Os significados da vitória de Macri na Argentina, por Wagner Iglecias

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Wagner Iglecias

Cristina Kirchner deixa a presidência da Argentina com cerca de 50% de aprovação a seu governo. No entanto isso não foi suficiente para que conseguisse fazer com que seu correligionário Daniel Scioli, ex-governador da província de Buenos Aires, alcançasse a Casa Rosada. O kirchnerismo, iniciado com a presidência de Néstor Kirchner, em 2003, e encerrado com a derrota apertada para o direitista Maurício Macri, neste domingo, acumulou muitos êxitos: conseguiu reestruturar a dívida externa do país, após a quebra completa da economia argentina entre 2000 e 2002; criou políticas sociais destinadas à diminuição da pobreza; recuperou o poder de compra dos setores médios e ampliou o mercado doméstico; reestatizou empresas públicas privatizadas a preços módicos como a petroleira YPF, a Aerolíneas Argentinas, o sistema de transporte ferroviário e o setor de previdência social; promoveu uma política externa mais ativa e altiva que seus antecessores, apostando na integração latino-americana, na diminuição da dependência em relação aos EUA, no impulso à Unasul e nas relações Sul-Sul; reviu a lei que anistiava os crimes contra os Direitos Humanos praticados durante a última ditadura militar (1976-1982); propôs, para financiar políticas sociais aos mais pobres, uma maior tributação dos mais ricos e dos setores que ganharam muito dinheiro com a exportação de commodities; e aprovou legislação visando desconcentrar a propriedade dos meios de comunicação até então nas mãos de dois ou três grupos econômicos.

O kirchnerismo disputou a sua sucessão com Scioli, um candidato oficialmente kirchnerista, mas na prática um tanto distante do projeto político representado por Néstor e depois Cristina. Pacato, pouco carismático, defendendo sem grande entusiasmo bandeiras importantes, mas consideradas já insuficientes por parte do eleitorado argentino, em especial os mais jovens, Scioli viu um repaginado Maurício Macri quase supera-lo no 1º turno e finalmente derrota-lo na rodada final. E isso mesmo com uma união de última hora de diversas correntes peronistas em torno de seu nome.

Com o fracasso de Scioli e também de Cristina, podem ganhar força nos próximos anos as correntes não-kirchneristas do peronismo, como a representada por Sergio Massa, terceiro colocado na eleição presidencial com pouco mais de 20% dos votos no 1º turno. Ao que tudo indica o eleitorado de Massa dividiu-se no pleito final entre Macri e Scioli, e agora cabe a ele, Massa, avaliar se vale a pena compor com o novo presidente no Congressso, onde Macri terá maioria apertada na Câmara e minoria no Senado, ou se o melhor é esperar por eventual fracasso do novo governo e reapresentar-se ao eleitorado dentro de quatro anos como uma terceira via entre o kirchnerismo e o neoliberalismo puro apresentado em nova embalagem nesta eleição na figura de Macri.

E por falar em Macri, o que poderá ser o governo dele? É importante notar que com ele a direita argentina chega ao poder após muito tempo pelas urnas, e não por meio de um golpe militar. Tudo bem que Carlos Ménem, presidente do país na década de 1990 fez um governo neoliberal, mas ao menos era do Partido Justicialista (peronista) e em sua campanha eleitoral no longínquo 1989 apresentou uma plataforma política progressista. Com Macri não é assim. Seu partido, o Cambiemos, que faz parte da coligação Proposta Republicana (PRO), buscou apresentar-se nesta eleição como uma novidade, mas defendeu uma plataforma política de direita e teve como aliado a União Cívica Radical, mais antigo partido político argentino em atividade, fundado em 1891. Macri, cuja família enriqueceu durante o último ciclo militar (1976-1982), esteve inclusive próximo a Ménem nos anos 1990, presidiu o Boca Juniors e foi prefeito de Buenos Aires. Não é um novato, portanto. E por mais que tenha um discurso modernizado, é um político tradicional da direita argentina, e deverá implementar um clássico pacote de medidas cujas consequências mais duras deverão cair sobre os setores populares e a classe média.  A Argentina deverá encarar no curto e médio prazos um duro ajuste das contas públicas, a desvalorização cambial, cortes nos gastos e investimentos estatais, nova rodada de abertura comercial, alívio tributário para os setores exportadores e um reordenamento da política externa do país. Não se pode dizer que esteja totalmente descartada uma nova rodada de privatizações de empresas estatais. Provavelmente muito disso vai depender da capacidade de resistência dos segmentos populares e dos setores progressistas do país.

Em termos de política externa é importante lembrar que o Brasil, principal parceiro comercial de Buenos Aires, é um vizinho do qual a Argentina não pode abrir mão. Macri já anunciou inclusive que sua primeira visita oficial já como presidente será a Brasília. Assim como a Argentina é hoje muito dependente das exportações para a China e dos investimentos chineses para se dar ao luxo de esfriar as relações com Beijing. Mas muito provavelmente o país não cerrará mais fileiras, como ocorreu durante os anos Kirchner, com vizinhos governados por forças de esquerda como Bolívia, Equador, Cuba e Venezuela nas iniciativas de integração regional latino-americana e no fortalecimento da Unasul. Pelo contrário, não será surpresa se Buenos Aires aproximar-se, a partir do próximo ano, dos países da região mais restritos à órbita de Washington, como Chile, Peru, Colômbia e México, e caminhar em direção à Aliança do Pacífico. Em relação especificamente ao Mercosul, o novo governo argentino deverá defender que a Argentina possa estabelecer acordos bilaterais com outros países ou outros blocos econômicos sem que pra isso precise estar acompanhado dos demais países-membros (Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela). E deverá inclusive trabalhar para que a Venezuela seja suspensa ou mesmo expulsa do bloco, por conta da Cláusula Democrática do Mercosul e a questão dos presos políticos mantidos pelo governo de Caracas.

No plano da política doméstica, ainda que não conte, por ora, com maioria no Congresso, Macri terá consigo os governadores das quatro maiores províncias do país. Não é algo de menor importância um presidente argentino ter sob controle de aliados o governo da província de Buenos Aires e também a prefeitura da capital do país, como vai ocorrer a Macri. A movimentação das diversas correntes peronistas de aproximação ou de afastamento em relação a seu governo nas próximas semanas e meses dirá se ele terá maior ou menor dificuldade em governar. A Cristina Kirchner, que parece nunca ter abraçado com o entusiasmo necessário a candidatura do derrotado Scioli, caberá observar o que se passará na Argentina nos próximos quatro anos. No caso de eventual fracasso de Macri, poderá ressurgir candidata como ressurgiu sua colega chilena Michelle Bachelet, que teve seu candidato Eduardo Frei derrotado em 2010 por um direitista como Macri, Sebastian Piñera e quatro anos depois, diante do fracasso das medidas neoliberais deste, foi reconduzida ao poder pela vitória nas urnas.

Sobre a vitória de Macri, um último ponto a ressaltar: trata-se da vitória de um marketing eleitoral inovador, cada vez mais presente em toda a América Latina e inventado e crescido nas brechas dos erros dos governos progressitas. Embora não seja tão jovem, Maurício Macri é da lavra de líderes de direita jovens como o Enrique Peña Nieto (México), Aécio Neves (Brasil), Capriles Radonski (Venezuela), Mauricio Rodas (Equador), Carlos Calleja (El Salvador) etc. Vende para a sociedade uma conjugação de sinais favoráveis à mudança (não a toa seu partido se chama Cambiemos), valorizando inclusive algumas conquistas sociais ocorridas sob os governos de esquerda, com valores típicos da direita liberal, como o individualismo, a meritocracia, o dinamismo, a jovialidade e o sucesso na vida pessoal e no mundo empresarial.

Levando-se em conta a provável derrota eleitoral de Nicolás Maduro na eleição parlamentar da Venezuela, dentro de alguns dias, e as imensas dificuldades que está enfrentando o governo Dilma, no Brasil, a Argentina de Macri poderá estar inaugurando um novo período histórico na região, com o pêndulo político que levou o país e alguns de seus vizinhos para a esquerda nos últimos quinze anos voltando-se agora para a direita e caminhando novamente em direção a Washington. A conferir.

Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades e do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

16 Comentários

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  1. Ou ele faz um bom governo ou Cristina Volta
    gostei di post.

    Para mim está claro: ou faz um bom governo tratando não penalizar os setores populares ou Cristina volta nos braços do povo. O problema é faze a omelte sem quebrar os ovos.

    Apesar de já ter decaido muito a educação politica do argentino é ainda muito superior a nosso.

    Lá um Aecio uma Marina ou Dilma não teriam vez.

  2. Meus Pêsames

    Meus pêsames, Argentina. O “Aécio agentino” vai consiguir mesmo cambiar,  só que infelizmente para pior, conforme sua agenda politica “neolibers”. Pode ser cedo para afirmar, tomara que esteja errado, mas é um sinal de alerta para os governos de esquerdas e progressistas da América Latina, principalmente o Brasil.

    Já pensaram se o Brasil tivesse na unha do Aécio, agora juntamente com Macri (Aécio argentino) como parceiro??? Seria o melhor dos mundos para os EUA, porque voltariamos aquela antiga condição de quintal ianque, simplesmente meros coadjuvantes no palco da politica internacional. 

    Voltando-se a estaca zero.

  3. A volta da direita na América do Sul

    Exatamente, tenho a mesma leitura. Mal o continente sul-americano foi para a esquerda, ja estamos vendo o pêndulo voltando-se pouco à pouco para a direita, depois de uma luta ideologicamente desonesta, com a participação dos americanos do norte. Alias, Jesse Souza, na entrevista do Brasilianas, sintetiza muito bem o dominio da elite brasileira em todos os dominios da nação e isto, desde que o Brasil é Brasil.  

  4. Ele pode até sair nas

    Ele pode até sair nas próximas eleições, mas antes vai pedir a expulsão da Venezuela do Mercosul por violar as cláusulas democráticas…

  5. Os chilenos elegeram a

    Os chilenos elegeram a direita para suceder Bachelet, na primeira oportunidade que tiveram a trouxeram de volta. Na hora em que o povo argentino começar a perceber o tiro que deu no próprio pé, vai se arrepender, por mais que a mídia golpista deles tente tapea-los.

  6. Esperem comitivas da oposição fazendo tour

    Os reaças vão ver no novo presidente um ícone da boa governança e a impreça podera mentir que é verdade sem que ninguém tenha direito de resposta.

    De qualqur forma, esperar que ele seja surpresa positiva.

  7. Antes lá do que cá. Então, se

    Antes lá do que cá. Então, se ele chegar “fumegando” no “cangote” dos mais desprevenidos, em 2016, 2017 e 2018, poderá – ao contrário – ajudar na eleição do Lula por aqui. Mesmo que os piguentos friquem apregoando o “sucesso” macrístico entre os hermanos. Se ele “feder” a Argentina, o Lula ganhará no primeiro turno.

  8. Fantástico ver essa galera

    Fantástico ver essa galera totalmente alienada achando um “retrocesso” a eleição de um opositor na Argentina. O peronismo, em todas as suas vertentes inclusive a atual, tem feito a Argentina andar pra trás há décadas. Mas por alinhamento ideológico tosco, a galera aqui acha que houve algo de bom na década kirchner.

     

  9. Prenúncio

    Isto é um prenúncio de 2018. A América Latina está sendo envolvida por uma onda de conservadorismo e direitismo. Ontem foi o Paraguai, hoje é a Argentina. Chile, México, Peru, e colômbia já são a muito tempo.

    Isto não é um retrocesso, ou golpe, mas uma reação do povo à governos que se elegeram pela esquerda, e praticam políticas de direita, como os juros altos. Se demorassem mais para alternar o poder, daqui a pouco as esquerdas assumiriam abertamente a política neoliberal, esta guinada é um “sacode” do eleitor para a esquerda acordar.

    Se a esquerda na Argentina, não conseguiu  eleger um sucessor  tendo 50% de aprovação, então sobre a Dilma que tem 7% de aprovação, é bom nem comentar.

    Se Dilma não mudar o rumo, continuar adulando rentistas, em 2018, o PT já sabe o que o espera.

  10. Foi um ganho da mídia, que

    Foi um ganho da mídia, que fez lá a mesma coisa que a nossa faz aqui. Já está circulando análises sobre a nova onda global midiática, depois da venda das empresas de comunicação do Nizan Guanaes. Não há mais jornalismo com credibilidade, como haveria uma imprensa nacional? Temos que prestar  ainda mais atenção não ao que vai acontecer no futuro governo argentino, mas o que pode acontecer aqui. Se a política já não é a mesma, se as relações internacionais estão enfiadas no mesmo buraco da crise econômica, só poderemos ter certeza apenas de uma coisa. Nada é previsível no momento.

  11. Fracasso?

    Este Scioli não sei, mas Cristina F. Kirchner só colheu retumbantes sucessos em seus governos que foram continuação dos igualmente históricos governos de Néstor Kirchner. Cristina, a maior estadista latino-americana da história, teve a coragem que outros presidentes de toda a América não tiveram: atacar os interesses, até então intocáveis, da plutocracia e dos oligarcas. Foi sob os governos Kirchner que os militares e civis que cometeram crimes hediondos na sangrenta ditadura argentina foram julgados, condenados e presos, algo impensável em outros países que sofreram do mesmo mal. Colocou os Direitos Humanos e Sociais acima de todos os outros direitos, nacionalizou empresas estratégicas, regulou a mídia, lutou contra os fundos abutres provocando até uma resolução da ONU para proteger todos os países contra a selvageria ultracapitalista, seu marido equacionou de forma genial a parte legítima da dívida que encontrou de governos passados, enfim Cristina é uma vencedora e espero muito que ela retorne nas próximas eleições. A minha vontade era ser cidadão argentino só pra votar nela.

  12. Macri

    Embora popular Cristina entrega o Governo com 30% de inflação, apenas 28 bilhões em reservas, um Estado totalmente aparelhado e um enorme nível de corrupção. Governo personalista e caricata.Quando será que nossa “esquerda” latino americana vai perceber que a pobreza regional ê fruto do populismo barato? E parece que o articulista está triste com o acerto fiscal que vem por aí . Será que não percebe, ou não sabe, que se isso não for feito o país quebra? 

    1. Quando será que a direita vai

      Quando será que a direita vai perceber que a pobreza regional é fruto da exploração desenfreada praticada pelas elites nacionais e países centrais contra as populações locais, e não a um conceito abstratado como o ‘populismo’? Seria populismo garantir condições dos mais pobres não morrerem de fome?

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