A Revolução Não Veio, por Nadejda Marques

Ao longo dos anos, o feminismo americano foi marcado por um forte sentimento de pertencimento a um grupo e uma causa. Esse pertencimento se dissolveu nas últimas décadas.

A Revolução Não Veio

por Nadejda Marques

No início de maio deste ano, quando vazou a posição da Corte Suprema dos Estados Unidos de reverter a decisão de Roe v. Wade que garante o direito ao aborto a nível federal, criou-se a expectativa de que haveria uma enorme mobilização feminista e que pessoas comprometidas com os direitos das mulheres tomariam as ruas influenciando a política do país. Mas, não foi bem assim. Houve certa mobilização à época do vazamento e também na semana passada quando, de fato, a Corte Suprema reverteu Roe v. Wade, mas nada nem de longe ao nível que se esperava. Os protestos de hoje não se comparam em números às demonstrações da Women’s March de janeiro de 2017 e muito, muito, menos ao que se viu com os protestos do Black Lives Matter em 2020. A revolução não veio.

Há dois anos, a sociedade americana tinha sede de mudança. Tanta coisa parecia possível e, se não era possível, o consenso era que valia-se a pena tentar. Hoje, a reação que se vê contra intensos ataques anti-feministas é meramente modesta. Ativistas e simpatizantes da causa feminista estão exaustos. Quatro anos de governo Trump forçaram o ativismo feminista a ser um movimento defensivo. Lutando pela sua sobrevivência, para garantir conquistas históricas e contra ataques incessantes, o movimento adotou uma postura que exigia medidas sempre urgentes. Medidas que quando não alcançadas geram frustração, esvaziam o movimento e dão a impressão de estagnação. É o ativismo volátil que junta pessoas em momentos de crise, mas que logo depois se dispersam. Soma-se a isso, mais de dois anos de pandemia e ataques intensificados da extrema direita que ganha força e adeptos sobretudo entre jovens. Várias mulheres americanas que há cinco ou dez anos atrás se consideravam feministas, agora não mais se dão o trabalho.

Ao longo dos anos, o feminismo americano foi marcado por um forte sentimento de pertencimento a um grupo e uma causa. Esse pertencimento se dissolveu nas últimas décadas. A importância do ganho individual supera a do ganho coletivo. A causa se torna um modismo. São vários os exemplos na cultura pop que ilustram essa transformação, de Beyoncé à Teen Vogue. Mas, talvez o exemplo mais icônico seja o livro da Sheryl Sandberg, ex-COO da Facebook, “Lean In: Women, Work and the Will to Lead” consagrando a ideia de que a desigualdade de gênero não seria um problema sistemático e institucional generalizado e que poderia ser contornado com ações individuais. De fato, a ascenção profissional e econômica individual e não a criação de uma nova estrutura política sócio-econômica mais igualitária passa a ser o indicador dessa expressão pseudo-feminista ou o chamado “feminismo de auto-ajuda.” Nesse modelo, se uma mulher não alcança o sucesso desejado é porque não se esforçou o suficiente, não se arriscou o suficiente, não foi assertiva o suficiente, não fez networking suficiente. Enfim, a culpa é sua! Não é à toa que muitas mulheres optam por se distanciar desse tipo de feminismo. Estão exaustas.  

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Combater ataques anti-feministas é ainda mais difícil quando não há apoio político. Que os Republicanos adeptos a crenças e sentimentos reacionários se opunham às feministas não é surpresa, mas que muitos Democratas estejam entre os que atacam os ideais feministas é mais do que surpresa, é uma traição. No Texas, Henry Cuellar, candidato Democrata anti-aborto radical, ganhou as primárias de maio contra uma candidata democrata feminista favorável ao direito ao aborto, Jessica Cisneros. Sua vitória se deu com forte apoio da elite do partido Democrata e empenho pessoal da Presidente da Câmara, Nancy Pelosi. 

Barak Obama em sua primeira campanha presidencial prometeu que codificaria o direito ao aborto. Dois mandatos completos e nada. Para os Democratas a ideia de diversidade e igualdade de gênero é um discurso político interessante que rende votos e muitos dólares. Enquanto a questão não se resolve pode e é usada como bandeira do partido. Inclusive, depois da decisão que reverteu Roe v. Wade, muitos candidatos e campanhas eleitorais Democratas se apressaram em solicitar doações aos eleitores para combater o mal que eles mesmo viabilizaram. Não sei se terão sucesso. Promessa de político que não se cumpre, cansa.

A reversão do direito ao aborto a nível federal nos EUA não afeta a todas as mulheres de forma igual. São as mulheres pobres, negras, imigrantes, em estados mais pobres e zonas rurais que serão as mais afetadas. As medidas de apoio ao direito ao aborto de todas as mulheres anunciadas por alguns estados como a Califórnia, o estado de Washington e Oregon, algumas empresas como a Dicks Sporting Goods, Estee Lauder, Amazon, Microsoft e alguns bancos são importantes, mas não são substitutas para uma resposta do governo federal, do Congresso Americano (enquanto tem maioria Democrata) e do Presidente Biden. A sociedade espera que seus representantes defendam seus direitos. Mas esperar por Biden… como cansa.  

Nadejda Marques é escritora e autora de vários livros dentre eles Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício e a autobiografia Nasci Subversiva.

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