Por que anularam o júri do caso Boate Kiss?

Para o jurista Lênio Streck, a culpa por nulidades é de quem as causa e de quem aplicou a lei de forma equivocada

Boate Kiss
Foto: Reprodução

Há uma história contada pela escritora Simone de Beauvoir. Uma mulher, maltratada pelo marido, arranjara um amante, a cuja casa ia uma vez por semana. Precisava atravessar um rio para visitá-lo. Podia fazê-lo de duas maneiras: por uma ponte ou por barca. Pela ponte corria o risco de cruzar com um malfeitor.

Um dia, demorou-se mais que de costume e, quando chegou ao rio, o barqueiro não quis levá-la, dizendo que seu expediente terminara. Pediu então ao amante que a acompanhasse até a ponte, mas este recusou, alegando cansaço. A mulher resolveu arriscar, e o assassino a matou.

Beauvoir então pergunta: quem é o culpado? O barqueiro burocrata? O amante negligente? Ou a própria mulher, por adúltera? E comenta: “Em geral, as pessoas culpam um desses três, mas ninguém se lembra de quem matou“.

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De quem é a culpa pela anulação do Júri da boate Kiss? Da defesa que alegou? Dos desembargadores que aplicaram a lei? Não e não.

A culpa é de quem causou as nulidades. E de quem fiscaliza a aplicação da lei. E de quem a aplicou de forma equivocada, no caso. Esse é o busílis. O Ministério Público até mesmo se beneficiou de uma das nulidades, como explicarei.  

Começa com a escolha dos jurados. Nem mesmo os prazos em relação a esse processo foram respeitados. O desembargador Conrado Kurtz deixou isso bem claro. O desembargador disse: não existem dois Códigos, um para casos complexos e outro para os simples. E cada juiz não pode fazer um CPP próprio.

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Houve uma reunião do juiz do Júri que não está na ata e nem nas gravações do julgamento. O desembargador destacou que os atos realizados em plenário precisam ocorrer sob os olhos de todos ou pelo menos das partes envolvidas e ser registrados.

Talvez a nulidade mais grave — se é que uma pode ser mais grave que outra — foi registrada pelo desembargador Jayme Weingartner Neto, ex-integrante do MP. Houve acesso ao sistema Consultas Integradas, realizado pelo Ministério Público. Como a defesa não teve acesso a esse mesmo mecanismo, Weingartner Neto afirmou que existe disparidade de armas.

“Noventa e sete pessoas foram impugnadas da lista geral (de jurados) porque em algum momento visitaram familiares ou amigos em estabelecimento prisional. Informação que o Ministério Público só obteve com o Consultas Integradas. De modo que então essa informação privilegiada sobre os jurados se projetava evidentemente para esse Júri em clara disparidade de armas.”

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À época, este escriba aqui avisou: essa nulidade vai custar caro. Pronto. Dito e feito.

Houve ainda violação da plenitude de defesa. Também o uso de maquete. A defesa não teve acesso antes.

Enfim, um número considerável de nulidades, sendo que uma já seria suficiente para a anulação.

Pobres das famílias das vítimas que não conseguem consolidar seu luto. Oito anos depois e tudo volta à estaca zero. Mas tem de ser cobrado de quem deveria ter detectado por dever de ofício qualquer nulidade.

Não é possível que o MP utilize o privilégio de um sistema de dados e a defesa, não. Isso é claro desiquilíbrio de forças. Ou o Júri não é um julgamento com garantias? Não tem paridade de armas?

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O Ministério Público sabia disso. Desde o início. Eu mesmo falei que esse uso dos dados levaria à nulidade.

De novo, precisamos falar sobre o Ministério Público. Está na hora de tirar da gaveta o projeto Streck-Anastasia, que nem é mais senador. O projeto espelha o dever de equanimidade do MP, como consta no CPP alemão, na legislação da Itália e na doutrina Brady dos Estados Unidos (desde 1963).

Por isso, não se acuse o Tribunal de Justiça, os desembargadores ou a defesa pela anulação do Júri. Pergunte-se, primeiro, como as nulidades ocorreram. Mormente a do acesso privilegiado às informações sobre os jurados. Sabia-se até o dia em que o jurado foi visitar familiar no presídio. Tudo muito grave.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados.

Publicado originalmente no Conjur

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

1 Comentário

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  1. Anularam o Juri porque a Cleptocracia canalha e comparsa de Poder Judiciário (Juízes/Promotores, Legislação Criminal e OAB, Projetos Esquerdopata-Fascistas da Ditadura do Estado Novo Totalitário e Assassino, preservaram esta Estrutura até hoje. 92 anos como Latrina da Humanidade. Somente desta forma puderam ser deixados de fora do Processo e qualquer Citação, os verdadeiros responsáveis e culpados pelos Assassinatos de 250 Jovens Vidas: Prefeito de Santa Maria, Secretários Municipais, Vereadores, Fiscais Públicos Municipais, Oficiais do Corpo de Bombeiros, MP/RS, CREA…Autoridades que deveriam fiscalizar e que permitiram a Liberação de Edifício sem Portas de Segurança, Sistemas e Brigada Anti-Incêndio, sem Saídas de Emergência,…Sem a mínima condição de comportar milhares de Cidadãos. A Covardia não tem limites. Mesmo condenando Inocentes no lugar dos Culpados, esta barbárie não duraria por muito tempo. Disto já sabíamos. Como já sabíamos da mesma cumplicidade e covardia destes mesmos Canalhas, que já haviam mostrado sua pequenez e mediocridade abjetas, quando deixaram de fora as mesmas Autoridades Públicas, Governador do estado de São Paulo Luiz Fleury Filho(OAB/MP/USP) e Secretário de Segurança Pedro Campos, culpados e responsáveis pelo Massacre do Carandiru, enquanto condenavam Subordinados e Inocentes. O mesmo Poder Judiciário agindo da mesma forma há 92 anos. Covarde, comparsa e canalha. Casos isolados?? O Incineramento de 10 Crianças dentro de Clube de Futebol Flamengo no RJ. Não é coincidência. É um padrão. Ação que Criminosos e Facínoras repetem com normalidade e rotineiramente. Pobre país rico. O Brasil espera por Justiça?? Das Fezes saem fedor e moscas. Mas de muito fácil explicação.

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