violão erudito).

Mark é um professor excelente e eu só tenho a agradecer a oportunidade de aprender com ele.

AC – A pandemia tem exigido de escolas pelo mundo o incremento de uma oferta de atividades online aos estudantes. Com a MSM não é diferente e exemplo disto é a agenda de atividades para fevereiro em comemoração ao “Mês da História Negra.” Você tem participado destes eventos online? Eles têm sido proveitosos?

GL – Os eventos da MSM são excelentes e sempre propiciam muito aprendizado. Uma coisa muito bacana que acontece no semestre da primavera é a exigência de que os recitais tenham ao menos uma obra de compositor ou compositora afrodescendente. Isso é muito importante pois quebra uma conhecida hegemonia de músicos brancos. Isso demanda um trabalho de pesquisa dos estudantes que faz pensar sobre questões de representatividade de raça e gênero na música. No Brasil, onde mais da metade da população é negra quantos são os negros na música clássica do país? É preciso pensar sobre isso.

AC – Particularmente no tocante ao racismo, que avaliação comparativa você faz sobre a situação dos negros nos Estados Unidos e no Brasil?

GL – Eu penso que a primeira coisa a ser considerada é a forma como o brasileiro de modo geral vê os Estados Unidos e seu povo e como veem a si mesmos. Há no Brasil uma atitude de não levar a sério determinadas práticas e preferir transformá-las em sátira, mesmo sendo muito sérias. Diversas vezes já ouvi de pessoas pretas que nunca sofreram racismo e, muitas delas, não se perceberem como um corpo preto na sociedade. Muitas dessas pessoas sofrem problemas econômicos e não associam a isto a sua raça. Acredito que nos Estados Unidos há uma maior consciência dessas questões. Já ocorreram avanços no Brasil, mas é preciso que continuem. A educação precisa tratar do apagamento das lutas do povo negro e de seus ancestrais trazidos para o Brasil.

AC – Um campo de estudos que na segunda metade do século XX avançou bastante é o que investiga as relações entre arte e política e que, na Sociologia teve expoentes como o alemão Theodor Adorno que migrou para os Estados Unidos e produziu uma rica obra, discutindo entre outros temas, a música popular e a indústria cultural. Um dos desdobramentos desses estudos reflete sobre a arte engajada. De modo geral qual é a sua opinião sobre a questão da arte engajada? Se considerarmos a arte uma realidade social, você reconhece a responsabilidade social do artista?

GL – A arte engajada cresce ao mesmo tempo em que muitos produtos de entretenimento são criados e consumidos sem qualquer preocupação com sua profundidade. O mercado trata tudo isso como nichos.

A arte engajada reflete a realidade social vivida e sentida pelo artista, para quem ele está produzindo, aonde sua arte chegará.

Na minha formação em música os projetos sociais tiveram muita importância, eles permitem que barreiras sejam transpostas. Eles modificam o perfil elitizado da música clássica, instrumental. A função social do artista se realiza com o apoio de instituições e organizações abrindo frentes para o acesso à educação musical e o contato com a música.

AC – Num país injusto e desigual como o Brasil, você considera que a arte pode desempenhar um papel para uma mudança social?

GL – Sem dúvida a arte pode e produz mudanças. Quantas pessoas saíram de lugares sem nenhuma perspectiva de vida e que hoje vivem da arte, se apresentam em grandes salas de concerto, portanto vejo a arte como algo libertador, cujo principal combustível é a criatividade.

Acredito que os projetos sociais dedicados à promoção da música criam um movimento que tende a ficar cada vez melhor. A arte deveria ter mais espaço na vida contemporânea.

AC – Você continua integrando o quarteto Abayomi (Encontro feliz)? Em caso afirmativo, como está a agenda do quarteto nesse contexto de pandemia?

GL – Sim, eu continuo fazendo parte do quarteto Abayomi. Em 2020 nós estávamos finalizando a produção de um cd mas o contexto da pandemia impediu que finalizássemos esse trabalho. O grupo se apresentou para um canal de tv local e tem convite para uma apresentação em Santa Catarina e negociar um projeto com o Sesc, mas tudo fica condicionado à situação da pandemia.  Nós sentimos muita falta dos encontros entre os membros do quarteto. Temos realizado algumas inserções nas mídias sociais.

AC – Além de promover a música brasileira no cenário nacional e internacional você considera a possibilidade de se envolver em projetos sociais no Brasil que tenha a música como ferramenta de trabalho?

GL – Um dos meus sonhos é desenvolver um projeto social pois foi de um deles que eu saí e a partir disso o mundo se abriu para mim. Eu quero muito contribuir com o meu país, com o seu desenvolvimento social, que precisa ser alimentado permanentemente.  

AC – Tendo em perspectiva o conceito de  “performance historicamente informada” como você quer que a sua trajetória e trabalho sejam compreendidos no futuro por estudantes de música?

GL – Pergunta difícil. Eu penso que o que de mais importante os estudantes de música devem ter sempre presente é que, antes mesmo de músicos somos seres humanos, inseridos em uma sociedade, e isso requer um olhar sempre atento ao seu entorno. Minha vivência dos últimos dez anos tem me ensinado a me perceber primeiro como cidadã, integrante de uma realidade social, para depois me ver como artista.

Meu maior desejo é que as novas gerações continuem fazendo arte conectada com suas experiências e contextos sociais.

Arnaldo Cardoso é sociólogo e cientista político.

Redação

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