O procurador pastor e a desmoralização do Direito, por Lenio Streck

ministerio-publico-do-ms-coagiu-pais-a-irem-em-palestra-de-pregacao_0.jpg

Foto: Reprodução

Do Conjur

O que o procurador pastor tem a ver com a desmoralização do Direito?
 
Lenio Streck

Parece que vivemos o apocalipse zumbi-jurídico (vejam — zumbis sempre estão em busca de cérebros; em alguns lugares do Direito morreriam de fome…, como sugere o brilhante filósofo Marco Casanova). Quando achamos que o estamos no fundo do poço, sempre aparece uma camada a mais para cavar.

Parece que perdemos o pudor. Desrespeitamos as leis e a Constituição e em lugar dela colocamos nossas convicções políticas e/ou morais. Ou simplesmente as convicções religiosas (falarei disso na sequência). Ou “só pessoais”. Assim “tipo eu-acho-que”. Em todos os quadrantes. Ao mesmo tempo em que são liberados grandes corruptos e corruptores, sob o mesmo ordenamento deixamos presos pobres e esgualepados. Dia desses alguém me questionou: “Professor, o senhor quebrou a cara. Dizia que la ley es como la serpiente; solo pica al descalzos (frase de Jesus De la Torre Rangel que o senhor repete há tantos anos) e agora está vendo os grandes irem para a prisão”.

Em resposta, perguntei: será mesmo? Falemos dos indefectíveis irmãos Batista ou dos réus que receberam liberdade no Superior Tribunal de Justiça enquanto esse mesmo tribunal deixou presa uma mulher que furtou peito de frango e outros quejandinhos. Desde quando as delações inverteram a frase que repito há tantos anos? Na verdade, há uma esperta inversão ideológica nisso tudo. O futuro mostrará isso. O episódio dos irmãos Batista é só a ponta do iceberg (veja-se o lúcido texto da professora Érica Gorga, no Estadão). Temos quase um milhão de presos. Destes, não mais que 0,001% são da “lava jato”. O resto não tem nem direito à delação. E nem a benesses.

Mas quero falar de outro poço. O do moralismo que fez uma fagocitose do Direito (sem o benefício desta). Em nome da tese moral-utilitarista de que os fins justificam os meios, fizeram delações à revelia da lei (veja-se o texto de JJ Gomes Canotilho — ver aqui). Todos os dias as teses morais fazem predação do Direito. Em vez da boa doutrina, jurisprudência e, enfim, da lei e da Constituição Federal (peço desculpas pode me referir a essa coisa demodê chamada “Direito”), usa-se “justo concreto”, “minha consciência”, “minha convicção”, “meu iluminismo”, “o réu merece” etc. Atenção: até a revista Veja, por arrependimento ou oportunismo, reconhece que houve ilegalidade na interceptação da conversa Lula-Dilma, na sua divulgação (na época, a revista pensava o contrário) e agora no caso Reinaldo Azevedo. Nome da matéria da VejaEstado Policial! Bem sugestivo!

A última (mais recente) pataquada moral(ista) veio do Mato Grosso do Sul, em que um procurador de Justiça, a partir da convocação feita pela Promotoria da Infância e Juventude aos pais de alunos para comparecimento sob pena de multa e prisão para assistirem a ele, procurador, em estádio com 10 mil pessoas, proferir palestra. Ocorre que a tal palestra esteve eivada de pregações religiosas, além de decretar a cidade de Dourados “capital de Cristo” ou algo assim. Vejam a matéria (ver aqui). Já li, inclusive, a defesa que um colega seu fez, dizendo que a oração foi pequena e apenas ao final. Bom, não é o que a reportagem e as filmagens mostram. Além disso, o promotor (ler aqui) não explica a convocação para o comparecimento ao Estádio sob pena de multa ou prisão. O Ministério Público esticou a corda, pois não?

Despiciendo fazer maiores criticas à atitude do procurador. O Conselho Superior do MP por certo não deverá dar uma medalha ao colega. Espero que não. Moralizar o Direito (isto é, fazê-lo soçobrar diante de raciocínios morais) por vezes é, exatamente, aquilo que desmoraliza, se me entendem a ironia e o jogo de palavras.

Vejam lá. Não discuto aqui os bons propósitos do membro do Ministério Público. A evasão escolar é um problema sério e o crime de abandono intelectual não é inconstitucional. Agora, constranger pais (relapsos que sejam) a, sob vara, acompanhar uma doutrinação religiosa, certamente não é o caminho. “Ah, professor, mas os resultados são bons.” Pois é… o Direito não é exatamente o lugar em que o “argumento do resultado” tem preferência, não é mesmo? Ou bem o poder público tem um poder, ou bem não o tem; ou bem o cidadão tem um direito, ou bem não o tem. O código do Direito é, por assim dizer, binário. Eis o fórum é do princípio. É preciso, portanto, ajustar os bons propósitos do Procurador/pregador às premissas e preceitos de um Estado laico e de um Direito Penal conformado à Constituição (ou alguém entende correto que um pai que não comparecesse ao evento esse — sem “justificativa” (sic — aliás, que “justificativa” seria suficiente para o não comparecimento? Quem sabe a laicidade?) respondesse criminalmente só por esse fato?).

Na verdade, o que devemos discutir não são essas questões pontuais com as quais encheríamos páginas e páginas de bizarrices que estão se tornando “normais”. Isto é mais um sintoma da lambança que se fez do Direito. Como exemplo, lembro que o Brasil arde e o panpenalismo avança até para cima das crianças e dos seus pais. Enquanto isso, alguém lança um livro chamado Direito Penal Superfacilitado. Depois dizem que é implicância minha…

Teoria política do poder substituiu o Direito: só os fortes sobrevivem?
Como chegamos a este estágio? O que fizemos com o Direito? Transformamos o Direito em um jogo de poder. Isso. A questão é saber: a) ou nos dobramos e dizemos “isso é assim mesmo e vamos achar um modo de ser mais esperto que o outro” ou b) voltemos a estudar Direito (e direito) e enfrentemos de frente esse monstro.

Sim, porque se pensarmos que direito é isso que está aí e interpretação é um ato de vontade (como dizia Kelsen no oitavo capitulo da TPD, mostrando todo seu relativismo), então estaremos fazendo uma coisa pior ainda. Sabem qual é? Só os fortes sobreviverão.

Se o Direito se transformou em um estado de natureza, em que quem é mais esperto no seu agir estratégico ganha, então deixemos de lado qualquer pretensão teórica. Ou, ao menos, desistamos da teoria normativa — o que não é um problema menor; venho dizendo há tempos que o principal papel da teoria do Direito é, exatamente, fornecer as condições de possibilidade para tornar concreto o programa constitucional, para concretizar direitos fundamentais. Do contrário, façamos sociologia ou ciência política, disciplinas certamente tão relevantes quanto, apenas que não são… Direito!

O que aconteceu é que institucionalizamos aquilo que hoje se faz nas pobres faculdades de Direito de Pindorama: estudar uma frágil teoria política do poder, pela qual o Direito é só vontade (de poder) e opinião pessoal. E, é claro, só se darão bem os mais fortes. É Behemoth engolindo Leviatã (lembremos que um dos sentidos do Leviatã de Hobbes é o de um Estado garantidor da paz, enquanto o Behemoth quer dizer o contrário).

De minha parte, penso que devemos estudar Direito e — sem fazer provocação ao Procurador pregador de Mato Grosso do Sul — espalhar a palavra “doutrina”. Só ela poderá nos salvar. Só a Constituição salva. Aleluia, irmãos.

Minha reflexão: nestes tempos de grave instabilidade, creio que, como Ulisses aos mastros, estamos, os concidadãos, ao império do Direito. É o apego pelo Direito, é o cuidado com Ele, que pode nos guiar por um bom caminho. Tudo parece cinza e os sólidos, como poucas vezes na nossa história recente, dissolve-se pelo ar.

Estamos sob teste. E os juristas temos um papel nessa conversa toda. Por isso, ofereço minha dose de prudência constitucional, recordando uma frase que disse e escrevi em 1989, no primeiro aniversário da Constituição de 1988: “Constituição quer significar constituir-a-ação”.

Assine

Redação

6 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. “argumento do resultado” Por que não cortar a mão esquerda …..

    Argumento do resultado? Por que não cortar a mão esquerda dos ladrões?

     

    O articulista se colocou contra o argumento de resultados, pois bem, como uma humilde contribuição ao seu artigo lembro que em determinados estados sujeitos as leis da sharia pode-se deixar uma carteira em locais públicos que ela permanecerá lá sem que algum ladrão a leve, simplesmente porque é cortada a mão de quem rouba pouco.

     

    É interessante o exemplo, pois reis e príncipes nestes mesmos Estados transferem fortunas dos ganhos do petróleo para suas contas em quantidades que deixam qualquer corrupto brasileiro envergonhado por sua incompetência e suas mãos jamais são cortadas!

  2. Sempre lúcido. Aleluia irmão.

    Sempre lúcido. Aleluia irmão. Regizijo-me em festa saber que o professor no qual inspirei minha monografia não é um garantista “utilitário”. 

  3. Que delicia de texto. Sempre

    Que delicia de texto. Sempre lúcido. Me conforta Saber que vc, ao contrário do professor que me levou  até  sua obra, não és um garantista utilitário. 

  4. É chato afirmar isso, mas sob

    É chato afirmar isso, mas sob o capitalismo a justiça é relativa, depende muito da competência do advogado e isso depende da capacidade financeira para contratá-lo. E isso em um estado democrático tipo USA. No Brasil, a classe dominante transformou o Direito em um estado da natureza, quem tem mais poder econômico “compra” a justiça, conforme citado no texto (não com essas palavras). 

  5. Há exatamente dois anos
    Há exatamente dois anos afirmei que a confusão entre os campos jornalístico, político e jurídico provocariam a destruição do Estado brasileiro https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/justica-politica-e-imprensa-juntos-misturados-para-falir-o-estado-brasileiro.

    A confusão entre o campo religioso e o campo jurídico notado por Streck é apenas o desdobramento de um fenômeno maior e mais complexo. Um indício da falência do Estado que começou muito antes dos procuradores-pastores começarem a dar seus deprimentes espetáculos.

    1. Uma GUERRA RELIGIOSA?

       

      Há inúmeros questionamentos sobre o porquê da perseguição de Lula pelo Procurador Dallagnol do famoso PowerPoint.

      Várias hipóteses estão sendo feitas, pois são necessárias hipóteses não jurídicas para entender todo o processo contra Lula armado simplesmente por provas geradas pelo mesmo através de um processo de tortura psicológica dos delatores que servem como a única prova contra Lula.

      Assisti com paciência aos vídeos da imensa maioria das delações que servem de “prova” contra Lula, são simplesmente delações vazias que a elas não é ajuntado nenhum documento que não seja que o apartamento existe e que foi reformado sob as ordens da OAS. Pensei que o Ministério Público estava guardando alguma prova na manga para na sua peça final aparecesse algo, mas como era de se esperar a montanha nem um rato pariu!

      Com as alegações finais do procurador continua o verdadeiro enigma:

      – Por que da sanha acusatória do mesmo contra Lula?

      Muitas hipóteses têm sido feitas, que não se deve perder tempo para analisá-las, pois como diria minha avó, louco não tem razão (é o óbvio a ser dito!). Porém dentro do espaço das elucubrações e das teorias estapafúrdias vou agregar mais uma baseada em fatos da história humana e das características do acusador e acusada, a RELIGIÃO!

      No meio do século passado se pensava que as lutas permaneceriam baseadas em diferenças ideológicas dos diversos grupos e nações, parecia que o fantasma das lutas religiosas que assombraram o nosso mundo por alguns milênios haviam acabado, porém o resgate do fanatismo religioso como mote de divergências econômicas e territoriais, voltou à pauta das últimas décadas tentando enterrar as sociedades laicas que se montaram, sociedades estas se com a evolução científica e tecnológica se enterraria de vez problemas materiais desde que problemas políticos fossem resolvidos.

      Como o Brasil, mesmo com todos os problemas surgidos nos últimos anos, por suas características tem todas as condições de arranjada à situação política tornar-se uma nação forte e próspera, as famosas “forças ocultas” do então ex-presidente Jânio Quadros, que de tão ocultas e tão enigmáticas que o então presidente a elas se referia e até hoje não estão claras quais são, talvez estejam agindo, ou seja, quem quiser que preencha a lacuna do que são estas forças que parecem realmente existirem, mas são tênues e tão ocultas que ninguém tira da obscuridade estas forças, nem vamos procurar identifica-las, cada um preencha com suas hipóteses!

      Existindo estas forças ocultas, para que elas permaneçam como o nome a define, ocultas, deve ser procurada uma forma de perturbar definitivamente a possibilidade de desenvolvimento do país, e nada melhor do que uma Guerra Religiosa para encobrir qualquer coisa.

      Vamos as nossas “convicções”, que levam a esta hipótese que pode parecer absurda, que corroboram sobre os motivos de atribuir a sanha persecutória de Dallagnol contra Lula.

      Até a chegada da família real ao Brasil, somente templos Católicos eram permitidos no nosso país, por imposição dos Ingleses foi permitida que religiões protestantes montassem seus templos de forma discreta e limitada na colônia. Esta determinação com alguns atenuantes seguiu até o fim do Império quando o Estado oficialmente se declarou LAICO.

      Apesar de laico o Estado Brasileiro se manteve ligado e dominado pela Igreja Católica que era associada à burguesia e a oligarquia brasileira, entretanto com a abertura religiosa permitida pelo estado laico igrejas pentecostais chegaram com todo o seu proselitismo religioso no nosso país. Porém estas igrejas, que num primeiro momento dedicavam-se ao proselitismo religioso aos mais pobres começaram a ganhar porte no país, não só porte como riqueza!

      Neste momento se estabelece uma competição entre a Igreja Católica brasileira e os cultos pentecostais, uma verdadeira guerra por mercado. Como a mesma pregação religiosa que era levada aos mais pobres e mais desinformados simplesmente se transferiu para as classes mais abastadas, a intolerância que era reservada aos cultos afro-brasileiros se transferiu para a Igreja Católica.

      São claríssimas as posições de intransigência religiosa do pregador-procurador Dallagnol, inclusive por invasões na história que o mesmo comete, atribuindo os problemas do país a sua não religiosidade durante a colonização, ou seja, atribuindo a prosperidade do grande irmão do norte a uma colonização de devotos (aqui devotos quer dizer, devotos protestantes e não ao lixo católico que veio ao Brasil!). Isto fica claro em suas palavras, que tirando alguns qualificativos que estão colocados acima reproduzem ipsis litteris as palavras do pastor ou promotor, que fica difícil distinguir onde começa e termina um.

      Pois bem e Lula? Lula é um produto da teologia da libertação católica, é um devoto amado de seus pregadores que claramente nos dias atuais se põe contra as estripulias da Lava-Jato.

      Ou seja, temos um cenário de confronto claro e límpido, um pregador pentecostal, que se via reprimido pela hierarquia católica, e que como todo neopentecostal se coloca adepto de uma teologia da prosperidade, que contraria a visão católica da teologia da libertação.

      Em resumo, cria-se um claro caldo de cultura para uma disputa religiosa que pode e geralmente deságua em conflitos mais graves que assombraram o mundo do passado.

      É quase uma teoria da conspiração, mas quem em sã consciência poderia imaginar a cinquenta anos um Estado Islâmico?

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador