Em defesa do Meio Ambiente, partidos entram na Justiça contra o governo Bolsonaro

Cenário ambiental devastador só tem produzido inação e esvaziamento das políticas de comando e controle na área

Queimadas, extração mineral ilegal e demais danos ambientais se enquadram na decisão. Foto: Marcelo Salazar/ISA

do SindCT

por Fernanda Soares

O Fundo Nacional sobre Mudança do Clima foi criado em 2009 com a finalidade de financiar projetos, estudos e empreendimentos que visem à redução de emissões de gases de efeito estufa e à adaptação aos efeitos da mudança do clima.

Vinculado ao Ministério do Meio Ambiente – MMA, o Fundo Clima disponibiliza recursos em duas modalidades, reembolsável e não-reembolsável, administradas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES e pelo MMA, respectivamente.

Partidos de esquerda (Partido Socialista Brasileiro – PSB, Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, Partido dos Trabalhadores – PT e Rede Sustentabilidade) ajuizaram uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, devido à omissão do governo federal em adotar providências para o funcionamento do Fundo Clima, indevidamente paralisado em 2019 e 2020, bem como por diversas outras ações e omissões na área ambiental que estariam levando a uma situação de retrocesso e de desproteção em matéria ambiental.

O ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADPF 708, convocou uma audiência pública, realizada nos dias 21 e 22 de setembro, com integrantes do governo federal, organizações da sociedade civil, institutos de pesquisa, acadêmicos, empresários e ONGs como Greenpeace e WWF.

O deputado federal Alessandro Molon (PSB), representando os partidos que ajuizaram a ADPF 708, ressaltou a necessidade de reativar o funcionamento do Fundo do Clima e restaurar sua estrutura de governança, com participação da academia, do setor privado e da sociedade civil organizada. Para o deputado, existe uma “clara e permanente política de omissão diante da destruição ambiental” do governo federal.

Diante do cenário de devastação ambiental, “a resposta do governo deveria ser uma verdadeira guerra contra o desmatamento e as mudanças climáticas. Mas, ao contrário, esse cenário ambiental devastador só tem produzido inação e esvaziamento das políticas de comando e controle na área”, afirmou Molon.

O pesquisador Carlos Afonso Nobre é uma das maiores referências em estudos sobre o aquecimento global e um dos cientistas brasileiros mais conhecidos no mundo. Foi chefe do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos e do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do INPE, titular da Secretaria de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCTI, diretor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas, presidente do Conselho Diretor e vice-presidente do Comitê Científico do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas – IPCC, citando apenas algumas de suas atuações em organismos de defesa do meio ambiente.

Nobre pontuou sua participação na audiência pública com discurso em favor da urgente preservação da Amazônia e da criação de um “New Deal” ambiental para o Brasil, com a geração de empregos em atividades sustentáveis na Amazônia e agregação de valor em produtos da floresta. “É necessário um novo paradigma de desenvolvimento para a Amazônia”, afirmou.

Segundo Nobre, a Amazônia está próxima do ponto de “não retorno”, ou seja, de perder totalmente a sua capacidade de recuperação. Ele explica que, numa escala de destruição, a floresta Amazônica está com 17% de seu território desmatado. Se o índice atingir a marca de 25%, a floresta perde sua capacidade de regeneração.

Nobre alerta ainda para o risco de “savanização” da Amazônia: a transformação da mata original em uma vegetação pobre em diversidade, com gramíneas e poucas árvores espaçadas, semelhante à savana africana ou ao cerrado. Para impedir essa possível catástrofe ambiental, Nobre propõe a combinação entre tecnologias e o aproveitamento dos ativos biológicos da floresta.

Representando o governo Bolsonaro, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional – GSI, Augusto Heleno fez declarações polêmicas e, seguindo o tom adotado por Bolsonaro em seu discurso na ONU, desqualificou os dados sobre desmatamento e queimadas na Amazônia, além de sugerir que tudo não passa de uma articulação para derrubar o governo.

Não podemos admitir e incentivar que nações, entidades e personalidades estrangeiras sem passado que lhes dê autoridade moral para nos criticar tenham sucesso no seu objetivo principal, obviamente oculto, mas evidentemente claro para os menos inocentes, que é prejudicar o Brasil e derrubar o governo Bolsonaro”, afirmou.

A teoria da conspiração difundida pelo governo também alega que as ONGs que denunciam o desmatamento utilizam dados falsos. “As ONGs têm por trás potências estrangeiras para nos apresentarem ao mundo como vilões do desmatamento e do aquecimento do planeta. Pior, usam argumentos falsos, números fabricados e manipulados e acusações infundadas para prejudicar o Brasil”, disse.

Para finalizar, o general Heleno tentou redimir a omissão do governo na atuação contra o combate às queimadas: “não há comprovação científica de que o aumento de incêndio nas florestas primárias decorra de inação do governo. Na verdade, elas têm a ver com fenômenos naturais, cuja ação humana é incapaz de impedir”, finalizou.

Também participou da audiência pública a coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, Sônia Guajajara. Para ela, o governo protege invasores e desmatadores “Podemos dizer que é um governo extremamente perigoso, porque acaba questionando dados e, quando esses dados não condizem com seus interesses, tentam imediatamente omitir a verdade ou punir e exonerar responsáveis (…) Por isso que a gente diz que é um governo perigoso, porque acaba agindo em favor de quem está destruindo, de quem está, de fato, explorando.”

Importante ressaltar, aqui, parte do discurso do presidente Jair Bolsonaro na ONU, no dia 22 de setembro, quando demonstrou claramente não ter conhecimento da magnitude das queimadas no país e ainda cometeu um, entre tantos outros, grande engodo, ao afirmar que “nossa floresta é úmida e não permite propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas.”

O físico e engenheiro Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe, iniciou sua apresentação rebatendo o Gal. Heleno e o tratamento dado pelo governo às instituições de pesquisa científica: “com relação às mudanças climáticas, o General Augusto Heleno Pereira, mencionou que o efeito antrópico sobre o aquecimento global ainda é contestado por muitos cientistas. (…) Infelizmente, esse tipo de afirmação é às vezes mal interpretado pelos cidadãos comuns, desconhecedores da metodologia científica, como uma comprovação de que o efeito antrópico nas mudanças climáticas é categoricamente negado por parte da academia. (…). Mas, não há nenhum resultado sólido, que possa ser testado independentemente, que comprove a não existência do efeito antrópico no aquecimento global. Os resultados positivos produzidos, até recentemente, no monitoramento e controle do desmatamento em vários biomas brasileiros, se devem ao trabalho árduo e dedicado de várias instituições nacionais, em particular, IBAMA, ICMBio e INPE. Por isso, é com grande tristeza que vemos a forma como essas instituições são tratadas no atual governo.”

Galvão também se manifestou contra a criação da Agência Nacional de Monitoramento do Desmatamento, proposta pelo vice-presidente, Hamilton Mourão. “O vice-presidente está transmitindo uma ideia confusa do que seja monitoramento da Amazônia, embaralhando aplicações militares com civis. Retirando a atividade do monitoramento do Inpe e a colocando sob a tutela de um órgão militar, a credibilidade internacional dos dados seria bastante afetada”, afirmou.

A pesquisadora Thelma Krug, ex-secretária nacional adjunta da Secretaria de Programas e Políticas de Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e ex-secretária nacional da Secretaria de Mudança Climática e Qualidade Ambiental, é atualmente a vice-presidente eleita do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC. Ao iniciar seu discurso na audiência pública, Thelma fez questão de ressaltar que “a ciência baseia-se em observações e evidências, e as observações do sistema climático incluem, tanto as obtidas por medidas diretas, quanto a partir de dados de inúmeros satélites e outras plataformas”.

A pesquisadora informou dados dos últimos relatórios emitidos pelo IPCC, citando exemplos assustadores de alterações climáticas, como aumento da temperatura dos oceanos, derretimento de geleiras, aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera e de como a atividade humana tem contribuído para o aquecimento global. Thelma também explicou como essa realidade causa impactos relevantes, como secas, queimadas, surtos de pragas e aumento do volume dos oceanos. “A mudança do clima futuro será resultado da redução substantiva, sustentada e tempestiva das emissões de gás de efeito estufa em todos os setores da economia”, afirmou.

Sobre a atuação do atual governo brasileiro em relação ao meio ambiente, a pesquisadora não economizou palavras: “não faltam desculpas neste governo para justificar o injustificável. Parte-se primeiro da negação. Em seguida, da desqualificação de dados oficiais, particularmente os do INPE, tanto do desmatamento anual, quanto das queimadas, que sempre serviram como base para a construção de políticas públicas informadas. Infelizmente, este governo não tem se preocupado em buscar entender os dados que critica; não tem se preocupado em consultar os especialistas que, há anos, se debruçam para desenvolver sistemas que permitam gerar o melhor dado possível para o país, visando apoiar a melhor tomada de decisão.”

Para finalizar seu discurso, Thelma Krug mencionou o fato de o governo estar planejando a compra de um satélite por R$ 145 milhões, enquanto descredita suas instituições científicas: “de nada adianta o governo investir em mais imagens, em mais satélites, se não consegue digerir nem o que tem hoje à mesa. Com o desmonte do IBAMA, com as restrições para ações efetivas dos órgãos ambientais em campo, com a proibição da queima dos equipamentos utilizados pelos desmatadores criminosos, com a revogação do decreto que não permitia a expansão da cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal, com o estímulo a atividades de mineração ilegal em terras indígenas … Excelência, o que esperar? Não haverá plano, não haverá dado, não haverá discurso, não haverá promessa que nos leve a um final feliz. Temos que ser realistas.”

Joana Stezer, pesquisadora e professora do Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment, da London School of Economics and Political Science, relacionou os países que já sofreram processos por não cumprirem sua própria legislação ambiental e foram condenados a propor (e agir) de forma mais efetiva em seus governos.

Setzer afirmou que a tendência, tanto no Brasil, como ao redor do mundo, é cidadãos, organizações e instituições competentes continuarem a trazer ações judiciais contra governos que não têm tratado as mudanças climáticas com a seriedade e urgência que o tema exige.

O Fundo Clima foi criado por um ato do Legislativo (a Política Nacional sobre a Mudança do Clima) com o objetivo de (i) assegurar recursos e (ii) financiar estudos e projetos que visem à mitigação e à adaptação aos efeitos das mudanças climáticas.

Assim, não estamos diante de uma lacuna ou ausência de instrumento legal, e sim diante de uma política inefetiva.

Constatada a ausência injustificada de repasse ou destinação de recursos ao financiamento de estudos e projetos, configura-se uma situação de ilegalidade e omissão constitucional.

A atuação do Judiciário, nesse sentido, constitui uma “resposta do Estado” proporcional à “falha do governo”, e é destinada a restaurar a integridade do ordenamento jurídico.

Apontar a falha do governo não é o mesmo que decidir pelo governo. O presente processo, não pede a esse Tribunal nada além do que reconhecer a falha do governo e garantir que medidas estatais sejam tomadas de forma eficiente.

Como já destacado diversas vezes por esse Tribunal, o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública adote medidas que assegurem direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes.”

Após os dois dias de intensos discursos na audiência público, o ministro Barroso, em seu pronunciamento de encerramento, afirmou que “proteção ambiental não é escolha política, é dever constitucional”.

O ministro afirmou que a audiência contribuiu para extrair alguns fatos objetivos e incontroversos, entre eles o de que o desmatamento ilegal e as queimadas causadas por ação humana cresceram expressivamente em 2019 e, “ainda mais,” em 2020.

Além disso, Barroso comentou que, até a propositura da ADPF 708, o Fundo Clima não havia aprovado o plano de investimento nem alocado seus recursos nas finalidades legais.

Resta, agora, aguardar a decisão do STF sobre a ADPF 708 e torcer, já que não se pode esperar muito, para que o governo retome o funcionamento do Fundo Clima e invista em ações verdadeiras de proteção ao meio ambiente, principalmente no combate ao desmatamento e às queimadas.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador